sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O CORPO E A PAISAGEM (POEMA INÉDITO DE 1978)

O CORPO E A PAISAGEM*




Na rota do Sol luzente
Astro sempre escuro
Segue um cortejo de anjos
Anunciando a aurora
Que se adivinha
E surge repentinamente
Em todo o seu esplendor





Na brisa misturam-se os cantos das aves
O rumor das árvores sussurrando ao pé do rio
Guinchos pacientes de uma nora
As vozes dos galos e das lavadeiras
Vibram como ecos longínquos
Que o vento transporta longe

Terra de barro queimado
Teus pomares são frescura remanescente
Tuas casas guardam segredos jamais contados


Da chaminé caiada ergue-se
Uma espiral de fumo branco
Uma prece de povo humilde
Lançada ao céu azul de chumbo

Aqui a transparência do ar recorta
As sombras como se fossem o duplo dos objectos
Não há mistério ... só beleza imóvel




Jardim de musgo e  vento
Água morta peixes silenciosos
Guardais segredos antigos
Como a pedra os seus gemidos
Quem poderá cantar o perfume
Das laranjeiras em flor?

Numa tarde quente de Verão
Afundado no prazer contemplativo
Sequioso mas não de água
Apenas da luz de uma estrela
Que se remira no riacho
Cristalino de teus olhos


  



Paisagem de penedos
Musgo ruço sobre cinzento
Verdes dourados de ramagens
Aqui e acolá telhados
Apoiados na aspereza da rocha
Um oratório na curva do caminho pedregoso

Há fogueiras no horizonte
Abrasam a planície de ouro e vinho
Minha terra entre rochas e troncos retorcidos
Sabem a sal, a dor, os teus frutos




Sabor de sombra e de Sol
Maçãs de ouro frutos da China
Abris vosso perfume na noite
Enchendo o ar de fragores suaves
Assim te quero no amor
Frescura
Sumo brotando da pele lustrosa
Fruto ardente do desejo




Entre o céu e a terra
Jardim de sombras misteriosas
Gotas de orvalho
Luar caindo sobre o olival
Olhos espreitam fulgentes
Grilos cantando na noite

Afago o teu corpo docemente
Te amando pela noite fora
Até ao amanhecer
Sem tréguas

Como a onda no mar





-
*Este poema longo abre o volume «Lábios do Vento», livro inédito de poemas escritos entre 1978 e 1982.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

OBJECÇÃO DE CONSCIÊNCIA E PACIFISMO

A lei que estabelece a objecção de consciência ao serviço militar é a própria constituição portuguesa. 
Porém, este direito fundamental, associado a outros direitos fundamentais como o de pensamento e de religião, foi parcialmente esvaziado de conteúdo pelas legislações que vieram «regulamentar» esse tal direito. 
A objeção de consciência - uma vez reconhecida - implica um serviço cívico em substituição do serviço militar obrigatório. Ora, embora não existindo obrigatoriedade desse serviço actualmente, considerar o direito à objecção de consciência como um «direito vazio» seria um grave erro.

Tenho refletido e lido alguns estudos. Tenho ideias a esse respeito, que quero partilhar convosco.

1- Temos de afirmar esse direito consitucional, para nós enquanto indivíduos, seja em que circunstância for. 
Se as condições internacionais fizerem com que Portugal se veja envolvido em conflito armado ou se as autoridades acharem que a situação é suficientemente grave, irão repor o serviço militar obrigatório. Quaisquer pessoas sinceramente pacifistas, seja por motivos de convicções religiosas ou filosóficas, terão a maior dificuldade em fazer reconhecer nessa altura o seu direito de objeção de consciência, na prática.
A objecção de consciência em relação aos deveres militares faz todo o sentido, independentemente de haver ou não serviço militar obrigatório para todos os(as) cidadãos (cidadãs) em idade de serem recrutados(as). 
A obtenção do estatuto de objector protege-nos de sermos forçados(as) a pegar em armas, amanhã.

