Estamos num mundo dividido, mas não segundo as linhas ideológicas traçadas por Biden num discurso recente, entre «autocracias» e «democracias». Ele queria de facto que as pessoas identificassem «autocracias» com todos os governos que não se conformam com a «rules based order» ou seja, o que os EUA consideram como «ser-se bem comportado». Pelo contrário, seriam «democracias» todos os que alinham com o imperialismo americano, seja qual for o seu registo de violações dos direitos humanos mais básicos, a começar nos próprios EUA! Mas, para mim, não existe diferença onde Biden quer colocar a grande divisão. Existem países com governos que se comportam razoavelmente dentro do que se convenciona ser a «democracia representativa» no outro lado da «nova cortina de ferro», enquanto -do lado de cá - há bastantes cujo governo e as práticas se podem claramente identificar como «autocráticos». A visão dicotómica é falsa, pois qualquer país pode virar de ser uma relativa «democracia», para uma autocracia, quando existe um reforço das tendências autoritárias. Estas tendências, digam o que disserem, existem mesmo nas chamadas democracias ocidentais e nós temos abundantes provas disso, com a crise do COVID e com a histeria instrumentalizada contra a Rússia, não só contra o governo, como contra as pessoas e a cultura russas. Temos aqui uma prova cabal de que muitos governos do ocidente, dito «democrático», se comportaram como autocráticos, em relação à sua própria população. Em relação ao exterior, têm assumido posturas agressivas, belicistas e imperialistas, ou auxiliares da potência imperial.
Perguntarão: E do outro lado? Não há atropelos aos direitos humanos, não há governos autocráticos? Os que assim argumentam, provavelmente não se estão a aperceber de que é uma falácia, ou seja, não é um verdadeiro argumento. Sobretudo, não anula quaisquer dos factos comprovados em relação aos regimes do que convencionamos chamar «Ocidente», que inclui a Austrália, o Japão e outros, e que deveríamos antes chamar «Alinhados com os EUA».
Demonstração da falácia
Primeiro, existe uma barragem de propaganda tal, que aqui, nos nossos países não somos informados mas desinformados, intoxicados de propaganda contra os países e governos que não se conformam ao modelo americano, sobretudo a China, a Rússia, o Irão e outros. Como tal, é impossível distinguir, em muitos casos, a realidade da propaganda. A não ser que cada um de nós se transformasse em jornalista e fosse visitar esses países, fazendo inquéritos e avaliando o pulsar da vida dessas populações. Isso é impossível, claro. Mas, pessoas que são jornalistas profissionais, não estão nos diversos pontos do globo a fazer um trabalho sério. A sua objetividade - sem viés ideológico ou partidário - deveria ser inquestionável, sobretudo, onde existam governos «autocráticos». Mas eles, quase sempre, só enviam - pelos seus media respetivos - uma visão distorcida, onde os aspetos negativos são amplificados e os positivos minimizados, ou passados sob silêncio.
Segundo, mesmo que a imagem desses regimes, por eles enviada, fosse rigorosa e objetiva (hipótese infelizmente só teórica), tal não seria argumento válido: Se um determinado indivíduo se portar muito mal, não é por isso que eu sou um «santo». O mesmo se passa com os governos, os regimes dos diversos países: Não é por um regime A perseguir cidadãos ou não respeitar direitos humanos dos mesmos, que o regime B, onde nos encontramos, tem legitimidade para fazer igual, até mesmo que num grau menor. A legitimidade das ações do Estado e do governo, do ponto de vista formal e jurídico, é o que caracteriza um Estado de Direito. Este existirá, de facto, se os governos respeitarem e fizerem respeitar as constituições respetivas, se não permitirem derivas, nem desrespeito pelos direitos dos cidadãos.
Em terceiro lugar, faço notar que a democracia não é nem nunca foi, artigo de consumo que se possa exportar. Não foi nunca assim. Os exércitos da República Francesa triunfante não exportaram a «democracia» na ponta das suas baionetas. O mesmo se pode dizer com todos os governos coloniais, que supostamente iriam «civilizar» os povos, o que implicava ensiná-los a viver em «democracia», segundo a metrópole. Mais recentemente, a invasão do Afeganistão pelas tropas da NATO, chefiadas pelos EUA, não trouxe senão devastação, nenhum bem-estar ou progresso e, sobretudo, o regime que ficou após o fim de 20 anos de ocupação dos ocidentais, foi o governo Talibã, ou seja, da mesma natureza que eles tinham derrubado na «guerra-relâmpago» de 2001... O mesmo descalabro (1) se pode verificar com o resultado de guerras na ex-Jugoslávia, Líbia, Iraque, Síria, etc. Note-se que isto não é um argumento formal, mas substancial.
Em quarto lugar, o argumento de que existe uma real «democracia», quando um regime tem eleições, é um sofisma. Pois estas podem muito bem ser falsificadas, pode haver restrições explícitas, ou não, a certos partidos concorrerem, ou não existirem liberdades de opinião e de imprensa, etc. E tudo isto, pode ser num grau maior ou menor, pois raramente as situações são classificáveis como «preto ou branco», «positivo ou negativo», «bom ou mau». A «democracia» nos EUA, entre outras vicissitudes, foi objeto de distorções eleitorais (2) muito graves. Por exemplo, em 2000 com a fraude que afastou Al Gore e permitiu a eleição de G. W. Bush ou com a fraude que permitiu afastar Trump, em 2020. Trata-se de fraude comprovada; Trump recebeu maior votação que qualquer outro presidente anterior, que se tenha submetido a sufrágio. Digo isto, não por simpatia por Al Gore, nem por Donald Trump: Mas, são comentadores políticos, dentro da sociedade americana, que o dizem.
A vontade do povo e a expressão desta, é que deveriam ser os fatores distinguindo a democracia, de todas as outras formas de governo. Por isso, sou convicto «abstencionista» nos assuntos internos dos outros povos. Eles são compostos por pessoas adultas, tão capazes como eu de raciocinar: Saberão bem o que é melhor para seu país.
As «intervenções solidárias», que significam apoiar grupos dissidentes em determinados países, são formas de ingerência. Note-se que estas ingerências não são realizadas por idealismo, mas para derrubar ou, no mínimo, colocar entraves aos governos dos países em causa. Ora, assim como as sanções, este tipo de intervencionismo funciona, na prática, como ponta-de-lança das ambições imperiais.
Não há dúvida de que a propaganda também é dirigida aos cidadãos do «império ocidental». Especialistas em informação encarregam-se de moldar a opinião pública dos próprios países, usando toda a panóplia, desde a difamação, a falsa informação (fake news), a repetição de «clichés» (por exemplo: «Putin é isto ou aquilo...»), até a uma tendenciosa seleção de notícias, onde nada do que contradiga a narrativa fabricada, é deixado filtrar.
Se os peixes de aquário falassem, eles diriam que vivem em plena liberdade e que seu universo os satisfaz plenamente.
Os cidadãos do «ocidente», que estão satisfeitos e consideram que seus governos estão do lado do «bem», da «justiça», da «democracia», etc. são como os peixes de aquário, acima referidos. Quanto a estes últimos, serão espécimes das nossas águas ou de ambientes exóticos. E quanto aos primeiros, serão como robots ou zombies, não genuínos cidadãos.
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(2) Gonzalo Lira comenta AQUI as eleições para o Congresso. O problema com as fraudes, é que perante denúncia, as consequências legais apenas serão extraídas se o sistema não estiver corrompido.