Muitas pessoas aceitam a situação de massacres de populações indefesas em Gaza e noutras paragens, porque foram condicionadas durante muito tempo a verem certos povos como "inimigos". Porém, as pessoas de qualquer povo estão sobretudo preocupadas com os seus afazeres quotidianos e , salvo tenham sido também sujeitas a campanhas de ódio pelos seus governos, não nutrem antagonismo por outro povo. Na verdade, os inimigos são as elites governantes e as detentoras das maiores riquezas de qualquer país. São elas que instigam os sentimentos de ódio através da média que controlam.
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quinta-feira, 2 de agosto de 2018

CRÓNICA SINO-COREANA - PARTE III (EDUARDO BAPTISTA)

     
Na semana passada, explor​á​mos questões​ relativas ao​ povo Joseonjok de Yanji, com foco especial na relação que eles têm com a Coreia do Sul e com a China. Esta semana, desviamos o nosso olhar das duas grandes etnias da cidade de Yanji, coreana e ​h​an, para podermos concentrar-nos numa comunidade de imigrantes muito especial: os norte-coreanos de Yanji. Sim, para quem não saiba, há muitos norte-coreanos, vivendo tranquilamente fora das fronteiras do regime totalitário.

                            

Pessoalmente, acho irónico que só depois dos 20 anos é que tenha começado a aperceber-me como a Coreia do Norte é incorrectamente caracterizada por muita da média ​a​mericana, o que naturalmente influencia a média ​p​ortuguesa.
Antes, eu também fazia parte da distribuição de informação falsa ou exagerada sobre este regime. Ansioso ​por​ impressionar compatriotas portugueses, que nunca tinham conhecido um luso-coreano, muitas conversas decorriam desta maneira:
"Ah, não és chinês? Então esses olhos em bico vêm donde?" pergunta um bacano qualquer à frente do Bar 148, fornecedor das cervejas de meio-litro mais baratas do Bairro Alto. O tom dele é simpático, revela ignorância e ingenuidade, mas não tem conotação racista.
"É porque a minha mãe é coreana..."
"Do norte ou do sul?" responde ele com um sorriso malandro.
Eu respondo-lhe com outro sorriso, ainda maior. Tendo ouvido esta pergunta tantas vezes, a minha resposta já estava bem ensaiada; era uma que dava para puxar mais conversa.
"Mas estás maluco ou quê? Os do norte não podem sair do país, nem para viajar, quanto mais para emigrar."
"A sério? Mas então o que é que acontece se um deles tentar sair dali?" pergunta o meu ouvinte de boca aberta.
"Quase de certeza, vai ser apanhado, arrastado de volta para a Coreia do Norte, torturado e finalmente fuzilado. Ás vezes a sua família recebe o mesmo castigo!"
"É pá, isso nem a PIDE faria!"
E assim ​prosseguia​ a conversa, uma exageração após outra, até eu finalmente ​decidir alcançar os meus amigos que, entretanto se tinham distanciado,​ fartos da minha ​tagarelice​.
Proceder por generalizações, a torto e a direito,​ é marca da estupidez, enquanto a nuance é indício de maturidade e reflexão​. ​Espero ​afastar-me da primeira e aproximar-me da segunda​; ​espero que a história verídica de hoje vos motive​ a pesquisar mais acerca da Coreia da Norte, ​a ​questionar as narrativas da televisão … até mesmo​ a passar uma semana em Pyongyang. Tendo eu​ feito esta mesma viagem, garanto-vos que ela é perfeitamente segura, o passaporte português é visto lá com bons olhos.
                 

