quarta-feira, 6 de julho de 2016

POESIA DO FADO PORTUGUÊS





                                     










TUDO É BELO NESTE ÁLBUM mas, para mim, «Gaivota» é a mais extraordinária e rara combinação de talentos: a letra do poeta Alexandre O'Neill, a música do compositor Alain Oulman, com a interpretação inultrapassável de Amália Rodrigues.


- MINHA SINGELA HOMENAGEM.

FADO*

No vinho procurei o abrigo
Que teus braços recusaram
As doçuras cedo acabaram
Só mágoas guardo comigo

Do peito pisado como uva
Rios de sangue ardente
Tingiram esta alma doente
De negro manto de viúva

Sem carinho, sem ternura
Como viver esta vida
Errante, triste e dura...

Alma pra sempre dorida
Perdida em noite escura
A Morte lhe dê guarida

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* Da recolha de Poemas «Tenção»; inéditos de 1973 -1978 de autoria de Manuel Banet

CESÁRIA ÉVORA, NOSSA SAUDADE!


SODADE: Não sei onde nasceu este trecho:  porventura  nasceu nalguma ilha de Cabo Verde, há muito tempo! Será um canto de contratados, de exilados, de emigrantes... enfim, de todos os que partilham o infortúnio de um moribundo império onde seus filhos não podem sobreviver.


LUA NHA TESTEMUNHA: Quem quiser, pode ouvir este trecho à noite, à beira mar, com os pés lambidos pelas ondas suaves e tépidas; pode também sonhar com essa praia distante, enquanto ouvir esta música de olhos fechados...


                                         

BESAME MUCHO: O bolero exprime a romântica despedida dos amantes e será porventura uma espécie de hino dos apaixonados. Entretanto, a estupidez não alcançará jamais a beleza do que é Amor total.



MAR DE CANAL: Nunca esqueceremos esta voz vibrante e suave. Como nenhuma outra cantora, Cesária soube dar a conhecer a música de Cabo Verde. O ritmo deste trecho é, para mim, um convite para dançar... porque assim o fiz, na minha juventude...

terça-feira, 5 de julho de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] BILLIE HOLIDAY - I'LL GET BY




Eram 4 horas da manhã. Estava a chuviscar aquela chuvinha que nos molha lentamente até aos ossos. Entrei num bar, com luzes vermelhas, onde algumas prostitutas conversavam, ao balcão, com dois ou três clientes…
Sentei-me numa mesa, não sabendo muito bem o que escolher. Veio uma moça muito vistosa, pedir-me para se sentar. Eu acedi, já sabendo que isso significava, no mínimo pagar o dobro do «consumo obrigatório». Pedi uma garrafa de tinto, argumentando que o champagne me fazia azia (o champanhe surrado, com certeza…)!
A partir daí, as minhas memórias começam a ficar confusas; as luzes muito fracas, davam um halo de «mistério» àquilo que não o tinha. Quanto à conversa, não retive nem um pouco do seu conteúdo; a moça tinha jeito em me fazer sentir bem-disposto, isto ainda me lembro.  
Após uma pausa na música, iluminou-se uma zona do fundo, que afinal era um pequeno palco, onde se desenrolou o espetáculo de striptease: uma falsa loira, que imitava Marilyn Monroe com alguma verosimilhança… a meus olhos.

Posso ter sonhado tudo o que descrevi acima, pois no dia seguinte, acordei na minha cama, sem mais do que uma persistente dor de cabeça. Não me recordo como acabou a noitada e como vim para casa. Com certeza, vim no meu próprio carro; as chaves estavam pousadas ao lado da mesinha de cabeceira. Mas mais do que isso não sei.
Estranhamente, não sentia cansaço nenhum. Levantei-me, tomei um duche; engoli o pequeno-almoço e fui para o trabalho. Tudo sem pensar, num automatismo bem rodado.

Nunca mais fui àquele bar; nem sei se realmente ainda existe, nem se as personagens que encontrei ainda aí trabalham. Tudo se passou como se fosse «noutra vida». Mas tal não pode ser; pois eu sei, até certo momento no tempo, o que fiz.





segunda-feira, 4 de julho de 2016

ANOUSHKA SHANKAR - AUDITÓRIO GULBENKIAN 03-07-2016





Um concerto memorável, baseado no seu mais recente álbum, «Land of Gold». 

