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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

DIÁLOGO SOBRE O FENÓMENO HUMANO II

Um Paleoantropólogo e uma Geneticista dialogam sobre o que significa o humano. Falam das abordagens que têm ajudado a perceber melhor os fenómenos relacionados com a evolução e com o comportamento desta espécie de símios, que é a nossa .


P - Conforme prometido, aqui estamos para a continuação do diálogo anterior, tão rico e frutuoso, que encetámos na semana passada. Mas, se me permites, gostaria de abordar, enquanto questão prévia à da sexualidade humana, a questão do instinto, da forma como as espécies de símios antropoides conseguem enfrentar de forma flexível e adaptada os desafios no seu ambiente.

G- Sim, como geneticista, uma das coisas que me deixou sempre bastante frustrada, foi a ligeireza com que o mundo científico, sobretudo antes de ser conhecida a totalidade do genoma humano (no virar do milénio), atribuía «genes» para isto e para aquilo, com a maior desenvoltura, especialmente genes que tivessem que ver com o comportamento, com a inteligência, com a comunicação. Este tipo de «genética hipotética» era corrente em estudos genéticos incidindo sobre nossa espécie, sobretudo, mas também nas outras.

P- A projeção da nossa mentalidade no meta-modelo de como funciona o organismo, o cérebro, o genoma, etc. tem sido uma das maiores fontes de erro na interpretação dos seres vivos e, em especial, o comportamento humano. A atribuição da etiqueta «instinto» a sequências de gestos automáticas (ou tidas como tais), impediu o esclarecimento, até hoje, dos processos que determinam a instalação e reforço dessas tais sequências automáticas ou estereotipadas. Com efeito, demasiadas vezes, etólogos e psicólogos usaram a categoria do «instintivo» para qualquer comportamento que não tivesse sido «ensinado e aprendido». O relegar uma parte importante dos comportamentos animais para a categoria do instinto, era um modo de obviar o seu estudo sério, pois era postulada a transmissão hereditária desses comportamentos, através de «genes do comportamento». Estes postulados gratuitos e muito improváveis de «genes», aliás, não favoreceram o avanço da biologia do comportamento.

G- É verdade! Uma das descobertas mais inesperadas e «escandalosas» em genética, que decorreu da sequenciação completa do genoma humano, foi a constatação de que - no máximo! - existiriam cerca de 26 mil genes, na totalidade do genoma humano. Ora, isso era muitas ordens de grandeza menor do que as previsões dos cientistas, sobre o número total de «genes» que possuiria o genoma humano. Caso houvesse dezenas de milhões de genes, como muitos acreditavam na comunidade científica, não seria inconcebível que um certo número deles tivesse a função de codificar determinados traços de comportamento. O «instinto» seria meramente a expressão genética desses tais genes de comportamento. Isso era entendido dentro do determinismo biológico e bioquímico, apregoado pela quase totalidade dos cientistas em meados do século XX.

P- A palavra «instinto» é como aquela célebre frase da comédia de Molière, quando um médico explica ao seu paciente que a papoila dormideira (de onde se extrai o ópio) devia as suas propriedades, à misteriosa «virtude dormitiva»! O «instinto» não é mais que uma pseudoexplicação desse tipo. A dificuldade em compreender os fenómenos do comportamento coloca-se tanto em estudos incidindo sobre o Homem, como noutros animais.