2- A objecção fiscal a gastos com as forças armadas, no quadro da objeção de consciência.
A objecção fiscal às despesas militares (as quantias astronómicas que são absorvidas em orçamentos militares é uma questão grave na atualidade), deveria ser logicamente reconhecido como extensão do direito de objecção de consciência.
 Infelizmente, os políticos, os professores de direito e todas as pessoas imbuídas de idolatria pelo Estado, consideram a casta militar como «indispensável à soberania nacional», coisa que de facto não é, se é que jamais foi. 
Hoje em dia, em Portugal, certamente que não o é, pois está reduzida ao triste papel de instrumento do imperialismo para manter a sua «ordem» e para garantir internamente que não haja «subversão» de qualquer espécie. As forças armadas exercem, sem dúvida nenhuma, uma função de opressão e em clara violação do que a própria constituição institui na matéria. 
Penso ser totalmente incoerente reconhecer-se o direito dos objectores não participarem no serviço militar e - no mesmo momento - exigir dos mesmos que contribuam com uma parte dos seus impostos, para equipar, manter, sustentar as forças armadas.
Devia-se reconhecer a objecção de consciência no domínio fiscal, recusando fornecer dinheiro sob forma de imposto para matar, destruir e oprimir.

Gostava de saber a vossa opinião. 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

VIVALDI, TRANSCRIÇÕES PARA CRAVO

               Concertos de Vivaldi, transcritos para cravo
                                      por J.S. Bach
                      


Sempre fui adepto de Vivaldi, desde que me conheço. A sua música é penetrante pela melodia endiabrada ou de pathos contido; suas orquestrações deixam-nos sempre agradavelemente surpreendidos. A sua criatividade é imensa, como imensa é a sua obra. Nunca me deixa indiferente. Tenho de confessar que a sua música foi, é, e será sempre o meu grande amor. Mesmo que não seja exclusivo, é uma espécie de âncora para nós podermos mergulhar no universo do barroco. Todos os grandes compositores tinham as suas fórmulas de sucesso. Tinham alguns processos de composição que gostavam de usar sistematicamente. O caso de Vivaldi não difere, neste aspecto, do de Haendel ou Bach. Porém, a capacidade do público erudito apreciar Vivaldi dependeu - em primeiro lugar - do renovo de interpretação da música barroca. Sem este renovo, a música de Vivaldi não soa com todo o seu brilhantismo, como uma joia que fosse encaixada em moldura de baixo valor. Só com a maturidade desse movimento de renovo do Barroco, foi possível finalmente, que o grande público honrasse Vivaldi e a sua imensa produção ao mesmo nível dos maiores génios do barroco, Haendel e Bach. A «boutade» de Stravinsky, de que Vivaldi seria «um compositor que reescreveu 555 vezes o mesmo concerto» , embora tenha piada não é apenas maldosa, é completamente injusta. Para prova da injustiça desse juízo, basta escutar a enorme diversidade estilística e temática, presente no álbum de Enrico Baiano. Este consiste em reduções para cravo de vários concertos para violino e orquestra de arcos, concertos que se tornaram muito célebres em toda a Europa. 
Muito célebres transcrições, tanto para cravo, como para órgão, fez Bach dos vários concertos aqui apresentados, pelo que o especialista poderá comparar com proveito as versões para cravo às partituras para orquestra de cordas. 
A prática da transcrição para instrumentos de tecla era comum na época barroca e foi usada por Bach como forma de assimilar o melhor da música italiana, não apenas Vivaldi, como Benedetto Marcello, Albinoni e outros mestres.
A criação barroca não estava estritamente ligada a um determinado conjunto de instrumentos: a orquestração era deixada ao sabor dos interpretes. A maioria das composições era interpretada por pequenas capelas musicais, dependentes de um príncipe, ou de um rico mecenas, mas com uma composição nada fixa. Os compositores estavam naturalmente conscientes dessas limitações e sabiam que as composições poderiam ter várias leituras, várias instrumentações, sem considerar isso uma «traição» ao espírito da obra. Assim, os baixos contínuos eram sempre improvisados, os ornamentos, das linhas melódicas solistas, muitas vezes deixados ao gosto do intérprete, que deveria doseá-los de acordo com a música e também com o instrumento solista empregue. Na ópera, o canto pressupunha, da parte dos célebres solistas, uma ornamentação elaborada da linha melódica. 
A forma concerto que foi utilizada durante mais de dois séculos, teve origem na escola italiana e em particular veneziana, dos músicos compositores/interpretes para violino. O concerto com instrumentos solistas, tornou-se depressa a forma predominante. No concerto «grosso», em que a orquestra é responsável pela peça na sua totalidade, há lugar para um «concertino», ou seja, um grupo restrito de músicos, enquanto o «tutti» tem como função formar o substrato harmónico e expor os temas principais da peça. 