A qualidade da performance deixou-me completamente extasiado.





domingo, 3 de julho de 2016

A ARTE DE AMAR



«A arte de amar»

De todas as artes, a que suscita maior entusiasmo, queiram ou não queiram os puritanos, é a arte de amar.
Este amor, o amor entre pessoas, entre seres de carne e osso. Este amor, feito queimadura, que nos toma as entranhas; esse sentimento, que se traduz em vertigem, que pode ser tão potente ao ponto de nos levar a um estado de quase loucura, ou mesmo de loucura propriamente dita.
O desencadear das paixões amorosas é como essa outra paixão – bem mais nefasta – a paixão da guerra. Há muitas maneiras de iniciar uma guerra, mas nunca se sabe… uma vez começada, como irá terminar. A analogia guerreira é muito usada para descrever as paixões amorosas.
Só na literatura do Ocidente, a lista de filósofos, poetas, escritores, cientistas e artistas que se debruçaram sobre o tema é interminável!
Se tudo foi dito, no que respeita à «Arte de Amar», as obras que vão surgindo - populares ou eruditas- sobre o tema, só podem interessar enquanto testemunhos da época:
- Diz-me como falas do amor e eu te direi em que tempo vives, a que cultura e sociedade pertences…



Um assunto desenvolvido em todo o género de literatura, desde os livros de «autoajuda», aos romances …O tema corresponde obviamente a um interesse muito especial do público, que compra abundantemente esses livros pelo prazer, sem dúvida, mas também por desejo de aprender e por pressão social.
Estamos tão mergulhados no quotidiano que não nos apercebemos, por vezes, da grande velocidade das mudanças na nossa sociedade. Hoje, há um matraquear permanente sobre amor e sexo: o sexo «sugerido», na publicidade ou nos filmes; ou o sexo «explícito» com a banalização da pornografia. Hoje em dia, qualquer pessoa tem fácil acesso a vídeos pornográficos.
A outro nível, a imposição permanente no discurso político e mediático de numerosas questões ditas «fraturantes», relacionadas com reprodução e sexualidade, lançadas sob forma de campanhas, por grupos de pressão organizados (… a favor ou contra isto ou aquilo) e logo aproveitadas (quando não fomentadas) por políticos desejosos de protagonismo…
Tudo isto cria um enorme complexo obsessivo, um enorme «mercado» … mas também uma enorme frustração, pois um vulgar e pacato cidadão (ou cidadã) nunca se deixa de ter diante dos olhos os tais impossíveis objetos de desejo, perfeitos, inatingíveis ao indivíduo vulgar. É deste modo que as pessoas comuns, frustradas, sentem necessidade (por vezes obsessiva) de recorrer à pornografia.
Cria-se o desejo, no contexto de uma sociedade dita de «mercado», onde a publicidade é o motor do consumo, sendo esta - por sua vez- o motor da economia «real» (=de produção de bens e serviços). A «indústria» de pornografia é pois a «resposta» do capitalismo tardio, capitalismo da transformação robótica, da instrumentalização, não apenas dos corpos, como das psiques. Devemos ter sempre presente que a ideologia totalitária/ pensamento «único» quase nunca utiliza as palavras «capital», «capitalismo», prefere usar expressões como «sociedade de livre mercado», para erigir o seu próprio sistema político e económico em modelo inultrapassável, tão «natural» e indispensável como as próprias trocas económicas.