G- Nós temos tendência a absolutizar o humano como algo radicalmente diferente doutros animais. Porém, em termos moleculares (construção das diversas moléculas biológicas) e mesmo celulares (a arquitetura das células, as estruturas celulares), muitas vezes não se pode distinguir o que provém dum humano, do que provém de outro mamífero. Não há diversidade verdadeira senão ao nível «superior» de organização, como sejam tecidos e órgãos. Aí sim, é possível distinguir o humano, pela anatomia e pela histologia. Não é realmente possível distinguir uma proteína humana da  doutros mamíferos, pela sua estrutura geral e mesmo pela sua função. Apenas podemos distingui-la pela sequência de aminoácidos, ligeiramente diferente no Homem em relação aos outros animais. Muitas vezes, essa diferença é irrelevante do ponto de vista funcional. A prova disso é que um gene de proteína pode ser inserido num cromossoma de outro ser vivo, obtendo-se a sua expressão correta, quer essa inserção seja num animal de experiência, quer num humano (para substituir um gene deficiente, em terapia genética): Em ambos os casos, o gene inserido desempenha na perfeição, o papel daquele que foi substituir.

P- Volto à questão que ficou em suspenso, do comportamento humano e da sexualidade, a comunidade científica, com especial relevo para os psicanalistas, mas com forte influência também nas outras disciplinas, decidiu transformar a questão da sexualidade humana, de um tabu, num assunto obsessivo e omnipresente. Isto não significa que os mitos envolvendo a sexualidade em si mesma tenham sido desfeitos. Penso que existe uma enorme confusão no espírito de muitas pessoas, que torna ainda mais complexo falar-se neste assunto, desde que se tenha a preocupação de honestidade e não se caia em demagogias.

G- Esta questão exerce sempre um grande fascínio, provavelmente porque, subjetivamente, sentimos que a nossa própria biologia e a nossa psique estão envolvidas. Mas, nesta como noutras questões que envolvem a biologia humana, a condição para se abordar cientificamente um problema é não o fazer com envolvimento dos nossos egos. Será possível com a sexualidade»? Será possível fazê-lo como descrevemos o aparelho circulatório, ou as funções hepáticas?

P- Colocas um problema metodológico sério. Pois nós temos emoções e estas, sendo recalcadas, não sabemos «a priori» quais sejam. Mas, é impossível avançar neste domínio, senão com o distanciamento que conseguimos em relação à descrição e funcionamento dos outros órgãos do corpo humano. Creio que um problema de fundo que tem surgido em muitas discussões sobre a sexualidade, é a permanente redução desta, ao prazer sexual. Esta questão tem «canibalizado» as discussões, sobretudo nas revistas populares e em shows televisivos. Esta questão, legitimamente, é objeto da curiosidade e interesse do público. Porém, as emoções e muitos aspetos típicos das situações amorosas, ficam na sombra.

G- Se nós somos condicionáveis, em termos gerais, isso deve-se às estruturas profundas, que existem em nós - provavelmente no cérebro, em primeiro lugar - que desencadeiam esse condicionamento. Ora, a publicidade usa e abusa de imagens subliminares (ou explícitas) que enviam mensagens imbuídas de conotação sexual. Se o faz, é porque o mecanismo funciona. Nós temos uma grande fragilidade a este respeito: Algumas atitudes e comportamentos, tal como o imaginário, direta ou indiretamente, têm relação com sexualidade. Mas, como em muitos casos de condicionamento, o que funciona mais eficazmente é o que não atinge o nível explícito, ou seja, fica ao nível subliminar. As estruturas psíquicas, a sua instalação e fixação no humano, não só antecedem a sociedade industrial, a televisão , etc.: formam parte do «fundo genético», anterior à emergência da própria espécie H. sapiens, ou mesmo, de seus antepassados mais longínquos.

P- Como noutros aspetos da biologia, aceito que os comportamentos se foram complexificando, foram sendo selecionados os indivíduos que tinham um conjunto de características hereditárias que favoreciam a maior flexibilidade ambiental. Explico-me: Há 7 milhões de anos, o ramo primitivo que foi dar os Chimpanzés modernos, o que foi dar os Bonobos modernos e o que foi dar o Homo sapiens moderno, separaram-se. A partir daí, há isolamento genético dessas três espécies de símios. A sua adaptação ao ambiente era fator decisivo para a sua sobrevivência: houve - constantemente - uma propagação diferencial dos genes mais adequados, pelas sucessivas gerações, em resultado da seleção natural. Mas, se virmos a distribuição ecológica atual dos Chimpanzés e dos seus antecessores, assim como a dos Bonobos, constatamos uma coisa: ela vai alargar-se ou estreitar-se consoante a progressão ou contração da floresta tropical-equatorial.
                                                                 Champanzé: Mãe e filho

