Muitas pessoas aceitam a situação de massacres de populações indefesas em Gaza e noutras paragens, porque foram condicionadas durante muito tempo a verem certos povos como "inimigos". Porém, as pessoas de qualquer povo estão sobretudo preocupadas com os seus afazeres quotidianos e , salvo tenham sido também sujeitas a campanhas de ódio pelos seus governos, não nutrem antagonismo por outro povo. Na verdade, os inimigos são as elites governantes e as detentoras das maiores riquezas de qualquer país. São elas que instigam os sentimentos de ódio através da média que controlam.
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segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

MITOLOGIAS (XII) - PIGMALIÃO E A ESTÁTUA VIVA

 De todos os mitos e contos fantásticos de Ovídio, nas suas célebres «Metamorfoses», esta história é das mais conhecidas.

 Pigmalião apaixona-se pela estátua que ele próprio esculpira  e suplica a Vénus que lhe proporcione uma esposa tão bela como a estátua. Vénus, vendo o ardor sincero de Pigmalião, satisfaz o seu pedido; transforma a estátua em jovem mulher. Pigmalião, primeiro duvida do sortilégio, mas acaba por ceder à evidência: ele experimenta o toque da pele humana flexível e quente, já não se trata do marfim de que era feita a estátua. 

O pintor Girodet (1767 - 1824) é autor dum célebre quadro que representa o momento em que Pigmalião se apercebe de que a sua estátua, afinal, se tinha transformado numa bela jovem. 


Vale a pena nos determos um pouco nesta imagem, não que eu considere ser duma qualidade estética excecional, mas antes porque nos dá uma ideia de como o Século XIX interpretava o mito de Pigmalião. De facto, esta representação pretende ser fiel à narrativa de Ovídio. A figura da jovem Galatea (quer dizer que tem a pele leitosa) apresenta-se numa pose semelhante à da célebre estátua de Vénus de Medici.



A face de Galatea exprime pudor por estar exposta ao olhar do seu criador/admirador. Ela baixa os olhos e sua face está levemente corada, evidenciando o seu pudor. Note-se que o modelo helenístico da Vénus, dita de Medici, com a sua posição dos braços, protegendo os seios e o sexo, como se tivesse sido surpreendida desnudada, também evidencia uma reação de pudor.

No texto de Ovídio - ver texto latino com transcrição em francês - Pigmalião está desgostoso pela «desvergonha» das mulheres, que faziam comércio do sexo, como era costume nesse tempo, em particular na ilha de Chipre, a ilha de Afrodite,  cujos templos principais eram consagrados à Deusa do Amor. A narrativa atribui a esse desgosto a motivação de esculpir uma jovem virgem que tivesse a beleza e a pureza pela qual ele suspirava. 

Podemos compreender que o mito está para a realidade, como um manto de rico tecido está recobrindo uma realidade muito menos luzidia. Com efeito, a existência de escravas sexuais era um facto, sendo esse comércio realizado pelos próprios templos dedicados a Vénus. Não era considerado um negócio ilícito. Na sociedade intensamente patriarcal do mundo Greco-romano, a mulher era considerada inferior pela sua própria natureza. A mulher era um objeto do qual o homem usufruía, de várias maneiras. A sexualidade era muito pouco inibida, no que toca aos homens.  Havia também uma prática comum de sexo com efebos, adolescentes do sexo masculino, alguns com inclinações para tal, mas a grande maioria vendendo o corpo. As prostitutas «sagradas» praticavam sexo a troco de remuneração, a qual revertia - em parte - para os cofres dos templos dedicados à Deusa do Amor. 

O Pigmalião da lenda é um «rei» escultor, algo bastante inverosímil. Mas, o apaixonar-se pela beleza de uma estátua ocorre, por vezes. Trata-se de uma forma especial de fixação obsessiva e de desvio sexual. O pedido de Pigmalião à Deusa do Amor, seria veiculado através da sacerdotisa do templo, a qual terá visto como possível e oportuno «ceder», a troco de dádiva generosa, uma jovem virgem, instruída para satisfazer a obsessão doentia de Pigmalião. No texto de Ovídio há referência ao casamento entre Galatea e Pigmalião e ao nascimento da filha do casal, Paphos, o nome adotado por uma cidade de Chipre.


