Podem celebrar o poeta como o genial autor dos Lusíadas, tanto quanto quiserem!
Eu, pessoalmente não me sinto - nunca me senti - impressionado pela versificação épica!
Além do mais, não consigo olvidar que para se fazer o exame do 7ª ano dos liceus, tinha-se de saber dividir as orações dos Lusíadas. Era assim nesse tempo, «matam-se dois coelhos de uma cajadada» (pensavam eles): «Ficam a saber fazer análise gramatical e aprendem os Lusíadas». Na realidade, nem uma coisa, nem outra: Muitos de nós, até os com maior inclinação literária, perante este exercício estúpido e mecânico criavam uma aversão tal, que «contagiava» os Lusíadas!
Felizmente, tinha em casa a recolha integral das Líricas, editadas e prefaciadas pelo Prof. Hernâni Cidade. Foi esse Camões que, desde muito cedo aprendi a apreciar: A beleza do soneto e da redondilha, a subtileza e o engenho dos poemas de amor.
Noutro tomo da mesma obra estava reunida a dramaturgia, peças de teatro quase completamente esquecidas, hoje. Porém, têm real valor com aquela truculência cómica na linha direta de Gil Vicente.
Tudo isto são impressões pessoais, mas não esperem de mim outra coisa, pois a poesia e os poetas têm sido os meus companheiros. Suas palavras mágicas habitam na minha mente: Isto significa que, às vezes, lembro-me dum verso, ou duma estrofe, a propósito ou despropósito.
Deixo-vos com Mário Viegas e com Amália Rodrigues, para vos fazer apreciar a música encerrada nos versos camonianos.
«Erros Meus» dito por Mário Viegas
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
e «Erros Meus...» cantado por Amália Rodrigues (música de Alain Oulman)
«Com Que Voz» cantado por Amália Rodrigues (música de Alain Oulman)
A poesia da brasileira Cecília Meireles não se pode filiar em nenhuma escola estética, embora possua traços de simbolismo. Esta inclinação da poeta, talvez se relacione com seu conhecimento de poetas orientais, que traduziu (indianos, chineses, japoneses).
O poema «Naufrágio» foi posto em música por Alain Oulman e cantado por Amália Rodrigues, num disco* que reúne notáveis expoentes da poesia de língua portuguesa.
Em «Naufrágio», transparece o sentido trágico da perda inexorável de um referencial, o que é transposto simbolicamente na imagem do navio que se afunda no mar. Mas, este navio simboliza as esperanças da poeta, seus sonhos e esperanças perdidas.
Mas, a última quadra escapa à fatalidade inexorável. Ela não foi incluída na versão cantada de Amália Rodrigues.
A última estrofe muda o significado dos versos anteriores, pois a serenidade alcançada («tudo estará perfeito») é resultante de catarse, de ir ao fundo da dor e desespero, para renovar as energias interiores e renascer. Mas, isso é obtido por alto preço: «as minhas duas mãos quebradas».
Um poema muito belo, especialmente quando completo.
Naufrágio
Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; – depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio…
Chorarei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresça, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça
*Além do referido disco, Amália cantou fados com letras de grandes nomes de poesia lusófona. Um dos mais célebres fados é «Fado Português», poema de José Régio e música de Alain Oulman: https://www.youtube.com/watch?v=CFLO_zObeUI
Desta república dos poetas, tenho tido muito poucas notícias ultimamente. É quase certo que existem interferências, que me impedem de ouvir e ler aquilo que têm para me dizer, os habitantes desta república. Como é evidente, esta república não é uma nação física mas, apenas, uma república espiritual. É um conjunto de palavras escritas e pronunciadas, que consiste na melhor e mais duradoira parte duma língua. Será música, ela própria, suscetível de ser escolhida por compositores e interpretes, que fazem dos poemas que eles selecionam a base para suas canções, ou coros, ou poemas sinfónicos. A língua portuguesa é muito rica em sons, também em entoações regionais próprias. Beneficia também de uma vasta expansão geográfica, o que significa ser veículo de expressão de literaturas bem diversas.
Por outro lado, a biologia diz-nos que há algo muito fundamental na Língua-Mãe. Esta é ouvida pelo bebé, ainda no ventre materno. O feto reconhece a voz da Mãe e do Pai, entre todas as vozes que ouve. Está demonstrado que reage de modo diferente perante essas vozes, em relação a quaisquer outras, que lhe sejam estranhas. O recém-nascido presta igualmente muito mais atenção a conversas ouvidas na sua língua-materna, do que noutras quaisquer, embora não possua, nessa idade, capacidade linguística para compreender o significado das palavras. Mas, como a música da língua é muito própria, nos sons emitidos e na associação entre eles, os sons da língua materna são-lhe familiares.