                                           Bonobo: Mãe e filho

Já no caso das espécies da nossa linhagem, apesar de haver ramos colaterais, que acabaram como «becos sem saída», parece evidente que os mais bem sucedidos foram os que se conseguiram adaptar à Savana, a partir da sua adaptação prévia à Floresta tropical.
Parece-me errado, portanto, procurar a «síntese» entre o Chimpanzé e o Bonobo (atuais) como sendo a chave para as primeiras etapas da construção do humano. Sim, temos parentesco em comum; isso traduz-se por semelhanças tanto anatómicas como comportamentais, no sentido lato. Porém, a exploração eficiente do novo habitat, a Savana, implicou muitas adaptações correlativas e muitas diferenças em relação às espécies de símios que permaneceram no ambiente de Floresta. O andar ereto; a dieta mais especializada em gramíneas selvagens e em carcaças de animais (abandonadas pelos grandes carnívoros); as modificações metabólicas, conduzindo à utilização de energia disponível para o crescimento desproporcional do cérebro; o desenvolvimento de glândulas sudoríferas, a perda paralela de pelagem em grande parte do corpo, (possibilitando a caminhada debaixo de calor intenso, em longos percursos). Trata-se de muitas adaptações correlacionadas, cuja sequência cronológica ainda não está muito clara, sobretudo porque dizem respeito a partes moles, não fossilizáveis.
O andar ereto torna mais conspícuos os órgãos genitais (em ambos os sexos), assim como os seios das mulheres. O maior dimorfismo sexual em símios verifica-se nos gorilas, mas é bastante modesto na nossa espécie e em espécies que antecederam a nossa. Apesar das diferenças anatómicas, houve fósseis que foram considerados por engano (pelos traços anatómicos) como masculinos e se verificou serem femininos, e vice versa, quando se pôde extrair ADN e sequenciar os genes desses fósseis.

G- Aliás, em H. sapiens do Paleolítico, verificou-se que as mulheres tinham parte ativa em caçadas, por diversas evidências. Tal não deveria surpreender, em grupos pequenos, nómadas. Quando o número de adultos num grupo era baixo, não podia haver uma repartição exclusiva por sexos de muitas tarefas. Tal como a caça e colheita, muitas outras atividades devem ter sido partilhadas por ambos os sexos.
O que ocorreu foi uma projeção da imagem convencional do homem e da mulher, do fim do século XIX e princípios do século XX. Os arqueólogos que estudavam o «homem primitivo» admitiram, como dado imutável, o estatuto «inferior» da mulher. O preconceito impede de ver certas evidências, porque aquele que as vê, descarta automaticamente certas hipóteses. Pode até nem ser um processo consciente, nalguns casos.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

MITOLOGIAS (IV)TRANSFORMAÇÕES ZOOMÓRFICAS



Cópia de um quadro perdido de Michelangelo representando Leda e o cisne


Zeus era conhecido por se transformar em animal, touro, cisne ou outro, e desse modo seduzir as mulheres que desejava, fecundá-las e estas inevitavelmente produziam uma progénie, que iria refletir de algum modo a excecionalidade da sua proveniência: ou pela sua beleza, ou pelas suas capacidades físicas, morais, intelectuais, etc.    

Esta capacidade em se transformar num animal, não era exclusiva de Zeus; todos os deuses do Olimpo a praticavam. Os heróis, os descendentes de deuses e humanos, talvez não tivessem a maravilhosa propriedade, encerrados que estavam na sua condição humana, mesmo que manifestassem atributos incomuns, em termos comparativos com os meramente humanos.  