Em Yanji, o Hotel Ryugyong (류경호텔​   ​/ 柳京) não se esconde num qualquer beco. Não há nenhuma palavra-passe para entrar, ​ ​nem se vêm guardas armados​. Parece ​orgulhoso da sua identidade norte-coreana. ​ "Pyongyang" (평양/平) encontra-se​ em letras​ perfeitamente ​visíveis​ no letreiro.
Ao aproximar-me da porta giratória do hotel vejo, através do vidro, uma moça jovem a sorrir-me. Contente com esta recepção inicial, entro pela porta. A minha amigável anfitriã​, vestida de trajes tradicionais (​hanbok), cumprimenta-me​ em coreano e ​conduz-me​ para o segundo andar, onde se encontra o restaurante. A clientela parece ser composta quase inteiramente por norte-coreanos, nota-se apenas ​um casal chinês, uns turistas ​como eu.
A moça transfere-me para uma camareira alta, de olhar frio, que​ me​ ​conduz a uma mesa, rodeada por mesas onde estão instalados clientes norte-coreanos. Pergunto-lhe em coreano que especialidades me recomenda. Sem parecer preocupada, ou surpreendida com a minha pronúncia sul-coreana, responde-me: «massa de Pyongyang, tortilha​ coreana, carne de pato grelhada». Decidi-me pela opção mais barata e enquanto esperava, fui ouvindo os diálogos à minha volta, na minha língua materna: … Negócios com chineses e com josondjok, queixas sobre colegas, viagens de regresso a Pyongyang.
Estes norte-coreanos de Yanji parecem ter desprezo pelos​ chineses e falta de confiança no povo que partilha a mesma língua. Recordo ter ouvido uma conversa, aproximadamente assim​:
'Então, já fechaste o negócio com aquela companhia de Tumen (uma cidade que faz fronteira com a Coreia do Norte, a 50km de Yanji)?’ perguntou uma voz rouca, algo enfadada.
'Não sei o que está a acontecer, irmão, mas aqueles ​djosonjok ​[nome dado aos cidadãos chineses de etnia coreana] estão a demorar anos a finalizar o contrato...' respondeu de forma educada​ a​ outra voz, mais nervosa.
'É difícil confiar nessa gente...dizem que são coreanos, mas a verdade é que pensam como Han zu [a etnia ​maioritária​, constituindo 90% da população chinesa]; são matreiros, não penses por um segundo que eles ​nos veem​ como irmãos, ou ​o quer que seja​. Se eles não soubessem falar chinês, garanto-te que me mantinha bem afastado deles,' disse o mais idoso.
'Sim, precisamos deles mais do que eles precisam de nós. O que dava jeito era ter uma dessas tradutoras treinadas em Pyongyang para nos acompanhar nos negócios, estas miúdas daqui não aprendem nada, passam o dia inteiro a falar coreano e a servir pessoas como nós, o chinês que elas falam só dá para descrever os pratos e contar números,' desabafou o mais jovem.
'Nem sonhes com isso, as tradutoras são valiosas demais, o país precisa delas para o turismo, ou para ajudar na comunicação do partido com estrangeiros, Pyongyang não as iria desperdiç​ar em negócios pequenos, como o nosso;' o mais velho acendeu um cigarro, dando grandes bafos que passavam ​por cima das nossas cabeças​. ​Continuei de ​costas viradas, a ouvir, ocasionalmente ​fingindo ​que estava a falar ​em chinês​ ao telefone, para eles não suspeitarem ​de mim​.
'Se as cantoras lá de baixo pudessem passar uns anos a estudar chinês, talvez nem fosse preciso pedir ajuda a Pyongyang...' sugeriu o mais novo.
'Não sejas parvo! Achas que eles nos deixariam fazer isso? Essas raparigas são filhas de gente poderosa do partido,​ entendes? Achas que um general ou um ministro iria deixar a sua filha subordinar-se a um negociante? Nunca na vida!' ​exclamou​ o mais idoso, ​numa​ voz claramente ​enfadada​.
'Sim; mas, se calhar, até lhes fazia bem aprender chinês, pode ser útil no futuro, quem sabe...'
'Cala-te e não fales de gente que nos pode trazer problemas.' disse o mais idoso friamente, parando de falar durante alguns segundos, enquanto uma empregada de mesa passava por eles.
Acabada a refeição​ fiquei a pensar​: quem serão estas cantoras? Chamo a empregada, que me informa que todas as noites há um concerto, depois do jantar, ​em que atua​ um grupo de jovens muito belas, cheias de talento.
Pago a conta e desço, encontrando a moça do sorriso esplendoroso, que me leva até uma sala grande. Num palco iluminado por luzes holográficas fluorescentes, ​encontram-se quatro ​mulheres, das mais belas ​que já alguma vez vi.
Parecem ter saído de um conto de fadas; as suas saias são compridas, largas nas ancas, em tecido reluzente​ diferindo entre elas apenas na cor dos vestidos e nos instrumentos que cada uma toca. A de verde esmeralda empunha uma guitarra eléctrica, a de azul um saxofone, a de amarelo claro uma flauta, e a de cor-de-rosa um baixo eléctrico. As suas faces, perfeitamente maquilhadas, emitem um brilho pálido; suas expressões serenas ​dão uma certa solenidade à ocasião, como se isto não fosse meramente uma rotina diária, para ajudar à digestão do jantar de uns quantos turistas.
Pouso a minha mala no chão, com intenção​ de tirar a minha máquina fotográfica, mas reparo num cartaz ao lado do palco, onde está escrito em caracteres grandes: "Proibido tirar fotografias." Limito-me a aguardar o espectáculo sentado a uma das mesas vazias. No outro lado da sala, um grupo de turistas chineses ​parece estar entusiasmado​ com a actuação que se aproxima.
De repente, as luzes da sala escurecem e o quarteto dá um passo em frente. Uma faz o sinal de «O.K.» e a música de fundo começa a tocar.
A música não é nada parecida com a que se ouve nos canais de rádio do Ocidente. Os temas são clássicos e conservadores; as letras falam de paixão inocente entre dois amantes, de nostalgia pela terra natal, e de tristeza ​pelos pais envelhecerem​.
O fado português também se baseia nalguns destes temas, mas leva o sentimento de angústia até ao extremo, o que não é compatível com a placidez desta música. O descontrolo, que em doses​ pequenas, confere calor humano à música, é alheio totalmente aos valores éticos impostos pelo governo norte-coreano, ​​contrário​ a qualquer tipo de experimentalismo ou de libertação ​individual. Os versos falam sobre paixão sem introspecção, de tristeza sem que se considere jamais a autodestruição, ou duma nostalgia sem o pessimismo que a torna verosímil.​ Apesar de Yanji estar longe dos centros urbanos de Pequim e de Xangai, senti que estava a observar algo muito comercializado, ​como um anúncio muito bem produzido, mas que só consegue​​ aliciar os olhos do espectador, não o coração.


