Existem 17 versões desta paisagem, « O Império das Luzes», do pintor surrealista René Magritte. Nutro uma grande admiração por este pintor, pela sua originalidade que sobressai até mesmo em relação ao vanguardismo noutros surrealistas seus contemporâneos.
As suas telas questionam, colocam o espectador perante um jogo inteiramente mental, por vezes, desencadeando um estranhamento, quase à maneira de Fernando Pessoa*: O estranhamento do quotidiano, da paisagem quotidiana, dos gestos, das palavras.
Esta obra, que eu tive muito tempo pendurada sob forma de «poster» no meu quarto, apela ao nosso sentido visual, como é evidente, mas para além disso, dá-nos uma sensação vaga de inquietude, de insólito pois - num primeiro momento de análise - encontraremos apenas elementos «banais». A casa é banal, como o são as luzes e o reflexo destas sobre o lago, a claridade de um céu com nuvens dispersas, um céu de fim-de-tarde de Verão... Tudo isto é banal.
Menos banal, porém, é o lusco-fusco da cena, ao nível da casa e das árvores, confrontado com o céu azul. Esta justaposição causa uma sensação de insólito inexplicável, não obstante a nossa experiência de paisagens indicar-nos como sendo possível que a cena próxima do solo seja crepuscular, enquanto o céu ainda é iluminado por raios solares, podendo apresentar-se com cor azul clara. Sua luminosidade é acentuada pela presença de nuvens alvas, como farrapos de algodão.
A visualização da paisagem - ela própria - é subjetiva, independentemente do realismo e materialidade banal, «burguesa» do eventual modelo. Pensa-se que o artista utilizou como modelo uma casa realmente existente nos subúrbios de Bruxelas. Este facto, assim como o estatuto ímpar dentro da obra do artista, que não fez outra série de telas sobre um mesmo motivo, além desta, abrem as portas à nossa curiosidade.
Magritte é discursivo, mas ao nível do próprio trabalho de pintor. Ele não diz por que razão fez isto ou aquilo, nem o que estava a pensar quando decidiu representar determinada cena. Ele deixa que os seus quadros «falem» por eles próprios, que mostrem a evidência de uma meditação interior, de um olhar que interroga o real, sem qualquer laivo de «ingenuidade», mas sem concessões a psicologismos ou intelectualismos, como o fizeram outros (surrealistas ou não; contemporâneos ou não).
Em Magritte, o intelecto do observador é provocado a «ler» o quadro, a uma aventura de reflexão mental pura, em rutura com a espessa camada de convencionalismo reinante na sociedade e que interiorizámos sem crítica.
René Magritte é um bom antídoto à sociedade do instante, do convencional, da pulsão hedónica, à sociedade «de massas» que está no exterior e interior de nós próprios, que penetra nas circunvoluções cerebrais de todos nós, sem nos darmos conta.
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*Fernando Pessoa (1888-1935) poeta e filósofo modernista português que dedicou muitas páginas de prosa e muitos poemas à análise de estados de estranhamento perante o real.