Todos conhecem a história lendária de Leda. Ela deixou-se seduzir por um cisne, que não era senão Zeus. Este, através do estranho estratagema pode enganar o marido legítimo de Leda. Desta união nasceram, a partir de ovos, Castor e Pollux (os dois gémeos masculinos que acabaram por ir para a abóbada celeste, daí o nome duma das constelações), Climenestra e Helena.

Climenestra e Helena, tanto uma como outra, estão ligadas ao ciclo da epopeia da Ilíada. Helena é muito mais conhecida, visto que foi, segundo a lenda, raptada ao seu marido o rei de Esparta, por Páris, desencadeando a guerra de Troia. Climenestra tem uma história igualmente trágica, associada ao mesmo ciclo da Ilíada.

Como se vê, os produtos das uniões adulterinas com Zeus produziam seres excecionais, mas trágicos também. 

Outra célebre história de zoomorfismo ou de amores com animais, é a de Neptuno, transformando-se em touro, seduzindo e fecundando Pasífae, esposa do rei Minos. Na verdade, Pasífae faz muito para seduzir o touro em que o deus Neptuno se tinha transformado. Pede a Dédalo, o célebre arquiteto do rei de Creta, para construir uma réplica de vaca dentro da qual se esconderia. Esta réplica, perfeita e natural, seduziria o touro. Mais tarde, invocou ser forçada a tal conduta pelo facto do rei Minos ter sido perjuro, não satisfazendo a promessa feita a Neptuno. O produto da cópula do deus dos mares, com a rainha de Creta, foi o Minotauro, com corpo de homem e cabeça de touro.  Um  produto tão evidente destes amores, tinha de ser escondido no Labirinto

Além do princípio de que os deuses se podem transformar no que quiserem, nota-se a  aceitação «natural» da lascívia, perversidade, ou até, da propensão para a bestialidade (ter relações sexuais com animais), mas - sobretudo - do lado feminino! Ainda por cima, são caraterísticas dadas a mulheres de alta condição, como rainhas ou princesas.

A excecionalidade dos costumes dos deuses fazia parte da mitologia clássica. Eram capazes de fazer coisas completamente vedadas aos homens, também relativamente à lei moral, como serem adúlteros ou incitarem ao adultério, tomarem, violentarem as suas presas, usar toda a espécie de manhas, etc... 

Mas, este erotismo violento, tirânico, possessivo não seria a mera projeção do que se considerava ser "varonil" nessa época? Não seria a narrativa dos deuses, a projeção do comportamento dos grandes, dos poderosos? Não estaria já a mulher a ser vista apenas como presa, ou como sedutora, papeis estes que se foram acentuando e prolongando, com modificações, até à era cristã: A mulher «santa» e submissa, aceitando o sacrifício ou a «meretriz» sedutora e diabólica...

                            

                               BAIXO-RELEVO: LEDA, O CISNE E CUPIDO (ÉPOCA ROMANA)

Pessoalmente, estou convencido que gregos e romanos não «acreditavam» nestes mitos, no sentido literal: Como acreditar que Leda tivesse realmente sido fecundada por um cisne? Ou que Pasífae tivesse gerado um monstro com cabeça de touro e corpo de homem, por ter copulado com Neptuno/touro ? Muitas outras histórias também desafiam o senso comum. 

Claro que os que narram os mitos descrevem-nos como tendo acontecido, como estando na origem de constelações, de dinastias ou de guerras, etc. Assim, a origem semidivina da casta governante era afirmada. Também, a «imoralidade» aparente das histórias dos deuses olímpicos, tinha a restrição de que os deuses estavam para além do poder, da compreensão e da própria moral dos homens. Era assim compreendido e integrado o ato sexual, enquanto desejo violento, irracional, impulsivo. Assim eram - também - as pulsões eróticas dos próprios deuses. 