A explosão da pornografia não se pode atribuir somente nem principalmente à invenção da Internet. A pornografia ou erotismo pré-existiu, de muitos séculos, à era digital. Mas o fenómeno de exposição total, de sobre-exposição, de oferta sem limites e sob perfeito anonimato… é peculiar à nossa época.
O recurso massivo e obsessivo dos jovens, em especial, tem a ver com uma forma de condicionamento que vai aproveitar a frustração sexual para a canalizar para a satisfação hedónica imediata.
A adolescência é uma fabricação da sociedade. Pode-se considerar que o ser humano (de ambos os sexos) atinge a maturidade sexual plena por volta dos 16-17 anos, o que, aliás, correspondia à idade média de aparecimento da menarca das jovens.
A não satisfação de uma função natural, com implicações bioquímicas/hormonais, psíquicas e comportamentais, origina a frustração.
Numa sociedade patriarcal repressiva, na qual o poder dos machos dominantes é decisivo para o jovem macho ter acesso aos «prazeres» deste mundo, leia-se a uma vida sexual, e a procriar «ter família» … o sexo é regulado, proibido, delimitado, por uma moral estrita.
Numa sociedade pseudoliberal, a nossa, o sexo já não é tabu, mas pelo contrário, tema obrigatório e obsessivo. A «tara» moral é substituída pelas «taras» psíquica e mesmo física. Os adolescentes têm pensamentos obsessivos sobre sexo e sofrem pressão para deixarem de ser «virgens» o mais depressa possível e de qualquer maneira.  

Assim, conseguem os poderes que os próprios escravos se conformem alegremente com a sua servidão. Ao desviarem os indivíduos de uma sexualidade libertada e harmoniosa, através de um «Ersatz de satisfação», conseguem uma dupla vitória: Os próprios escravos reforçam a sua relação de escravidão e fazem-no, julgando-se mais «livres» por «livremente escolher» os produtos que lhes são oferecidos. 
Algumas pessoas, sob influência dos clichés desta sociedade em relação a questões de sexualidade, poderão achar que a nossa visão bastante crítica em relação à pornografia corresponde a uma defesa de alguma forma de censura. De facto, não é nada inteligente censurar, especialmente neste caso, pois tornaria esse «produto» ainda mais procurado em segredo. Talvez poucas pessoas saibam que existe toda uma rede de exploração – por vezes violenta – associada à indústria de vídeos pornográficos.
Pensar que informação sobre sexualidade seria veiculada por via dos vídeos porno, toca as raias da estupidez! O objetivo dos magnatas que produzem estes filmes pornográficos é somente o lucro.



A acusação ideológica/moral com que se rotula de «censura» qualquer crítica pode e deve ser devolvida aos que a fazem. Pois o tal rótulo infamante permite eludir um debate considerado «inoportuno» ou encobrir os interesses obscuros mais sórdidos, sob pretexto de «modernidade» ou de «liberdade de expressão». Com efeito, os tais pseudoliberais serão, porventura, os mais diretos beneficiários e aproveitadores da exploração sexual, sob todas as formas, incluindo o tráfico e a escravatura sexual.
O discurso pseudoliberal no que respeita à pornografia e ao uso constante das mensagens sexualizadas na comunicação social, na publicidade e no cinema, tem servido para manter impunes, para encobrir, para banalizar práticas criminosas.
Assim se compreende como é tornada escassa a oportunidade de debates públicos necessários, sobre questões de saúde e de educação sexuais. Se, por um lado, não faz sentido proibir que os adolescentes e adultos de ambos os sexos tenham acesso ao visionamento de vídeos com cenas eróticas, por outro lado, parece-nos hipócrita não educar, especialmente os jovens de ambos os sexos, para realmente terem uma gestão própria da sua sexualidade, sem subordinação a quaisquer ideias feitas. 