A peça de Bernard Shaw , escrita nos alvores do século XX, no seguimento doutras obras que tentavam atualizar o mito de Pigmalião, é bastante interessante na medida em que transpõe a história para um ambiente contemporâneo ( princípio do séc. XX) e tenta fazer com que tudo seja mais ou menos verosímil. Não há «estátua de marfim que se transforma em linda donzela», mas uma jovem da classe baixa, que vende flores na rua. Pigmalião é um professor de linguística, que faz a aposta de transformar a jovem mulher, falando exclusivamente o dialeto das classes populares,  o «cockney»,  numa dama com o discurso e as maneiras de uma aristocrata, que ninguém imaginaria tivesse uma origem tão humilde. Se  hoje,  a peça de teatro não é frequentemente representada, o filme de George Cuckor «My Fair Lady», continua  ser conhecido de muitos. 


Este filme retoma o essencial do enredo da peça de Bernard Shaw. Curiosamente, na peça de Shaw a moderna «Galatea» acaba por se rebelar, não aceitando ser instrumentalizada pelo seu tutor.
Talvez isto seja um «piscar de olho» à primeira vaga de emancipação da mulher, a sua afirmação como ser autónomo, que não aceita estar sujeita à vontade caprichosa do marido e sabendo que tem o seu valor próprio e a sua dignidade.

 Não esqueçamos que Bernard Shaw foi membro destacado da Fabian Society, que preconizava a mudança para o socialismo através de reformas e contribuiu para a formação do Partido Trabalhista no Reino Unido.

Poderia parecer que nos afastamos muito do mito de Pigmalião. Mas, afinal Bernard Shaw, este génio contemporâneo, veio colocar a história no seu devido pé: A natureza do homem, ou a sua doutrinação sobre o papel masculino nas relações com o feminino, tem levado aquele a querer impor um certo padrão de comportamento e inclusive em relação ao sexo e ao casamento, como se a mulher, enquanto noiva, esposa, ou amante, não tivesse vontade própria, não fosse mais do que uma estátua de virgem, que é preciso ativar com o toque erótico, que «dê vida» a essa boneca. Assim, seria a «boneca de carne e osso», o ideal duma forma entranhada de machismo, tanto mais difundida, que se situa ao nível do inconsciente ou do subconsciente. 

De facto, a mulher deveria educar-se e educar o homem, para que essa forma de encarar as relações entre os sexos deixe de existir. Os homens assim fazem sofrer as mulheres com o seu desprezo pelo objeto do seu desejo erótico e por vezes mesmo, com violência. Pelo contrário, o homem companheiro, que partilha os prazeres e as dificuldades da vida, é aquilo que as mulheres naturalmente procuram. Elas têm a capacidade de transformar os «Pigmaliões» contemporânos, de lhes dar maturidade, de os despirem de preconceitos incutidos pelo meio. Note-se que se trata de uma tarefa longa, às vezes penosa e ingrata, ao nível individual das mulheres; mas esta tarefa devia ser endossada pela sociedade no seu todo, através da educação emancipadora dos jovens, o que não quer dizer - de modo nenhum - «licenciosidade» ou «relaxamento moral», antes o contrário. 

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SÉRIE MITOLOGIAS:

 MITOLOGIAS (XI): HISTÓRIA NATURAL DO UNICÓRNIO


sexta-feira, 14 de outubro de 2022

DIÁLOGO SOBRE O FENÓMENO HUMANO III


Imagem: Acampamento de Beríngios, os primeiros a povoar a América. 

 No diálogo sobre o fenómeno humano II, tínhamos abordado alguns aspetos relacionados com a  sexualidade. Hoje iremos prosseguir o diálogo entre um Paleoantropólogo e uma Geneticista, abordando aspetos relacionados com a saúde humana em geral, e com a nutrição em particular.

P- Da última vez que falámos, abordámos a questão fundamental para a sobrevivência da espécie que é a da reprodução e a sexualidade e os fenómenos associados, mesmo que sejam a um nível bastante indireto. Hoje, gostaria de abordar a problemática da nutrição nos humanos, quer passados, quer presentes.