Todas elas possuem vozes de soprano, capazes de reproduzir o timbre de cantora de ópera. Mas não há ​teatralidade​ nesta atuação; elas não se deixam levar pelas emoções, mantendo sempre a mesma expressão serena e a coreografia sincronizada, um joelho alternando com o outro, a dobrar ligeiramente para dentro, de acordo com o ritmo da música. No fim de cada canção, elas trocam de posição no palco e de instrumento, mostrando-se​ capazes de executar peças ​com​ elevado grau de dificuldade.
Há uma perfeição mecânica na sua rotina bem oleada, ​de tal maneira que, ​de cada vez que um turista​ com ​um bouquet de flores sobe para o palco, obrigando uma delas a forçar um sorriso​ e a​ pegar no fardo perfumado e ​colocá-lo delicadamente num canto qualquer, o resto do grupo ajusta-se automaticamente, ou​ cantando​ mais alto para compensar, ou deixando a música de fundo tocar mais alguns segundos até​ ao​ próximo compasso, recomeçando então ao mesmo tempo, ​sem um piscar de olhos​ que seja. 
Entediado, olho para trás. Três empregadas de mesa, incluindo a moça do sorriso esplendoroso, estão sentadas numa mesa ao fundo, ocupadas a compor flores em bouquets para venda aos turistas. Ao lado delas, de pé, está o patrão do restaurante; um norte-coreano de calças pretas e camisa formal cinzenta, com os botões apertados até ao pescoço. Apesar dum corpo magro, a cara dele é larga e um pouco espalmada, algo realçado pelo seu corte de cabelo, rapado nos lados, com um bloco rectangular no topo. Observa a actuação de braços cruzados e sobrancelhas franzidas, um olhar de avaliador, em vez de apreciador.
Tendo decidido​ que tinha visto o suficiente, levanto-me e caminho em direcção à saída. O patrão vai ao meu encontro, substituindo o seu ar sério por um sorriso artificial de vendedor. Este matreiro, não sabendo falar chinês, só diz "​xie xie" ​mil vezes, ao mesmo tempo que gesticula com os dedos apontando as flores. Aceno ​com a​ mão (gesto que significa "não", em muitos países orientais) e faço cara de cansado, e ele afasta-se, retomando​ a sua pose de​ inspector.
Antes que eu ​chegue​ ás portas giratórias da saída do hotel, a moça de sorriso esplendoroso de repente aparece-me à frente. Parece estar preocupada com a minha saída.
"O patrão diz que parece não ter gostado do concerto; porqu​ê?" pergunta com exagerada curiosidade. Decido ser diplomático.
"Mas eu nunca disse isso! Adorei, achei as cantoras tão bonitas, cantam muito bem também," respondi, com um sorriso artificial, como o do patrão.
"Então porque é que não comprou flores?" perguntou ela num tom magoado, que parecia ser genuíno.
"Mulheres como aquelas quatro senhoras merecem que lhes ofereçam carros, não flores. Se eu não fosse apenas um pobre estudante estrangeiro, de certeza que lhes comprava um," respondi, na esperança que isto fosse ​dar uma conclusão à conversa.
A moça franziu a sobrancelha; não parece ter percebido o meu sentido do humor, mas aproveitei-me do seu estado de confusão para finalmente sair do hotel Ryugyoung.
Atravessei a rua, chamei um táxi usando a aplicação Didi e, ao fim de 2 minutos, um Audi A4 apareceu-me​ ​à​ frente. De dentro do carro, olhei uma última vez para as portas giratórias. A moça ainda lá estava, seguindo-me com os olhos, mas sem o sorriso esplendoroso ou a expressão amistosa, antes um olhar de desconfiança.
Reflectindo no que tinha feito, rapidamente tornou-se tudo muito óbvio​: o Hotel Ryugyong é um dos muitos estabelecimentos norte-coreanos na China vocacionados para gerar ​o maior lucro possível, para benefício do regime de Pyongyang​, que tem estado a sofrer por causa das sanções impostas pelo Ocidente. 



terça-feira, 12 de junho de 2018

A VIRAGEM, NO IMBRÓGLIO COREANO

                   





Não foi a cimeira em que, definitivamente, seria assinado o tratado de paz entre a Coreia do Norte e os EUA, mas foi um passo importante para lá se chegar.
A normalização das relações entre ambos, vem tornar possível uma sequência de conversações de alto nível, já anunciadas, cujo fim é a conclusão de um tratado que assegure a desnuclearização da península coreana, por um lado, e por outro, a desmilitarização ou seja, deixar de estar permanentemente estacionado na Coreia do Sul, um nível de tropas (americanas) capaz de levar a cabo uma invasão. 
As perspectivas são muito positivas, para Trump e para Kim. O conteúdo concreto do acordo será tornado público dentro de pouco tempo. Não será um acordo de paz formal, mas será uma extensa carta de intenções, que obrigará as partes e deverá ser a chave para a continuação do caminho diplomático para a resolução do imbróglio coreano.
As pessoas das duas Coreias devem estar muito felizes. Devem experimentar um sabor de alívio, pois eram permanentemente sujeitas ao pavor de uma nova guerra e, nos últimos tempos, com a agravante de envolver armas nucleares.

Será que os apologistas de uma nova «Guerra fria» perderam completamente a jogada? 
Pela sua tenacidade em causar tensão com potências rivais dos EUA (Rússia e China, principalmente), duvido que não estejam agora a preparar algo. Eles (Estado profundo, oligarquia...) precisam da tensão e do medo permanente duma guerra, para manter o seu poderio.  