Os afetos podem ser educados, sem se violentar as opções pessoais. Pode-se ajudar, por todos os meios, a que as pessoas possam crescer saudáveis. A sexualidade faz parte integrante da saúde física e mental dos indivíduos, da sua integração social harmoniosa e da sua realização pessoal.
Devemos interrogar-nos sobre a adição aos vídeos porno. Ela tornou-se muito vulgar em adultos (especialmente jovens) do sexo masculino. Quais as causas e consequências de tal adição?
O cérebro é feito de tal maneira que, as imagens, por exemplo num vídeo, são compreendidas pelo cérebro «racional» (o pré-frontal), como sendo apenas e somente imagens (resultantes de um artefacto), mas o cérebro humano tem uma zona profunda (cérebro límbico), que é sede das pulsões, dos desejos, dos reflexos. Este sistema límbico não distingue entre imagem filmada e a que resulta da cena real; o cérebro mais primitivo responde como se o indivíduo estivesse presente e participante nas cenas que são visionadas no ecrã.
Além disso, o cérebro humano tem uma forma muito especial de interpretar os movimentos que as outras pessoas fazem. As zonas motoras correspondentes do nosso cérebro mimetizam os gestos que fazem as outras pessoas; porém, quando se está no papel de observador, as imagens cerebrais são tratadas como sendo apenas um simulacro, ou seja, o nosso cérebro racional intervém e reprime a concretização do gesto. É assim que o nosso cérebro apreende, mimeticamente, a realizar os gestos observados nos outros. A imitação dos gestos dos outros é muito espontânea. Aliás, se a demonstração por gestos é um processo eficiente de ensinar e aprender nos desportos, na dança, nas artes, etc., isso deve-se a uma criação de imagens neuronais «em espelho»: o ser humano aprende a fazer gestos complexos por imitação. Este tipo corriqueiro de aprendizagem tem excelentes resultados devido à nossa maravilhosa capacidade de «programação flexível» do cérebro.
A ciência neurológica tem muito a dizer e a divulgar sobre cérebro e amor. Essa divulgação nem sempre se revestiu de simplicidade e clareza necessárias para compreensão pelo leigo. Porém, penso que estes factos devem ser do conhecimento de todas as pessoas, devemos compreender que nós somos feitos assim, que existe todo um passado evolutivo que faz com que a nossa organização cerebral se traduza num determinado funcionamento e este, por sua vez, num comportamento.
Sim, o modo como captamos, armazenamos e reelaboramos as imagens vindas do exterior é muito complexo! Envolve estruturas biológicas, processos bioquímicos, etc. 
Mas as pessoas adultas e adolescentes (de ambos os sexos) devem compreender algo que lhes diz respeito e cuja ignorância, de modo nenhum, pode beneficiá-las. Todas as pessoas podem ser educadas nestes domínios, quaisquer que sejam seus conhecimentos prévios nestas matérias. Podemos explicar com simplicidade as coisas básicas, sem falsidades, de maneira esclarecedora.
A complexidade do amor humano, nas suas quase infinitas formas, matizes ou modalidades corresponde, afinal, à nossa imensa complexidade e diversidade orgânica e social.


A complexidade na organização de um ser humano é, na verdade, muito maior que a duma galáxia, constituída por milhões de estrelas, porque as estruturas, no caso do humano,  têm um grau de organização em muitos patamares, o que não se encontra nos corpos constituindo uma galáxia.
Considere-se que, no fundo, a complexidade acima descrita é que está na base do livre-arbítrio. Se o livre-arbítrio existe é porque, tanto as organizações dos indivíduos, como das sociedades, são de tal modo complexas, não é possível quaisquer inteligências, mesmo «dez Einstein» reunidos, descreverem adequadamente em termos bioquímicos e neuronais os mecanismos subjacentes às motivações e comportamentos das pessoas.
Considerando agora, também o amor – todas as modalidades de amor – enquanto fenómeno que envolve duas pessoas, temos a complexidade acima referida... ao quadrado. Constata-se então que a ideia de determinismo ou de fatalismo no domínio amoroso, um traço típico do amor dito «romântico», cai pela base.




No domínio das relações amorosas, uma série de clichés em relação ao que supostamente deve ser o comportamento das pessoas, é simplesmente uma soma de preconceitos, não contribuindo em nada para a libertação das pessoas, para uma fruição maior dessa arte necessária de amar.


Ao recusarmos todos aqueles falsos conceitos, o sentimento no amor não será diminuído, mas reforçado, pelo facto de já não se basear em ilusões.







sábado, 2 de julho de 2016

MEDITAÇÃO MUSICAL: ANOUSHKA SHANKAR E MÚSICOS EM RECITAL NA F. C. G.


Antes, chamava-se alma, espírito, paixões, coração... hoje gostamos de usar termos científicos: neurónios, córtex, pulsão...

Mas eu prefiro a doce, sábia sabedoria das avós...
às desenfreadas volúveis volúpias intelectuais, tão sós.