G- Este tema que propões é, pelo que vejo em termos de divulgação em magazines populares e ao nível das crianças e adolescentes, um dos temas mais mal abordados, mais mitificados, talvez tanto como o da sexualidade.

P- Sim; a verdade é que a sociedade contemporânea se baseia num princípio de acumulação; consumir e consumir até mais não poder. A ciência realmente não é divulgada, ou apenas aspetos fragmentários, que não dão uma verdadeira educação elementar aos indivíduos, quer sobre as regras verdadeiras de comer saudavelmente e de maneira equilibrada, quer de possuir uma autonomia na confeção dos alimentos, permitindo às pessoas, às famílias, compor as refeições de acordo com o seu prazer gustativo e respeitando as leis da dietética.

G- Não achas que a sedução joga em desfavor das pessoas, permitindo ou levando a que elas se intoxiquem, ou se envenenem lentamente, para satisfazer o afã de lucro de grandes empresas de alimentação industrializada? As pessoas estão completamente submetidas à indústria alimentar. Compram os produtos já embalados, nalguns casos pré-cozinhados; têm uma preferência pelo que lhes parece mais apetitoso, mas isso não é quase nunca o mais saudável: Os alimentos são sobrecarregados de sal; são adicionados açúcares que despertam o apetite (têm um efeito aperitivo) em múltiplos alimentos confecionados. Além disso, para que o produto tenha uma maior durabilidade nas estantes dos supermercados, são acrescentados vários conservantes; para que esse produto tenha aspeto saudável (só aparência) são acrescentados corantes.

P- Pois, a sociedade industrial, por um lado fornece tudo com o menor esforço. As pessoas podem portanto dedicar-se às tarefas profissionais durante mais tempo, sendo as horas dedicadas aos afazeres domésticos cada vez menores. O cozinhar em família, é apenas atividade para os fins-de-semana, no melhor dos casos. Mas, lembremos que a sociedade humana, nasceu e cresceu em torno da partilha na preparação e confeção dos alimentos. A sociedade e a família organizavam as relações em torno da fogueira, da lareira, do forno... As crianças ouviam histórias contadas pelos adultos, as várias gerações encontravam-se para refeições conjuntas, partilhadas.



G- A produção de grande parte dos alimentos de que dispunham as comunidades agrícolas era comum; a autarcia era quase total. As pessoas comiam essencialmente aquilo que a terra produzia. Faziam algumas trocas comerciais, mas a um nível muito reduzido. Daí que as trocas envolvendo dinheiro não tivessem papel relevante, ao nível das aldeias.

P- Estamos no cerne da questão, pois a uma dada sociedade, organizada de determinada maneira, corresponde um padrão de organização da economia determinado. Ora a economia da produção e consumo alimentar é um aspeto fundamental. Hoje em dia, é tão verdadeiro como há 50 mil anos atrás. Só que as prioridades mudaram; hoje a sociedade está organizada para os produtores/consumidores dedicarem o máximo do seu esforço e tempo a atividades profissionais, e/ou «lúdicas». A alimentação foi industrializada e as pessoas não valorizam, como dantes, as refeições em comum, desde o ato de cozinharem, até à partilha à mesa dos alimentos confecionados, ocasião especial para convívio. Este tipo de convívio está a ser desencorajado pela civilização individualista «extremista», em que é frequente ver-se cada membro da família comer no seu cantinho, vendo o programa de TV, ou jogando no computador ou smartphone, num alheamento total dos outros.

G- A destruição das relações familiares e de amizade, será um aspeto muito negativo de uma sociedade de consumidores «autistas». Mas, para coroar o todo, temos uma epidemia de obesidade, devida à ingestão de comidas hipercalóricas, conjugada com a perda da saciedade natural. Existem mecanismos psicossomáticos e hormonais desencadeando uma sensação de saciedade; na pessoa frustrada, ansiosa, ou desinserida socialmente, estes mecanismos não operam tão bem. Isto explica por que razão a epidemia de obesidade afeta mais pessoas com certos perfis psicossociais.  Nos países afluentes da Europa e da América do Norte, verifica-se que as pessoas das classes mais baixas, as mais destituídas do ponto de vista económico e social, são as que possuem maior taxa de obesidade e doenças associadas (diabetes, cardiopatias, carências vitamínicas...) 