Lucrécio, no seu célebre poema De Rerum Natura, cita os deuses, mas não dá muito crédito à sua existência. Limita-se a dizer que eles, lá no Olimpo, vão vivendo sua vida, com suas intrigas, sem se importarem com o mundo dos homens. 

Esta atitude era de quase ateísmo, o mais extrema possível, não ofendendo porém as leis de Roma. Se afirmasse claramente que os deuses não existiam, poderia ter sérios problemas  com as autoridades. Mas, note-se, todo o discurso filosófico-científico do longo poema se centra nas causas naturais e em como não devíamos estar preocupados com o além. 

Assim, no contexto de afirmar a prevalência absoluta das coisas naturais, fornece explicações inteiramente racionais sobre a hereditariedade  e a sexualidade. É notável que - embora conceda grande capacidade geratriz e transformadora à Natureza - não tenta «explicar» o que é da ordem do mito: As quimeras, as transformações miraculosas, etc. Nomeadamente, recordo-me duma passagem, onde argumentava que, se uma árvore dá maçãs, não se pode esperar que ela dê peras, nem que da semente da maçã surja outra árvore, que não seja uma macieira.

Este poema foi escrito na época latina, depois do declínio e conquista do mundo grego pelos romanos. Porém, Lucrécio recolhe toda a tradição de Epicuro (do qual restam poucos originais). Epicuro e Demócrito estão no âmago da cultura grega. Mesmo que estes filósofos e correntes filosóficas não tivessem sido dominantes no seu tempo, é evidente que suas teses foram bem conhecidas doutros filósofos contemporâneos. 

As histórias de transformações (sobretudo de deuses) em animais, muito comuns nos relatos da mitologia greco-romana, são formas poéticas. Tal como em relação às quimeras (grifos, esfinges, etc.), desempenhavam um papel nas narrativas míticas, mas tais histórias não eram percebidas - nem por antigos, nem por modernos - como relatos de casos verídicos, nem sequer, verosímeis. 

Eram símbolos e como tal, tinham um papel, mas esse papel não era o de explicação racional. Eram uma forma de acomodar o universo do inconsciente, as pulsões profundas da alma, individual e coletiva, a aceitação da irracionalidade do mundo, a metáfora das forças obscuras que nos atravessam o espírito e sobre as quais não temos um controlo verdadeiro. Enfim, faziam parte dos arquétipos e do  que Jung designa por «inconsciente coletivo». 

Estavam na raiz e no centro da mitologia greco-romana. Não se poderia estar «dentro» dessa civilização, sem dialogar com esses mitos fundadores, os quais se propagavam sob todas as formas.

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Nota: Em baixo seleciono alguns links. Nestes, pode o leitor obter informação complementar.

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1- Metamorfoses. Lúcio de Apuleio.
   

2- A titânide Métis, primeira esposa de Zeus e mãe da deusa Atena, era considerada capaz de mudar sua aparência para qualquer coisa que ela quisesse.



 
6- Sobre zoofilia 


7- De Rerum...

«Não se deve, porém, aceitar que os elementos se possam juntar de todas as maneiras. De outro modo, ver-se-ia por toda parte nascerem monstros, existirem espécies de homens semiferas, brotarem às vezes ramos de um corpo vivo, unirem-se membros de animais terrestres e marinhos e até apresentar a natureza, pelas terras de tudo produtoras, quimeras que exalassem chamas das tétricas goelas.
Ora, é manifesto que nada disto sucede, visto que todos os corpos criados a partir de germes determinados e de determinada mãe conservam, segundo vemos, ao crescer, os caracteres específicos». (20 LUCRÉCIO. Da natureza II, 700-710.)

