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sexta-feira, 7 de junho de 2024

O MISTÉRIO PORTUGUÊS

 Dizia algum literato, que a cultura é aquilo que resta, depois de se ter esquecido todas as outras coisas.

Eu sou daqui, desta praia ocidental. Porém, tive ocasião de frequentar universos culturais variados desde a minha infância. Considero que as minhas referências culturais são tanto de Portugal, como de diversas outras nações (principalmente europeias). 

Mas, o meu espanto - que não é de agora - perdura, quando sou confrontado com produções artísticas de portugueses. Dentro de um espaço geográfico modesto, numa economia subordinada, desde há centenas de anos, às potências maiores, e com uma massa de gente muito sincera e boa, mas com fraca instrução (não são as pessoas que têm a culpa, mas os governantes, os poderosos)... 

O mistério é que, dentro desse espaço chamado Portugal, surgem em séculos passados e neste, autores literários, poetas, músicos, artistas plásticos, cientistas, que se colocam ao mesmo nível do melhor que existe no estrangeiro, nas capitais europeias mais prestigiosas... Ainda por cima, com uma forte originalidade.

Não sou nacionalista [ talvez só um pouquinho em relação à língua, a bela língua de Camões e de Fernando Pessoa], pelo que meu cosmopolitismo permite-me rejeitar algo, seja qual for a sua proveniência, se não for esteticamente ou cientificamente significativo. Algo que não tenha qualidade, para mim, não presta; seja de Portugal ou de qualquer outra proveniência. Inversamente tenho de me render à evidência de que uma produção intelectual de primeira qualidade pode ser obra de pessoas dum país atrasado, até mesmo atávico, por vezes, um país subdesenvolvido. Onde uma classe política abjeta se pavoneia, esbanjando os recursos (financeiros e outros) deste magnífico país. Um país destes, parece-me uma aberração lógica, que seja o solo onde floresceram tantos homens e mulheres de talento. 

Será devido à necessidade dos intelectuais se expatriarem, para usufruírem de novas oportunidades, trazendo a sua bagagem própria, mas que misturam com o que encontraram nos países de acolhimento?

Sem dúvida que o número de grandes vultos portugueses nas artes e nas letras não é assim tão impressionante, se confrontado com países como a França, a Itália, o Reino Unido, a Alemanha e a Espanha. Mas, estes países têm e tiveram uma população muito maior que a população portuguesa. O fenómeno da criatividade não pode ser visto como «linear», como uma função direta do número de indivíduos que compõe uma nação. 

Podemos dar as voltas que quisermos, mas temos de assentar em dois pontos: 

A produção artística e literária portuguesa tem sido de grande qualidade, ao longo dos séculos (por vezes menosprezada). 

Não se consegue isolar um fator (ou uns poucos fatores), que explique(m) a continuidade de produção ímpar. Pelo contrário; Pode-se invocar fatores diversos, geográficos, históricos, étnicos ou psicológicos, mas nenhum deles é convincente, tanto mais que fatores semelhantes estão presentes noutras nações europeias. 

Acredito que aquilo que empurrou os portugueses para o mar, para a exploração do além, desencadeou neles um complexo cultural único. E não vejo outro povo que tenha sido tão moldado pela  aventura marítima. Pesem embora as  potências marítimas, como o Reino Unido, a Holanda e outras.

A existência duma tendência nostálgica, misteriosa, insatisfeita, produziu letras e músicas como o fado, mas outras produções também espelham esta característica em muitos poetas e escritores.

Mais tarde, depois da decadência económica e política de Portugal, muitos dos melhores sonharam com um renovo, com um "novo renascimento", com a passagem dum império físico, para um império do espírito (ideação do Quinto Império).

No século presente, estamos -nós, humanos - coletivamente e sem consciência clara disso, a construir a «Nooesfera» (o domínio universal das trocas sem hierarquias, da comunicação instantânea, da multiplicação do saber em todos os domínios, etc.), sonhada ou profetizada por Teilhard de Chardin.  

Se este planeta Terra não for definitivamente destruído pela brutalidade criminosa dos dirigentes, os que detêm as rédeas do poder, seja económico, financeiro, político, militar ou tecnológico, talvez exista  oportunidade para um florescimento, das ciências  às artes, neste cantinho europeu ocidental.

Portugal sempre acolheu bem os estrangeiros. No passado, houve a grande mancha da expulsão dos judeus (reinado de D. Manuel I) e a violenta repressão das «heresias» pela Inquisição (que durou até meados do século XVIII). Mas, o povo, em geral, não aplaudiu. Em qualquer dos casos, não foi ouvido nem chamado, como em relação a muitos outros assuntos. 

Como hipótese, posso estimar que essa vitalidade das coisas do espírito dos portugueses, reside na dupla característica seguinte: 

-  facilidade em se expatriarem e absorverem as culturas dos países para onde emigraram,

 - abertura em relação aos estrangeiros que vêm para aqui, de tal maneira que eles possam viver e produzir, influenciando o povo-hóspede.