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

AS TENDINHAS DE SEOUL -por EDUARDO BAPTISTA*


AS TENDINHAS DE SEOUL*


Na metrópole gigantesca de Seoul há mil e uma maneiras de passar o tempo. O conceito de “passatempo” é levado ao seu ponto extremo,  nesta sociedade.
A partir do momento em que o assalariado sul-coreano atinge uma posição sénior na sua empresa, as associações desportivas passam a desempenhar uma função vital na sua vida pessoal. À medida que os compromissos profissionais e sociais impostos pelo trabalho na corporação diminuem, o homem sul-coreano tem cada vez mais tempo livre, o que - num certo sentido - o incomoda.
A mega-urbe de Seoul, à primeira vista, parece esvaziada de espírito. Aqui, as duras realidades da concorrência no mercado provocam um atrofiar do espírito humano.
Mas aqui, como em qualquer cidade, o espírito refugia-se principalmente na memória viva de suas gentes.
Para realmente penetrar no interior de uma cultura, para se poder sentir suas inúmeras manifestações e compreender as suas nuances, é preciso ir para o lugar certo.
Em Portugal, talvez Belém seja um lugar onde se possa respirar algo da glória longínqua dos Descobrimentos ou - se calhar- antes numa taberna escondida do Bairro Alto, que ofereça fado vadio ao vivo, aquela música que escorre pela alma e aquece o corpo.
Mas em Seoul, uma das cidades mais modernizadas e ocidentalizadas do Oriente, tais lugares são difíceis de encontrar; não existe cidade velha aqui, nenhum bairro onde se possa apreender a Coreia antiga, quando não existiam Coreia do Sul e do Norte, apenas o reino de Joseon. Um museu aqui, um palácio acolá, demasiado dispersos para poder criar um certo equilíbrio estético, que Lisboa ainda consegue – a custo – preservar.

A cidade tem sido arrastada pela corrente da modernização acelerada, fenômeno que tem sido causa principal da separação gradual entre a atividade económica citadina e o seu passado, a sua história. A mélange entre prédios antigos e novos não existe: o que se vê, por todo o lado, são escavadoras.
A cidade está sempre a crescer, a evoluir, cada vez mais eficiente, proporcionando uma vida aparentemente mais confortável aos seus habitantes. Assusta ver a força das grandes cadeias, como a Starbucks, que parece ter conseguido espalhar, no mínimo, três lojas por cada grande rua do centro da cidade. Não existe uma “Alfama de Seoul,” nenhum lugar que nos aqueça a alma, nem um lugar onde ressoem os ecos de momentos históricos.

Ainda assim, encontrei algo semelhante nas tendinhas de Seoul. Conhecidas como pojangmacha – literalmente o “Carrinho de cavalo empacotado”– é difícil incluir tais tendas na categoria “restaurante”: os petiscos coreanos são aí vendidos, mas não há empregados de mesa. Estas tendas são famosas em todo o país, mas não há nenhum painel, nem qualquer tipo de publicidade em torno destas tendinhas. Erguidas ao fim da tarde, desmanteladas de madrugada, as pojangmacha são únicas, pois não têm presença física permanente.



Mas, esta e outras características, fazem com que sejam o lugar perfeito para ver e ouvir o povo; aqui, pode-se interagir de forma desinibida com os coreanos.
As tendas do lado direito da rua, especializam-se num só petisco ou numa pequena variedade deles, em geral comidos em pé. O ambiente descontraído permite observar e interagir com os fregueses à volta da tenda, ao ar livre.



Enquanto experimentava um chouriço glutinoso (conhecido como sundae) reparei que uma rapariga, talvez estudante universitária, estava a comer este mesmo prato, com uma mão, enquanto a outra folheava um livro de preparação para o exame «TOEFL»*(*Exame para obter um diploma/certificado de aptidão em língua Inglesa)

Se fixarmos este momento e o relacionarmos com as milhares de escolas privadas que ensinam o Inglês, espalhadas pela cidade, podemos compreender muito sobre a vida dos estudantes de Seoul: Quando chega a altura dos exames, a mente desta moça e muitos outros jovens, entra em «modo robótico». Para a maioria, o que desencadeia esta mudança de estado mental é o medo pânico de falhar e isso reflete-se nos seus métodos de estudo.
Voltemos para a jovem a comer o seu petisco: Por mais que se possa louvar a sua aplicação a estudar, duvido que ela jamais tenha conversado em inglês com um estrangeiro. TOEFL, TOEIC, ou qualquer outro exame, fariam sentido se destinados a certificar competências linguísticas. Porém, ignoram a locução, focando-se somente na memorização. É trágico ver que uma rapariga muito jovem se esgota decorando listas de palavras que eu - tendo estudado em Inglaterra- ou os meus colegas e amigos ingleses, nunca usaríamos na vida real. Esta rapariga é a primeira pessoa na Coreia que vejo a «marrar» enquanto come mas, infelizmente, não é a primeira que observo a usar um método de estudo ineficaz e cansativo.

Curiosamente, encontrei alguém com uma opinião interessante sobre este tema do stress educacional e sobre muitos outros, um pouco mais adiante, numa tenda vendendo umas panquecas recheadas de feijão doce.


“Os jovens coreanos são gananciosos demais,” diz An Nyeong Su, professor reformado de 65 anos.

“Há muitas pessoas que já me olharam de alto por eu fazer este trabalho. Outros, ficam completamente estupefactos e perguntam-me para que é que eu continuo a trabalhar, já que tenho um mestrado, sou da classe média e vivo sem problemas financeiros", continua An, enquanto espalha o creme de uma nova panqueca na chapa quente.
Em 2011, depois de ter passado 30 anos a ensinar língua coreana aos estrangeiros, o Senhor An decidiu que não iria passar o tempo da reforma a jogar golfe e a ver televisão, como a maioria. À procura de novas experiências, decidiu fazer algo que envolvesse trabalho manual, qualquer coisa que fosse o oposto da sua carreira como professor. Tendo ouvido que havia uma vaga na zona dos «pojangmacha» para quem quisesse aí abrir uma tenda, não hesitou em pagar a licença e começou imediatamente à procura dum petisco ao gosto coreano.
Sete anos depois, confirma-se que o Senhor An escolheu bem o seu petisco: jovens, idosos, ou turistas, todos se deixam tentar pelas suas panquecas. O Senhor An trata todos os clientes com muito respeito, o tom de voz é natural e o seu olhar calmo. Vê-se que ele gosta mesmo daquilo que faz.