Não me canso de ouvir estes autores barrocos, em especial Vivaldi. Todo o período é servido por gravações com diversos interpretes, muitos em instrumentos originais ou em cópias de instrumentos da época. Como não existe uma norma universal para interpretar Vivaldi ou Bach ou outros barrocos, podemos encontrar exemplos de gravações bastantes diferentes no pormenor, mas com igual qualidade quer estilística, quer técnica.




[POESIA DE MANUEL BANET] DESEJO DE AZUL (25 Jan. 2017)

Desejo de azul

Com brumas no horizonte

De mar e céu abertos

De montes e planuras



Desejo de azul

Na montanha, no oceano

Onda e vento escutados

Segredos ao anoitecer



Desejo de azul

No olhar de uma criança

Maravilhamento dum mundo

A cada dia por descobrir



Desejo de azul

Na asa da borboleta

Na anémona-do-mar

No reflexo do riacho



Desejo de azul

 Em cada olhar

Fugaz e terno

De nosso encontro


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

POEMA EM PROSA «ABSINTO» (obras de MANUEL BANET)

 ABSINTO (AB-SINTO)*
 O doce amargo, que sabe a conchas entreabertas, quando a maré se retira sobre a areia... o teu corpo nu, resplandecente sob o Sol... o horizonte está raiado de mil estrelas que anunciam a madrugada que nunca chega... a poesia ergue-se como Vénus dos fluxos ondulantes, astro roxo e sempre pleno de mistério... a tua pele de âmbar, os teus olhos vagos, negro da China... a beleza do luar banhando estas paragens desertas... vento que varre a penumbra de todos os restos de pudor da virgem... seu seio cor de malva ilumina as alforrecas, velhos senhores que o mar não deixou subir as escadas do céu... nos canaviais do meu desespero uma esperança desponta... cresce como o fluxo que arrasta montanhas até aos lugares delineados por veios de esmeralda... grés quando se toca no fundo do mar... longe de tudo o que alma humana jamais viu... nem sequer restam as esferas, poliedros e outras figuras que declinam a sua secreta identidade... assim se constrói o final de uma canção sussurrada por vozes longínquas mas sempre presentes no lugar mais escuro da mente...nas salvas de marfim, os reflexos nacarados dos corais emprestam uma bruma ao seu mais precioso segredo... amor de seixos rolados por eras de lágrimas choradas sobre a túnica vestigial da única sombra que enche o ar da noite... não descerres os olhos, ó poeta de olhar triste, lábios carcomidos pelos vermes, não sabes que o teu fim se aproxima? ...E nem sentirás o perfume de uma flor selvagem colhida no desespero do gélido paradigma da Ciência? Não recuses a palavra do que te salvou das trevas obscuras ... as estrelas falam calmamente de alguns terrestres que ficaram esquecidos das suas origens de anjos... as coisas vibram e o teu corpo não pode senão se entregar ao suplício de Grande Perversidade, escrevendo o destino nas veias até atingir as carótidas como a flor do lótus... a mediocridade invade o Mundo, mesmo que lutes, nada a fazer... tomaram tudo, despiram a Noite do sonho, o sonho que Édipo sempre escondeu, mas não desesperes. A manhã chegará. – Não sejas tão presunçoso! Ou será que o Ascaris não tem guarida no teu mundo intestino?! ...Na poesia a única pétala que pode ser colhida é aquela que se desdobra em mil delírios de ópio com os seus estranhos espectros. No entanto, a crueldade não poderá moldar jamais  a tremenda voz do que se nomeia do nome de Deus. Nas fráguas do Oceano, o puro ar ecoa de gritos: Sem réstias de ternura, os dentes da pantera rasgam a pele dos pequenos príncipes... Dizei-me caminheiro, de onde vem o vosso bornal escrito nas areias sempre móveis do deserto? ...Nas faldas de um tam longo sonho só enxerga a luxúria o que passou a instrumento do temível astro da alba... percorre o fundo da abjecção, ó abutre que te nutres de carne podre, de restos ainda quentes de meus irmãos... – Abutre, não temas os caçadores; apenas estão aqui para te avisar que o azul do céu engana mesmo os mais fortes... E que é a vida senão um curto instante derramado duma cuba de vinho cujo mosto se leveda, para jamais retornar ao estado de uva... – Sim, jamais.
                 No vazio de todas as tuas especulações, a tua mente ergue uma muralha de invencível orgulho que a impede de sorrir no momento exacto em que milhares de pessoas atingem as margens da luz... não durmas; a tua salvação reside no ténue fio de uma aranha tecido... só podes fazer o que o destino não te ordena... cobre do teu véu o espanto de teres nascido neste tremendo lamaçal  que te envolve, que te toma a garganta e te faz clamar: “ A Vida é uma grande ilusão!”
             - Dêem-me  um círio, quero perder toda e qualquer esperança de inverter a marcha temerosa do Grande Frenesim da Noite...
             ... A minha pena escreve sem saber que tudo o que derrama se está perdendo num mar de loucura.
 