Mas, isto tudo são conjeturas e não há nenhuma afirmação, que não possa ser contrariada com certos factos, invalidando as referidas conjeturas.  Pelo que, no essencial, considero que o «mistério de Portugal» permanece por explicar.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

REPÚBLICA DOS POETAS nº4 - Cecília Meireles






                                              https://www.youtube.com/watch?v=rcNpV5vNpt8


A poesia da brasileira Cecília Meireles não se pode filiar em nenhuma escola estética, embora possua traços de simbolismo. Esta inclinação da poeta, talvez se relacione com seu conhecimento de poetas orientais, que traduziu (indianos, chineses, japoneses). 

O poema «Naufrágio» foi posto em música por Alain Oulman e cantado por Amália Rodrigues, num disco* que reúne notáveis expoentes da poesia de língua portuguesa. 

Em «Naufrágio», transparece o sentido trágico da perda inexorável de um referencial, o que é transposto simbolicamente na imagem do navio que se afunda no mar. Mas, este navio simboliza as esperanças da poeta, seus sonhos e esperanças perdidas. 

Mas, a última quadra escapa à fatalidade inexorável. Ela não foi incluída na versão cantada de Amália Rodrigues. 

A última estrofe muda o significado dos versos anteriores, pois a serenidade alcançada («tudo estará perfeito») é resultante de catarse, de ir ao fundo da dor e desespero, para renovar as energias interiores e renascer. Mas, isso é obtido por alto preço: «as minhas duas mãos quebradas».

Um poema muito belo, especialmente quando completo.

                                           Naufrágio


Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça


Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles (1901-1964), Viagem, Lisboa, 1939

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*Além do referido disco, Amália cantou fados com letras de grandes nomes de poesia lusófona. Um dos mais célebres fados é «Fado Português», poema de José Régio e música de Alain Oulman: https://www.youtube.com/watch?v=CFLO_zObeUI

domingo, 21 de julho de 2019

RÃO KYAO - FADO BAILADO


A qualidade deste trabalho - de 1983 - faz dele, no presente, uma óptima escolha para audição de fado instrumental. É um clássico, num certo sentido. 
Esta versão instrumental dos fados - plena de requinte e inspiração - beneficiou das prévias incursões do saxofonista e flautista pelos territórios do jazz e da música indiana.


segunda-feira, 1 de julho de 2019

E HÁ OS CÉLEBRES ESQUECIDOS...

Recordo aqui o poeta mais original que produziu esta «Pátria de poetas», mas que os ignora com a mesma boçalidade com que os apregoa...
Ele foi surrealista - como muitos outros - e desvinculou-se desse movimento estético... 
A sua poesia é uma com a sua vida. Não se tomava demasiado a sério; a sua poesia é anti-enfática. 
Pode - ainda hoje - desencadear o espanto e uma gargalhada...
- Sim, estou a falar do poeta Alexandre O'Neill, muito célebre por causa de um poema posto em canção, mas cuja restante obra poética é quase desconhecida!

Amália foi uma grande embaixadora, não só do fado, mas da cultura portuguesa, tendo interpretado - de forma inspirada - poemas de alguns grandes poetas lusos, na maior parte, postos em música por Alain Oulman, um excelente compositor. 

Gosto de recordar a «formiguinha», a ironia irreverente de O'Neill:




terça-feira, 7 de agosto de 2018

AMÁLIA LÊ «LIBERTAÇÃO» DE DAVID MOURÃO FERREIRA+ GRAVAÇÃO DE FADO AO VIVO (1952)


           Libertação
David Mourão-Ferreira



Fui à praia, e vi nos limos A nossa vida enredada, Ó meu amor, se fugirmos, Ninguém saberá de nada! Na esquina de cada rua, Uma sombra nos espreita. E nos olhares se insinua, De repente, uma suspeita. Fui ao campo, e vi os ramos Decepados e torcidos. Ó meu amor, se ficamos, Pobres dos nossos sentidos! Em tudo vejo fronteiras, Fronteiras ao nosso amor. Longe daqui, onde queiras, A vida será maior! Nem as esperanças do céu Me conseguem demover. Este amor é teu e meu, Só na Terra o queremos ter.



Estes dois documentos video complementam-se magnificamente.
No vídeo da leitura do poema, David Mourão Ferreira aparece por breves instantes, embora não fale. 
A gravação do fado foi feita ao vivo no café Luso, em 1952. Nesta gravação, pode-se apreciar a qualidade vocal de Amália e sua perfeita adequação ao conteúdo poético.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

POESIA DO FADO PORTUGUÊS





                                     










TUDO É BELO NESTE ÁLBUM mas, para mim, «Gaivota» é a mais extraordinária e rara combinação de talentos: a letra do poeta Alexandre O'Neill, a música do compositor Alain Oulman, com a interpretação inultrapassável de Amália Rodrigues.


- MINHA SINGELA HOMENAGEM.

FADO*

No vinho procurei o abrigo
Que teus braços recusaram
As doçuras cedo acabaram
Só mágoas guardo comigo

Do peito pisado como uva
Rios de sangue ardente
Tingiram esta alma doente
De negro manto de viúva

Sem carinho, sem ternura
Como viver esta vida
Errante, triste e dura...

Alma pra sempre dorida
Perdida em noite escura
A Morte lhe dê guarida

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* Da recolha de Poemas «Tenção»; inéditos de 1973 -1978 de autoria de Manuel Banet