“O que muita gente não sabe é que meu trabalho aqui é melhor do que numa empresa,” observa ele, sorrindo. “Quando preparo uma destas panquecas, não penso em mais nada, senão naquilo que estou a fazer,” continua.
Pergunto-lhe qual a sua opinião sobre o facto de muitos jovens coreanos acharem que seu país é um “inferno”, um país onde o stress educacional é tão grande e as oportunidades de emprego tão escassas, que é impossível ser-se feliz (dizem eles).
“Na minha opinião, o problema é que os nossos jovens são demasiado gananciosos. O problema é que eles só querem integrar as universidades e empresas de maior prestígio,” responde sem hesitação.
Perguntei-lhe então se alguma vez ele sentira dificuldades, ou algum tipo de stress, ao criar os seus filhos. “Não, nunca tive,” diz An. “Nunca entendi aqueles pais que falam sobre os filhos como se fossem um fardo. Sempre eduquei os meus de maneira suave, sem lhes impor nada.”
Não estava eu à espera de encontrar cidadãos de Seoul com esta mentalidade, de quem vive para apreciar a vida; não para «mostrar o seu valor» aos olhos dos outros.
Em Portugal, com o sol a brilhar, a praia mesmo ao lado e o som do mar a acompanhar, sentir-se contente com o que se tem, não é demasiado difícil.
O mesmo não se pode dizer em relação aos que vivem numa cidade com uma densidade populacional correspondente a três vezes a de Portugal, sob um céu cada vez mais afetado pela poluição e um mercado de emprego tão competitivo, que a Coreia do Sul tem estado no topo da tabela … de taxas de suicídio.
Mas ter encontrado uma pessoa como o Senhor An, capaz de se abstrair das pressões impostas pela sociedade onde vive foi, sem dúvida, reconfortante. Agradeci-lhe a entrevista e segui caminho, na esperança de encontrar mais indivíduos interessantes.













….
Agora, é altura de investigar as tendas do lado esquerdo da rua. Maiores que as do lado direito, estas são autênticas pojangmacha. Completamente cobertas, com um plástico transparente e amovível, que funciona como porta de entrada, estas tendinhas têm um charme rústico, sem pretensões.



Os mariscos e peixes estão expostos à frente do cliente, prova suficiente da qualidade da matéria-prima. 
Aqui não existem sofás, como no Starbucks; os clientes sentam-se em bancos de plástico, uma mão sobre a mesinha e a outra, segurando um copito de soju, a bebida alcoólica mais apreciada pelo povo.





Após ter realizado a primeira entrevista com a dona de uma destas tendas do lado esquerdo da rua, comecei a sentir-me muito mais à vontade, neste ambiente. Nos cinco dias que passei a frequentar as tendas do lado esquerdo, acabei por conviver com muitos sul-coreanos idosos e de meia-idade, uma experiência que seria difícil de conseguir noutro lado.
Há certos diálogos que valem a pena ser transcritos, pois ilustram certas particularidades deste povo.


O senhor da direita (na foto acima) é um romântico e nostálgico do passado, em que Seoul não era a metrópole modernizada de hoje. Ninguém questiona a modernização em si mesma, mas é interessante que estes habitantes sintam falta de uma certa imprevisibilidade: ela está ausente nos restaurantes de hoje. Ele procura nestas tendas o ambiente reinante na Seoul dos anos setenta e oitenta.

“Agora há muitos restaurantes que oferecem comida com a mesma qualidade, por um preço muito mais baixo que as pojangmacha, por isso é natural que elas estejam em perigo de extinção. Mas nós, sendo já velhos, não queremos saber do preço, continuamos a vir aqui por causa das memórias”, disse ele.

“Memórias belas?”, perguntei-lhe.

“Sim! Memórias de amor! As pojangmacha eram aquele lugar onde se faziam e desfaziam ligações amorosas. Ainda me lembro de um dia, em que passei horas numa destas tendas, à espera da rapariga de quem eu gostava, sem saber se ela me tinha pendurado ou não, pois nessa altura não existiam telemóveis,” respondeu com paixão, enquanto os amigos dele iam fazendo troça. Mas ele ignorava-os e continuou...
“Tudo amadurecia nas pojangmachas; o amor e a alma também.”



Kim Su-Ja, de 74 anos, é uma veterana desta área. Dona duma tenda há mais que 40 anos, suas memórias são, propriamente, o testemunho vivo da ascensão e declínio das pojangmacha.

“Só depois de Lee Myung-Bak ser presidente [em 2006] é que o meu negócio (e o dos outros, neste beco), começou a sofrer.”
“Como eram as coisas dantes?”
“Antes, só neste beco havia três discotecas. À frente da minha tenda, havia um palco onde meninas de mini-saia dançavam - todas malucas - até de madrugada; nessa altura é que havia negócio! Mas agora isto não está a dar.”

“Os Chineses são os melhores!
- Os Americanos...esses não os aturo, só vêm cá beber.
- Os Japoneses parecem ser um pouco avarentos: pagam tudo a meias e nunca pedem mais que 2 pratos, disso eu não gosto.
- Os chineses são o oposto, há sempre uma pessoa que paga a conta e essa pessoa pede sempre um pouco de tudo.
Nem quero falar dos Americanos, tanto me chatearam que já não os sirvo.”