O ser humano está predisposto, epigeneticamente, enquanto criança e enquanto adulto, a ouvir e a falar a língua do seu povo. Eis a base biológica para compreendermos a relação muito própria entre um povo e sua língua: Relação propriamente umbilical.
Desde muito cedo, apreciei a poesia. De acordo com o meu próprio estádio de desenvolvimento, enquanto criança ou adulto, fiz as minhas escolhas estéticas, selecionando nos poetas portugueses e franceses (as minhas duas culturas de origem), aqueles cujos textos desencadeavam em mim um maravilhamento. Esta sensação, o maravilhamento, ocorre quando se ouve ou lê um texto. Algumas vezes, o seu conteúdo é transmitido de forma tão perfeita e bela, que não poderia ser expresso melhor. A música é a arte humana que vem (mais) de dentro, pois está ligada à produção de sons, vibrações, pulsações do nosso próprio corpo. Aliás, sentimos também a ressonância musical vinda de outro corpo.
A música da língua está primeiro, na ordem de prioridades de «fabricação» de um poema. O poeta escolhe palavras de acordo com o sentido que deseja veicular ao leitor, mas sobretudo, escolhe-as em função da sonoridade e conjugação entre elas, para exprimir uma peça musical. Esta, pode ter grande originalidade, mas também (infelizmente) pode ser banal, desinteressante. Em geral, a força e a subtileza com que o poeta se exprime, estão relacionadas com a profundidade dos sentimentos e pensamentos próprios.
Vou estrear esta série da «República dos Poetas» com um poeta português - já falecido - David Mourão Ferreira. Evidentemente, escolherei sempre os autores e as suas obras, de acordo com o meu gosto subjetivíssimo. O que exprimo neste blog, quando falo sobre essas obras poéticas é apenas um mero reflexo pessoal das minhas escolhas estéticas e do que me vai no pensamento. Mas, as subtis harmonias que se desprendem destas obras, têm matizes infinitamente diversificados e percetíveis por Vós, meus leitores, devido à infinita variedade do humano.
Recordo aqui o poeta mais original que produziu esta «Pátria de poetas», mas que os ignora com a mesma boçalidade com que os apregoa... Ele foi surrealista - como muitos outros - e desvinculou-se desse movimento estético... A sua poesia é uma com a sua vida. Não se tomava demasiado a sério; a sua poesia é anti-enfática. Pode - ainda hoje - desencadear o espanto e uma gargalhada... - Sim, estou a falar do poeta Alexandre O'Neill, muito célebre por causa de um poema posto em canção, mas cuja restante obra poética é quase desconhecida!
Fui à praia, e vi nos limos
A nossa vida enredada,
Ó meu amor, se fugirmos,
Ninguém saberá de nada!
Na esquina de cada rua,
Uma sombra nos espreita.
E nos olhares se insinua,
De repente, uma suspeita.
Fui ao campo, e vi os ramos
Decepados e torcidos.
Ó meu amor, se ficamos,
Pobres dos nossos sentidos!
Em tudo vejo fronteiras,
Fronteiras ao nosso amor.
Longe daqui, onde queiras,
A vida será maior!
Nem as esperanças do céu
Me conseguem demover.
Este amor é teu e meu,
Só na Terra o queremos ter.
Estes dois documentos video complementam-se magnificamente. No vídeo da leitura do poema, David Mourão Ferreira aparece por breves instantes, embora não fale.
A gravação do fado foi feita ao vivo no café Luso, em 1952. Nesta gravação, pode-se apreciar a qualidade vocal de Amália e sua perfeita adequação ao conteúdo poético.
TUDO É BELO NESTE ÁLBUM mas, para mim, «Gaivota» é a mais extraordinária e rara combinação de talentos: a letra do poeta Alexandre O'Neill, a música do compositor Alain Oulman, com a interpretação inultrapassável de Amália Rodrigues.
- MINHA SINGELA HOMENAGEM.
FADO*
No vinho procurei o abrigo
Que teus braços recusaram
As doçuras cedo acabaram
Só mágoas guardo comigo
Do peito pisado como uva
Rios de sangue ardente
Tingiram esta alma doente
De negro manto de viúva
Sem carinho, sem ternura
Como viver esta vida
Errante, triste e dura...
Alma pra sempre dorida
Perdida em noite escura
A Morte lhe dê guarida
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* Da recolha de Poemas «Tenção»; inéditos de 1973 -1978 de autoria de Manuel Banet