8- Explorações do Mundo da Antiguidade. 
Este vídeo permite-nos ver a enorme mobilidade dos exploradores e portanto o entrecruzamento de culturas que existiu na Antiguidade

domingo, 3 de julho de 2016

A ARTE DE AMAR



«A arte de amar»

De todas as artes, a que suscita maior entusiasmo, queiram ou não queiram os puritanos, é a arte de amar.
Este amor, o amor entre pessoas, entre seres de carne e osso. Este amor, feito queimadura, que nos toma as entranhas; esse sentimento, que se traduz em vertigem, que pode ser tão potente ao ponto de nos levar a um estado de quase loucura, ou mesmo de loucura propriamente dita.
O desencadear das paixões amorosas é como essa outra paixão – bem mais nefasta – a paixão da guerra. Há muitas maneiras de iniciar uma guerra, mas nunca se sabe… uma vez começada, como irá terminar. A analogia guerreira é muito usada para descrever as paixões amorosas.
Só na literatura do Ocidente, a lista de filósofos, poetas, escritores, cientistas e artistas que se debruçaram sobre o tema é interminável!
Se tudo foi dito, no que respeita à «Arte de Amar», as obras que vão surgindo - populares ou eruditas- sobre o tema, só podem interessar enquanto testemunhos da época:
- Diz-me como falas do amor e eu te direi em que tempo vives, a que cultura e sociedade pertences…



Um assunto desenvolvido em todo o género de literatura, desde os livros de «autoajuda», aos romances …O tema corresponde obviamente a um interesse muito especial do público, que compra abundantemente esses livros pelo prazer, sem dúvida, mas também por desejo de aprender e por pressão social.
Estamos tão mergulhados no quotidiano que não nos apercebemos, por vezes, da grande velocidade das mudanças na nossa sociedade. Hoje, há um matraquear permanente sobre amor e sexo: o sexo «sugerido», na publicidade ou nos filmes; ou o sexo «explícito» com a banalização da pornografia. Hoje em dia, qualquer pessoa tem fácil acesso a vídeos pornográficos.
A outro nível, a imposição permanente no discurso político e mediático de numerosas questões ditas «fraturantes», relacionadas com reprodução e sexualidade, lançadas sob forma de campanhas, por grupos de pressão organizados (… a favor ou contra isto ou aquilo) e logo aproveitadas (quando não fomentadas) por políticos desejosos de protagonismo…
Tudo isto cria um enorme complexo obsessivo, um enorme «mercado» … mas também uma enorme frustração, pois um vulgar e pacato cidadão (ou cidadã) nunca se deixa de ter diante dos olhos os tais impossíveis objetos de desejo, perfeitos, inatingíveis ao indivíduo vulgar. É deste modo que as pessoas comuns, frustradas, sentem necessidade (por vezes obsessiva) de recorrer à pornografia.
Cria-se o desejo, no contexto de uma sociedade dita de «mercado», onde a publicidade é o motor do consumo, sendo esta - por sua vez- o motor da economia «real» (=de produção de bens e serviços). A «indústria» de pornografia é pois a «resposta» do capitalismo tardio, capitalismo da transformação robótica, da instrumentalização, não apenas dos corpos, como das psiques. Devemos ter sempre presente que a ideologia totalitária/ pensamento «único» quase nunca utiliza as palavras «capital», «capitalismo», prefere usar expressões como «sociedade de livre mercado», para erigir o seu próprio sistema político e económico em modelo inultrapassável, tão «natural» e indispensável como as próprias trocas económicas.