“Em relação ao álcool, não há dona mais severa que eu. Não sirvo pessoas bêbadas, não vendo mais do que duas ou três garrafas de soju a qualquer cliente. Às onze e meia de noite fecho a tenda e vou para casa.”
“Pois, outros patrões de tendas nesta rua dizem-me que chegam a vender 10 garrafas a um grupo de clientes…”
“Eu não sou desse tipo, esses patrões não sabem o que estão a fazer.”


Choi Yong-Su, uma Senhora de 54 anos, é nova neste beco. Abriu a sua pojangmacha em 2014 e espera lucrar o mais possível, até completar 60 anos, altura em que planeia reformar-se e regressar à sua terra natal, em Gangwon-Do, uma província rural ao sul de Seoul. 
Dotada de um otimismo inabalável, a Senhora Choi tem muitos clientes fiéis, que a adoram pela sua empatia. Faladora e sorridente, estabelece laços de amizade com seus clientes. Isso é uma das razões pelas quais a Sra. Choi gosta do seu trabalho.

Sra Choi: «Já não me lembro do nome dela, mas uma vez uma rapariga japonesa deu-me uma gorjeta de 150,000 Won (120 euros). Ela estava deprimida porque o namorado coreano faltou a um encontro.
“- Ela falava um pouco de coreano. Perguntou-me: como é que as coreanas reagem quando um namorado age assim?
Eu respondi-lhe: Aqui não se perdoa, mandamos mensagem dizendo-lhe que ele nunca mais apareça à nossa frente e assim a relação acaba. Imediatamente, ela enviou uma mensagem deste tipo e começou a beber sozinha. Como tinha pena da pobre miúda, servia-a e ia dando-lhe palmadinhas nas costas. De repente, ela sacou de 100,000 Won da carteira e entregou-me esse dinheiro! Eu recusei, claro, mas ela disse que no Japão este tipo de gorjetas era normal.
Nessa altura, o namorado entrou na tenda e ela começou logo a fazer uma grande cena, dizendo-lhe que não queria mais nada com ele, etc.
Falei com ela para a acalmar, dizendo-lhe que o namorado cancelou o encontro porque estava ocupado com seu trabalho (o que era verdade), e não por já não gostar da rapariga. Num repente, ela aceitou o meu conselho, agarrou o braço do namorado e - antes de sair porta fora- virou-se para mim …  “Senhora Choi!”, gritou e atirou 50 000 Won para o ar. Não queria aceitar tanta gorjeta, contudo os dois disseram-me que eu merecia.»

Porém, ser dona de uma pojangmacha também tem as suas chatices. Muitos dos clientes sentem-se mais à vontade a embebedar-se no ambiente informal e rude dos pojangmacha em vez dos restaurantes convencionais, com teto e porta. Álcool em excesso, mais o stress dos problemas pessoais, fazem com que muitos clientes se portem de uma forma mal-educada, ou mesmo violenta, nestas tendas.

A cena abaixo, bastante cómica afinal, em que estive envolvido, tem a ver com bêbados.
Três homens bêbados arranjaram um pretexto para se meterem comigo, enquanto eu estava a entrevistar a Senhora Choi.
“Ó miúdo! Nós agora mesmo usámos palavrões, porque é que continuaste a filmar?” perguntou-me um dos senhores. A sua fala era arrastada, tinha bebido muito.
“Não, não senhor, não tem que se preocupar! Eu estava a filmar a senhora Choi, não a si ou os seus amigos,” respondi-lhe da maneira mais educada possível.
“Ok, Ok… mas isto não pode ir para os jornais, ouviste? Senão, hás de ter problemas comigo!” avisou-me, com um certo pânico na voz.
“Nada desse género, senhor, isto é só um projeto de escola, sou estudante universitário, não um jornalista verdadeiro.” disse-lhe eu, continuado a filmar sem eles se aperceberem.
“Mas sabes que...este tipo de coisa...pode-se considerar uma violação dos nossos direitos humanos,” disse ele com uma expressão séria. Ao ouvir uma tal acusação ridícula a senhora Choi interveio.
“Isso não faz sentido nenhum, senhor! Ele nunca vos filmou, é a mim que ele está a entrevistar e isto é somente para um projeto de escola.”
“Ai sim? És de que escola, então?” perguntou o outro homem, com uma voz irritante, que soava como a dum corvo.
“Sou da Universidade de Pequim,” respondi. Mas ele, pareceu não ter gostado da resposta.
“A Universidade de Pequim? Ai é? Então eu sou da Universidade cu-de-jesus!” disse ele num tom sarcástico, tentando por a ridículo o fato de eu ser de uma universidade prestigiada. Na Coreia do Sul, onde tantos jovens se esfolam para poder entrar em boas universidades, é natural que muita gente presuma que os estudantes têm uma certa arrogância por estarem em universidades de prestígio.
Os três homens acabaram por ficar amuados e foram-se embora. Nesse momento, a expressão preocupada da Senhora Choi desapareceu e começou a rir.

“Sabes, tantas vezes vejo este tipo de cliente: barulhentos, malcriados, agressivos. Eles normalmente vêm para aqui depois de jantar, já bêbados. O que me irrita mais, é que eles nem pedem pratos principais, só um ou dois petiscos, e durante a meia hora que estão aqui bebem, fumam, e causam problemas com os outros clientes!” disse ela.

Lee Gyong-Hi, de 57 anos, também tem muitas memórias e histórias de coisas que se passaram dentro da sua tenda, embora as que ela me contou fossem de carácter romântico e não cómico, como as histórias da senhora Choi.

