Porque razão os bancos centrais asiáticos estão a comprar toneladas de ouro? - Não é ouro em si mesmo que lhes importa neste momento, mas é a forma mais expedita de se livrarem de US dollars!!

sexta-feira, 1 de julho de 2016

«Outro Espelho no Quarto dos Quadros» e «Soma Ausente» (poemas de Manuel Banet)




OUTRO ESPELHO NO QUARTO DOS QUADROS*

(em memória de meu Tio-avô, Édouard Gandon)

                          





Era uma tarde calma de Domingo.
O Tonton pintava um quadro, paciente, com gestos sublimados pelo saber de sombra e de luz.
Não sei o que fiz; só sei que ele se zangou. Muito medo tinha eu da mudança de sua palavra, uma censura vinda de sua boca era suficiente para apagar, num sopro, a felicidade do meu espírito.
Então, tive que fazer algo que restaurasse o equilíbrio feliz e a beleza do nosso mútuo olhar: peguei num papel e num lápis e pus-me a desenhar um Confúcio de porcelana que repousava sobre a cómoda.
Ofereci-lhe o desenho, imagem do meu tosco mas dedicado pensamento. O seu perdão foi uma aceitação simples e estou-lhe, por isso, eternamente devedor.
O quarto dos quadros era uma divisão de tecto alto em que as paredes desapareciam, para dar lugar a telas justapostas de naturezas-mortas, paisagens, retratos, composições em tons de austera e harmónica luminosidade. Havia nesse quarto um objecto fascinante: uma caixa de projecções.
Uma caixa assente sobre um tripé, com dois óculos reguláveis, permitia que se vissem paisagens, daguerrotipos sobre vidro, que recebiam a luz da janela.
Nos vastos compartimentos da casa, os móveis respeitáveis, em mogno ou nogueira, tinham o estilo das coisas perenes. Lá estavam em silenciosa compostura, ao gosto de épocas brilhantes, requintados, polidos, com “patine” sobre as decorações de bronze.
Movia-me dentro do universo estagnado, perfumado de pastilhas “Valda”, sem saber que a imagem reflectida nos espelhos só acorre quando deles se acerca o nosso rosto. Do piano de cauda do salão aos vidros do aparador, todos os espelhos me habitavam...











SOMA AUSENTE*

(em memória de minha Avó,  Júlia  Monteiro Baptista)

                                          


Era uma vez...
Assim começava minha Avó, desfolhando as maçarocas da memória. No canto do sofá seu rosto engelhado inspirava a sombra à medida que o Sol se deslocava, lento, atravessando as gelosias. Eram estórias sábias, sem começo e morais, nos lábios que formavam as letras de morango, o recorte de um silêncio enternecido.
E eu ia vogando sobre os rios calmos, na barca que Avó remava, não com remos, mas com pausas.
Eram tardes sem redemoinhos, que inevitavelmente acabavam com andorinhas trazendo chilreios aos ninhos sob o telhado. Eram espaços em tijoleira, na marquise estranhamente luminosa, ornada de plantas exóticas. Eram cascatas do jardim, melancólicas sem dúvida, distiladas entre limos.
Nas sopas de massa havia letrinhas.
No tabuleiro do escritório, rectângulos com letras; o jogo das letras, ortografia do acaso.
Não me recordo de beijos, nem de xi-corações. Mas sabia que a meticulosa paciência da Avó guardava, em arcas, os postais e outras maravilhas de frases-feitas.

Porém, o silêncio apodera-se de nós, o pudor cerrado no muro de cal.
Não posso dizer a escrita que recobria os cadernos, nem tão pouco os traços que bailavam nos desenhos...
Desenhos em que construía o historial da fantasia, povoados de cavalos, espadachins, soldados napoleónicos e – por vezes – árvores.
Lembro-me bem do movimento das luzes (de faróis de carros) que se iam projectar no tecto do quarto, à noite. Não fosse o ruído paralelo de motores e ficaria convencido que eram sonhos, traiçoeiros, iludindo a espera paciente do adormecer.


(* proso-poemas retirados do opúsculo inédito «Estórias de Estar e de Ser» 1985)


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