A explosão da pornografia não se pode atribuir somente nem principalmente à invenção da Internet. A pornografia ou erotismo pré-existiu, de muitos séculos, à era digital. Mas o fenómeno de exposição total, de sobre-exposição, de oferta sem limites e sob perfeito anonimato… é peculiar à nossa época.
O recurso massivo e obsessivo dos jovens, em especial, tem a ver com uma forma de condicionamento que vai aproveitar a frustração sexual para a canalizar para a satisfação hedónica imediata.
A adolescência é uma fabricação da sociedade. Pode-se considerar que o ser humano (de ambos os sexos) atinge a maturidade sexual plena por volta dos 16-17 anos, o que, aliás, correspondia à idade média de aparecimento da menarca das jovens.
A não satisfação de uma função natural, com implicações bioquímicas/hormonais, psíquicas e comportamentais, origina a frustração.
Numa sociedade patriarcal repressiva, na qual o poder dos machos dominantes é decisivo para o jovem macho ter acesso aos «prazeres» deste mundo, leia-se a uma vida sexual, e a procriar «ter família» … o sexo é regulado, proibido, delimitado, por uma moral estrita.
Numa sociedade pseudoliberal, a nossa, o sexo já não é tabu, mas pelo contrário, tema obrigatório e obsessivo. A «tara» moral é substituída pelas «taras» psíquica e mesmo física. Os adolescentes têm pensamentos obsessivos sobre sexo e sofrem pressão para deixarem de ser «virgens» o mais depressa possível e de qualquer maneira.  

Assim, conseguem os poderes que os próprios escravos se conformem alegremente com a sua servidão. Ao desviarem os indivíduos de uma sexualidade libertada e harmoniosa, através de um «Ersatz de satisfação», conseguem uma dupla vitória: Os próprios escravos reforçam a sua relação de escravidão e fazem-no, julgando-se mais «livres» por «livremente escolher» os produtos que lhes são oferecidos. 
Algumas pessoas, sob influência dos clichés desta sociedade em relação a questões de sexualidade, poderão achar que a nossa visão bastante crítica em relação à pornografia corresponde a uma defesa de alguma forma de censura. De facto, não é nada inteligente censurar, especialmente neste caso, pois tornaria esse «produto» ainda mais procurado em segredo. Talvez poucas pessoas saibam que existe toda uma rede de exploração – por vezes violenta – associada à indústria de vídeos pornográficos.
Pensar que informação sobre sexualidade seria veiculada por via dos vídeos porno, toca as raias da estupidez! O objetivo dos magnatas que produzem estes filmes pornográficos é somente o lucro.



A acusação ideológica/moral com que se rotula de «censura» qualquer crítica pode e deve ser devolvida aos que a fazem. Pois o tal rótulo infamante permite eludir um debate considerado «inoportuno» ou encobrir os interesses obscuros mais sórdidos, sob pretexto de «modernidade» ou de «liberdade de expressão». Com efeito, os tais pseudoliberais serão, porventura, os mais diretos beneficiários e aproveitadores da exploração sexual, sob todas as formas, incluindo o tráfico e a escravatura sexual.
O discurso pseudoliberal no que respeita à pornografia e ao uso constante das mensagens sexualizadas na comunicação social, na publicidade e no cinema, tem servido para manter impunes, para encobrir, para banalizar práticas criminosas.
Assim se compreende como é tornada escassa a oportunidade de debates públicos necessários, sobre questões de saúde e de educação sexuais. Se, por um lado, não faz sentido proibir que os adolescentes e adultos de ambos os sexos tenham acesso ao visionamento de vídeos com cenas eróticas, por outro lado, parece-nos hipócrita não educar, especialmente os jovens de ambos os sexos, para realmente terem uma gestão própria da sua sexualidade, sem subordinação a quaisquer ideias feitas. 