“Gosto muito de estar aqui quando chove. Acho comovente o som das gotas a caírem sobre a minha tenda.” disse ela com uma voz suave. Na sua tenda não havia mais ninguém, estávamos sós, eu e a Sra. Lee, por isso a conversa fluía muito naturalmente.
“Então e quando neva?” perguntei-lhe.
“Quando neva ainda é melhor. Ver casais e amantes de mãos dadas, olhando para a neve, falando sobre a vida e outras coisas profundas, dá realmente grande prazer de se ver.”


A transformação de zonas inteiras de Seoul em urbanizações de grandes blocos procede a ritmo rápido. Assim, as áreas licenciadas para estas tendinhas também se vão expandindo. Pois as pojangmacha continuam a ter razão de existir e mesmo tornam-se cada vez mais importantes, para que a capital conserve alguma conexão com o seu passado. As pojangmacha são acarinhadas pelo povo de Seoul, especialmente os que assistiram à expansão das zonas com tendas, em paralelo com a modernização da cidade.



Como dizia um Senhor, enquanto me enchia o copo com soju, “não há nenhum lugar nesta cidade que tenha tanto «hinoera» como as pojangmacha.”
A palavra hinoera é a tradução coreana do conceito chinês, xǐ-nù-āi-lè. Refere-se às quatro emoções fundamentais: felicidade (huān), raiva (fèn), tristeza (bēi'āi) e alegria (kuài). As histórias contadas pelos donos de pojangmacha parecem confirmar tal afirmação. Muitos clientes, especialmente os da geração mais velha, não vêm cá só para se embriagar; eles vêm partilhar um passado comum, procurar conselho, ou discutir planos para o futuro, sabendo que os donos são bons ouvintes.

Uma refeição nas pojangmacha pode fazer o coração sentir-se mais leve e,ao mesmo tempo,o estômago cheio. É por isso que, debaixo da sombra crescente dos arranha-céus do bairro de Jongno3-ga, as tendas continuam a ser erguidas todos os fins de tarde.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

BRILHANTE INTERPRETAÇÃO DAS CZARDAS DE MONTI


Se quisermos ouvir a melhor música romântica das diversas paragens da Europa, temos sempre uma série de fantásticas interpretes do extremo-oriente para nos satisfazer o nosso desejo. 
Não há maior requinte, pois captam a essência da música, ao mesmo tempo que interpretam com uma técnica impecável! 
Não tenho dúvidas, quando oiço estes exemplos, que o futuro é na China, na Coreia, no Japão!
Já não nestas paragens da Europa (ocidental, central ou oriental) onde prevalece o hedonismo e as jovens gerações ignoram tudo da sua tradição e da sua arte.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

CAMINHOS DE PAZ NA PENÍNSULA COREANA

         

Pode-se ter uma opinião muito negativa sobre a dinastia vermelha que reina em Pyongyang. A media ocidental gosta de retratar o líder da Coreia do Norte com roupagens de extravagante e cruel déspota. Tudo o que fazem é reforçar preconceitos, como o de que o «comunismo» necessariamente conduz a monstruosidades como esta, ou ainda que a «raça amarela» é fanática e tem uma obediência cega ao líder carismático. 

Mas, interessará discutir numa base moral ou racial os regimes e as suas políticas? Não seria mais produtivo e inteligente fazer-se uma avaliação pragmática das políticas internas e externas dos diversos países? 

Com efeito, a estratégia da Coreia do Norte, no que toca à sua defesa, é tudo menos estúpida
É uma estratégia destinada a meter medo aos EUA, o país que nos anos da guerra da Coreia, ameaçou o Norte com o lançamento de uma bomba nuclear, que efectuou sistemático «carpet bombing» contra áreas industriais e aldeias na Coreia do Norte, crime de guerra na escala do genocídio. 
Evidentemente, isso não é ensinado nas escolas ou difundido na media de nenhum país ocidental, nem tãopouco nas escolas e media da Coreia do Sul. 
Os seus episódios dramáticos estão presentes na memória do povo da Coreia do Norte. 

Nós sabemos que o Iraque não tinha «armas de destruíção maciça» e o Pentágono e a CIA também sabiam o mesmo; porém houve uma campanha de provocações, culminando com uma cena teatral de Colin Powell na ONU, agitando um frasquinho como «prova» de que os iraquianos tinham armas de destruíção maciça e que se tinha de derrubar o ditador. 
O mesmo se passou em 2014, quando fizeram crer que um ataque usando armas químicas contra civis, da autoria dos terroristas islamitas que combatiam Assad, tinha sido obra do regime sírio. O que evitou uma invasão pelo «virtuoso» polícia mundial e seus vassalos, foi - por um lado - a Câmara dos Comuns britânica ter negado ao primeiro ministro Cameron o apoio à guerra na Síria, com o «Grande Irmão» americano, e - por outro lado - a proposta russa de desactivar e retirar todas as armas químicas na posse do regime sírio, proposta essa que foi aprovada e implementada pela ONU. 
Podemos ver pelos exemplos acima que os EUA atacam, bombardeiam, invadem, quando têm a certeza que o outro país está incapaz de se defender, de realizar um contra-ataque devastador. 

Como dissuasor de tais ataques, o programa  norte-coreano de desenvolvimento de mísseis balísticos intercontinentais e de bombas nucleares faz todo o sentido. 
O regime da Coreia do Norte não poderia aguentar-se face às ameaças permanentes da maior potência militar que jamais existiu no Planeta, sem uma forma ou outra de retaliação, suficiente para deter o ímpeto dos neocons, com suas delirantes doutrinas de hegemonia planetária. Estes têm dominado a política externa de Washington, desde de Bill Clinton, até hoje.  