Queremos ser engenheiros dos nossos sonhos, então... sejamos até ao fim, vivendo o sonho sem pecado, nem perdão;

Pois viver é sofrer, mas sem sofrer, amar não podes ... e sem amar, não vale a pena viver, como tu muito bem sabes.




Lisboa, Jardim Gulbenkian, 2016, 3 de Julho




sexta-feira, 1 de julho de 2016

«Outro Espelho no Quarto dos Quadros» e «Soma Ausente» (poemas de Manuel Banet)




OUTRO ESPELHO NO QUARTO DOS QUADROS*

(em memória de meu Tio-avô, Édouard Gandon)

                          





Era uma tarde calma de Domingo.
O Tonton pintava um quadro, paciente, com gestos sublimados pelo saber de sombra e de luz.
Não sei o que fiz; só sei que ele se zangou. Muito medo tinha eu da mudança de sua palavra, uma censura vinda de sua boca era suficiente para apagar, num sopro, a felicidade do meu espírito.
Então, tive que fazer algo que restaurasse o equilíbrio feliz e a beleza do nosso mútuo olhar: peguei num papel e num lápis e pus-me a desenhar um Confúcio de porcelana que repousava sobre a cómoda.
Ofereci-lhe o desenho, imagem do meu tosco mas dedicado pensamento. O seu perdão foi uma aceitação simples e estou-lhe, por isso, eternamente devedor.
O quarto dos quadros era uma divisão de tecto alto em que as paredes desapareciam, para dar lugar a telas justapostas de naturezas-mortas, paisagens, retratos, composições em tons de austera e harmónica luminosidade. Havia nesse quarto um objecto fascinante: uma caixa de projecções.
Uma caixa assente sobre um tripé, com dois óculos reguláveis, permitia que se vissem paisagens, daguerrotipos sobre vidro, que recebiam a luz da janela.
Nos vastos compartimentos da casa, os móveis respeitáveis, em mogno ou nogueira, tinham o estilo das coisas perenes. Lá estavam em silenciosa compostura, ao gosto de épocas brilhantes, requintados, polidos, com “patine” sobre as decorações de bronze.
Movia-me dentro do universo estagnado, perfumado de pastilhas “Valda”, sem saber que a imagem reflectida nos espelhos só acorre quando deles se acerca o nosso rosto. Do piano de cauda do salão aos vidros do aparador, todos os espelhos me habitavam...











SOMA AUSENTE*

(em memória de minha Avó,  Júlia  Monteiro Baptista)

                                          


Era uma vez...
Assim começava minha Avó, desfolhando as maçarocas da memória. No canto do sofá seu rosto engelhado inspirava a sombra à medida que o Sol se deslocava, lento, atravessando as gelosias. Eram estórias sábias, sem começo e morais, nos lábios que formavam as letras de morango, o recorte de um silêncio enternecido.
E eu ia vogando sobre os rios calmos, na barca que Avó remava, não com remos, mas com pausas.
Eram tardes sem redemoinhos, que inevitavelmente acabavam com andorinhas trazendo chilreios aos ninhos sob o telhado. Eram espaços em tijoleira, na marquise estranhamente luminosa, ornada de plantas exóticas. Eram cascatas do jardim, melancólicas sem dúvida, distiladas entre limos.
Nas sopas de massa havia letrinhas.
No tabuleiro do escritório, rectângulos com letras; o jogo das letras, ortografia do acaso.
Não me recordo de beijos, nem de xi-corações. Mas sabia que a meticulosa paciência da Avó guardava, em arcas, os postais e outras maravilhas de frases-feitas.

Porém, o silêncio apodera-se de nós, o pudor cerrado no muro de cal.
Não posso dizer a escrita que recobria os cadernos, nem tão pouco os traços que bailavam nos desenhos...
Desenhos em que construía o historial da fantasia, povoados de cavalos, espadachins, soldados napoleónicos e – por vezes – árvores.
Lembro-me bem do movimento das luzes (de faróis de carros) que se iam projectar no tecto do quarto, à noite. Não fosse o ruído paralelo de motores e ficaria convencido que eram sonhos, traiçoeiros, iludindo a espera paciente do adormecer.


(* proso-poemas retirados do opúsculo inédito «Estórias de Estar e de Ser» 1985)