P- A dominação do lobby da alimentação industrial  penetra nos interstícios do Estado. Faz obstáculo a que as crianças e adolescentes recebam nas escolas a educação básica que permitiria a cada um deles, depois de atingido o estado adulto, adotar um comportamento alimentar responsável, favorecendo o seu equilíbrio.  O mesmo se pode dizer em relação à medicina acéfala, destituída de preocupação em prevenir as doenças. Ela fica muito feliz pelo investimento que o Estado faz em aparelhos caríssimos, ou em subsidiar os doentes  que recorram a essa medicina tecnológica.

G- É uma das questões mais graves, a da incapacidade ao nível da sociedade, como um todo, de promover ativamente as boas práticas, não apenas em nutrição, como numa vida saudável, ativa, para todas as idades. A população vive cada vez mais tempo, mas esse aumento de esperança de vida total não tem sido acompanhado por aumentos equivalentes de anos de vida com saúde. Por outras palavras, as pessoas vivem, mas com a carga de doenças múltiplas, resultantes de hábitos errados adquiridos, que se fazem sentir com maior gravidade nos últimos anos de vida. A tecnologia médica progrediu bastante em relação a determinado tipo de doenças que antes eram causadoras de morte. Por exemplo, as doenças causadas por bactérias começaram - há uns 75 anos - a ser tratadas e curadas, graças a antibióticos: Porém, se isso permitiu salvar muitas pessoas jovens ou de meia-idade, aumentando assim a esperança de vida, não foi dar uma melhor qualidade de vida às pessoas...

P- Verifica-se que as sociedades não ocidentalizadas do Terceiro Mundo, têm uma população não obesa, mas em sociedades semelhantes, mas que tenham sido culturalmente colonizadas pelo «fast food» e pelas bebidas açucaradas industriais, observa-se os mesmos níveis de obesidade, diabetes, cardiopatias, etc, que no mundo «rico»!

G- O que mais me entristece é que tenho a certeza que os responsáveis pelas medidas políticas dos diversos Estados, sabem perfeitamente, têm conhecimento das estatísticas, têm acesso a estudos, têm técnicos e conselheiros que não podem ignorar as realidades no terreno. Porém, as situações perduram e vão-se mesmo agravando. Não tenho dúvidas que os médicos individualmente lamentam este estado de coisas. Mas existem alguns pequenos grupos, que eu chamaria dos capitalistas da medicina (e da saúde) que têm toda a vantagem num alargamento das necessidades de tratamentos caros, envolvendo aparelhos sofisticados, etc. Esta medicina tecnologizada pode parecer a marca de uma sociedade «desenvolvida» ao eleitor incauto; mas tal sociedade é «mais desenvolvida» apenas na sua forma de exploração. 

P- Muitas vezes interrogo-me, quando sei de alguém que está a fazer terapia por motivo de cancro, se não seria infinitamente melhor, evitando um terrível sofrimento humano, serem  drasticamente  reduzidas as causas ambientais dos cancros. Como sabemos, muitos cancros têm génese ambiental. Entre as causas mais comuns para o aumento de incidência de cancros, tem-se os alimentos com determinadas toxinas, com conservantes, corantes, ativadores do paladar, açúcares, outras  substâncias nocivas desde antibióticos a inseticidas, a metais pesados, etc. que se encontram especialmente nas dietas das pessoas urbanas, com alimentação industrial. A maioria dos cancros deve-se a erros da alimentação (por exemplo: insuficientes fibras ingeridas), à ingestão frequente de substâncias cancerígenas, ao abuso de bebidas alcoólicas, etc.

G- Muitas pessoas têm avitaminoses não diagnosticadas, mas que irão potenciar outras doenças. A sociedade atual vive numa redoma de ilusões, de mitos, em relação às «maravilhas» da medicina. Esta não pode fazer mais, do que ajudar que a Natureza faça o seu trabalho. O melhor que a medicina pode fazer, é ajudar o indivíduo a curar-se ou - dalguma forma - a superar a doença. A crença numa medicina «milagrosa», tem como efeito perverso que as pessoas já não sejam responsáveis pelo seu corpo e saúde, confiando que podem fazer todos os disparates, pois a medicina «encontrou maneira de resolver muitas doenças»!

domingo, 11 de setembro de 2022