Outro dado do problema, a política de mais de seis décadas (!) na região manteve sempre o status quo entre as duas Coreias, por uma simples razão: durante o período da guerra fria, de 1954-91, e depois, mantiveram-se e consolidaram-se dois regimes totalmente opostos, em termos de valores, de política, de economia, de alianças, de modos de vida e de cultura, na península da Coreia
A unificação da Coreia parece apenas um objectivo longínquo, que os dirigentes costumam introduzir nos seus discursos, para ir ao encontro dos sentimentos das massas, as quais têm parentes ou amigos de um e outro lado da linha de demarcação que faz as vezes de fronteira entre as duas Coreias. Mas, do ponto de vista das potências externas esta situação de «nem paz, nem guerra» permitiu que elas se imiscuíssem nos assuntos da península coreana. 
Nomeadamente, os EUA mantiveram - desde o tempo da guerra da Coreia até hoje - um exército de 35 mil homens, pelo menos, além de um número elevado de civis que dão apoio a bases militares americanas na Coreia do Sul. 
Esta situação não poderia continuar se os dois regimes se entendessem, se baixarem as ameaças de parte a parte, se houvesse um tratado de paz, passados 63 anos sobre o fim da guerra da Coreia. Este tem sido repetidas vezes proposto por parte da Coreia do Norte e persistentemente negado do lado americano, sob os mais diversos pretextos.  
Os mísseis THAAD, supostamente defensivos, são - na verdade - ofensivos. Com efeito, a decisão de serem disparados como retaliação contra o inimigo do Norte, ou em «prevenção» contra uma (suposta) ameaça, está inteiramente nas mãos dos americanos. 
O novo presidente da Coreia, Moon Jae-in, teve um primeiro amargo de boca diplomático e militar, pouco depois de ter assumido a presidência, ao verificar que o número e localização desses sistemas de mísseis lhe tinham sido ocultados e que se preparavam para instalar ainda mais sistemas sem o seu conhecimento, sem a prévia autorização do chefe de Estado da Coreia do Sul.
Neste contexto, o duo Rússia-China tem feito esforços para apaziguar, para levar os lados a sentarem-se à mesa de negociações. 

Contrariando a rígida política de «guerra fria», a Presidente destituída Park Geun-hye, apesar do seu conservadorismo, continuou e aprofundou as boas relações com a China. 
As relações económicas e comerciais desenvolveram-se: muitos produtos industriais coreanos são hoje fabricados na China e há um constante afluxo de turistas chineses à Coreia do Sul. 

A política sul-coreana em relação ao regime do norte foi, em momentos recentes da História, pautada por realismo e por um desejo de aproximação passo a passo: isso traduziu-se pela abertura de centros de manufatura industrial sul coreanos, em território da Coreia do Norte. 
Kim Dae-jung, o presidente que protagonizou essa política, recebeu o prémio Nobel da paz, mas o seu partido não conseguiu manter-se no poder e entretanto, com a «guerra contra o terror» decretada por George W. Bush, houve um re-alinhamento mais estricto da política externa coreana com as posições americanas.

Durante os dois mandatos de Obama, tanto em relação ao Irão como à Coreia do Norte,  a política de sanções e a ameaça do uso da força têm levado ao fechamento (previsível) e à consolidação (previsível) destes regimes em face da ameaça externa. 
A guerra económica é uma forma de guerra e não menos cruel do que as guerras «quentes»; lembremos que Madeleine Albright (secretária de Estado de Bill Clinton) declarou que as sanções contra o Iraque «tinham valido a pena», apesar da entrevistadora lhe ter lembrado as cerca de 500 000 mortes de crianças iraquianas provocadas pelas mesmas. 

Analogamente, as fomes de que se fala em relação à Coreia do Norte, não terão a ver, tanto com a incompetência ou insensibilidade dum regime ditatorial em relação à sua própria população, mas antes com as severas sanções económicas que o «Ocidente», sob a batuta dos EUA, impõe a este país. 

Agora - apesar duma adminstração Trump incapaz de se libertar da chantagem e sabotagem dos «neocons», que continuam a dominar o «Estado profundo» - surgiu uma  nova possibilidade de abertura, com o novo presidente Sul-coreano propondo conversações directas  Norte - Sul, ao nível de chefias militares e da Cruz Vermelha. 
Isto seria uma boa base para diminuir as tensões e riscos de uma guerra se desencadear devido a um simples erro humano, como tem hipóteses de acontecer nos cenários onde existem armas sofisticadas, programadas para automaticamente detetar e reagir a quaisquer invasões inimigas do espaço aéreo.

               Foto de Ann Wright.

Na guerra fria Nº1 houve várias circunstâncias em que se esteve próximo de se desencadear uma guerra EUA- URSS por engano. Lembro-me do exemplo de um bando de gansos selvagens ter sido captado nos radares de um dos lados e tomado por uma esquadrilha de aviões invasora ...

Igualmente prometedora é a linha de comboio trans-coreana, que permitirá o transporte de produtos da Coreia do Sul por via terrestre, via Sibéria, para a Europa: esta será um importante troço do gigantesco projecto One Belt One Road, levado a cabo pela China, Rússia e pelos países seus aliados.
Os interesses económicos partilhados, a estratégia «win-win», são o meio mais seguro de garantir que se preserva a paz. 



Uma potência mundial em ascenção, a China, tem esta postura. Outra, em decadência acelerada, os EUA, agarra-se à política do «pau e da cenoura». 
- Como evoluirão a curto-médio prazo? 
Não sei, mas vendo os conflitos e guerras presentes e o potencial de destruição das grandes potências, parece-me que nunca foi tão necessário evitar a guerra, consolidar a paz.