Os afetos podem ser educados, sem se violentar as opções pessoais. Pode-se ajudar, por todos os meios, a que as pessoas possam crescer saudáveis. A sexualidade faz parte integrante da saúde física e mental dos indivíduos, da sua integração social harmoniosa e da sua realização pessoal.
Devemos interrogar-nos sobre a adição aos vídeos porno. Ela tornou-se muito vulgar em adultos (especialmente jovens) do sexo masculino. Quais as causas e consequências de tal adição?
O cérebro é feito de tal maneira que, as imagens, por exemplo num vídeo, são compreendidas pelo cérebro «racional» (o pré-frontal), como sendo apenas e somente imagens (resultantes de um artefacto), mas o cérebro humano tem uma zona profunda (cérebro límbico), que é sede das pulsões, dos desejos, dos reflexos. Este sistema límbico não distingue entre imagem filmada e a que resulta da cena real; o cérebro mais primitivo responde como se o indivíduo estivesse presente e participante nas cenas que são visionadas no ecrã.
Além disso, o cérebro humano tem uma forma muito especial de interpretar os movimentos que as outras pessoas fazem. As zonas motoras correspondentes do nosso cérebro mimetizam os gestos que fazem as outras pessoas; porém, quando se está no papel de observador, as imagens cerebrais são tratadas como sendo apenas um simulacro, ou seja, o nosso cérebro racional intervém e reprime a concretização do gesto. É assim que o nosso cérebro apreende, mimeticamente, a realizar os gestos observados nos outros. A imitação dos gestos dos outros é muito espontânea. Aliás, se a demonstração por gestos é um processo eficiente de ensinar e aprender nos desportos, na dança, nas artes, etc., isso deve-se a uma criação de imagens neuronais «em espelho»: o ser humano aprende a fazer gestos complexos por imitação. Este tipo corriqueiro de aprendizagem tem excelentes resultados devido à nossa maravilhosa capacidade de «programação flexível» do cérebro.
A ciência neurológica tem muito a dizer e a divulgar sobre cérebro e amor. Essa divulgação nem sempre se revestiu de simplicidade e clareza necessárias para compreensão pelo leigo. Porém, penso que estes factos devem ser do conhecimento de todas as pessoas, devemos compreender que nós somos feitos assim, que existe todo um passado evolutivo que faz com que a nossa organização cerebral se traduza num determinado funcionamento e este, por sua vez, num comportamento.
Sim, o modo como captamos, armazenamos e reelaboramos as imagens vindas do exterior é muito complexo! Envolve estruturas biológicas, processos bioquímicos, etc. 
Mas as pessoas adultas e adolescentes (de ambos os sexos) devem compreender algo que lhes diz respeito e cuja ignorância, de modo nenhum, pode beneficiá-las. Todas as pessoas podem ser educadas nestes domínios, quaisquer que sejam seus conhecimentos prévios nestas matérias. Podemos explicar com simplicidade as coisas básicas, sem falsidades, de maneira esclarecedora.
A complexidade do amor humano, nas suas quase infinitas formas, matizes ou modalidades corresponde, afinal, à nossa imensa complexidade e diversidade orgânica e social.


A complexidade na organização de um ser humano é, na verdade, muito maior que a duma galáxia, constituída por milhões de estrelas, porque as estruturas, no caso do humano,  têm um grau de organização em muitos patamares, o que não se encontra nos corpos constituindo uma galáxia.
Considere-se que, no fundo, a complexidade acima descrita é que está na base do livre-arbítrio. Se o livre-arbítrio existe é porque, tanto as organizações dos indivíduos, como das sociedades, são de tal modo complexas, não é possível quaisquer inteligências, mesmo «dez Einstein» reunidos, descreverem adequadamente em termos bioquímicos e neuronais os mecanismos subjacentes às motivações e comportamentos das pessoas.
Considerando agora, também o amor – todas as modalidades de amor – enquanto fenómeno que envolve duas pessoas, temos a complexidade acima referida... ao quadrado. Constata-se então que a ideia de determinismo ou de fatalismo no domínio amoroso, um traço típico do amor dito «romântico», cai pela base.




No domínio das relações amorosas, uma série de clichés em relação ao que supostamente deve ser o comportamento das pessoas, é simplesmente uma soma de preconceitos, não contribuindo em nada para a libertação das pessoas, para uma fruição maior dessa arte necessária de amar.


Ao recusarmos todos aqueles falsos conceitos, o sentimento no amor não será diminuído, mas reforçado, pelo facto de já não se basear em ilusões.