* Publicado em 1984 nos «Cadernos O Fingidor» (edições MIC), faz parte da coletânea de poemas «Lábios do Vento»

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

AMADEU de SOUZA CARDOSO E O MODERNISMO

NB: Na difícil escolha de obras para ilustrar a qualidade impar do mais importante modernista portugês, guiei-me apenas e somente pelo meu gosto pessoal, mas deixo aos visitantes do blog a tarefa de encontrarem suas telas ou gravuras preferidas.





                                                                        Natureza morta - 1913


                                                      

cabeça 



xilogravura - caça ao tigre




a chalupa 

domingo, 22 de janeiro de 2017

ALGUNS ENCONTROS COM ANIMAIS

1/ O cavalo branco apascentava calmamente no monte, lá ao longe, na orla de um formoso bosque. Ele apareceu-me várias vezes. Nunca pude decidir se o cavalo era alucinação ou se era real. O monte e o bosque são visíveis nas traseiras da minha casa. Sempre que olho para lá, lembro-me da estranha visão, que nunca mais voltei a ter.
2/ No pino do Verão, vi uma linda serpente, de mais de um metro de comprimento, estendida sobre o muro do jardim. Eu tive todo o tempo para a observar da janela. Depois dum pedaço, deslocou-se com movimentos ondeantes. Rastejou para um matagal nas traseiras, uma propriedade abandonada. Não tive receio; fiquei fascinado com a ondeante sensualidade de sua locomoção tranquila.
3/ Os gatos das redondezas, embora eu não lhes dê comida, vêm ao jardim, terreno seguro e calmo para eles. Eu não os enxoto. Costumam preguiçar à sombra das tuias. Não fogem quando entro pelo portão do jardim, apenas me fixam tranquilos com o seu olhar.
4/ Um cão de guarda da vizinha, um são bernardo, está sempre a vigiar quem passa atrás do portão. Considero-o um amigo pessoal, que cumprimento de formas diversas, sempre que passo frente deste portão. Ele exprime alegria efusiva, pulando e ladrando, quando me vê, no meu regresso, após uma curta ausência de alguns dias.
5/ Sonho, frequentemente, com aves; sobretudo com gaivotas, com maçaricos e outras aves da orla marítima. Estou sempre atento às aves selvagens, esteja eu onde estiver.
6/ Estava uma vez, num cocktail, no último piso dum hotel em Lisboa. Vi através da larga vidraça o que me pareceu ser um falcão ou águia de pequeno porte. Aterrou num rebordo imediatamente abaixo da janela envidraçada do restaurante panorâmico. Depois desta insólita visão, decidi investigar se  aves tipicamente selvagens fazem incursões dentro das cidades. Foi então - e só então - que soube tratar-se de um fenómeno relativamente vulgar...
7/ Ouvi, num recinto público, o canto melodioso duma ave, muito diferente de tudo quanto estou habituado a ouvir. Tentei observar a ave canora pela janela, mas não consegui. Gosto de ouvir o canto das aves e tento identificar as espécies correspondentes. Estranhamente, o mesmo fenómeno ocorreu algumas semanas depois, exactamente no mesmo local.
8/ Sonhei com uma estrela-do-mar, que se encontrava na zona de rochas entre duas praias, próximo de minha casa. Na manhã seguinte, como de costume, fiz um passeio à beira-mar. Lá estava ela, morta ou moribunda, sobre a areia da praia, virada para cima. Escrevi um conto/poema sobre este encontro.
9/ Na mesma zona costeira vi um grande cardume de peixes bastante grandes, do alto de falésias, durante uma das minhas caminhadas quotidianas. Olhei para baixo e vi o mar, o substrato rochoso, as zonas que ficam acima e abaixo do nível do mar. Nunca tinha observado tal espectáculo embora muitas vezes veja o dorso prateado de peixes que aparecem à superfície das ondas. Mas desta vez, cada peixe era perfeitamente visível à transparência das águas calmas. Contei para cima de uma dúzia. Aproveitavam a maré para se chegar à zona intertidal. Nunca mais vi algo assim, pelo que talvez tenha observado o raro momento da desova, neste recanto calmo e nutritivo para a nova geração.