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quarta-feira, 31 de agosto de 2022

MITOLOGIAS (cap. X) : CASSANDRA, DA ILÍADA AOS NOSSOS DIAS

Quando falamos de Cassandra, estamos a falar de um mito, independentemente de ter existido, ou não, uma princesa em Troia com tal nome.

 A história contemporânea não reconhece a Ilíada como um escrito histórico, que sobreviveu miraculosamente, primeiro oralmente, depois por escrito, relatando a guerra das cidades-estado do Peloponeso contra Troia. Porém, a constante utilização do longo poema pelas artes, poesia e literatura nos séculos após os supostos acontecimentos,  tem criado a ilusão de que os episódios da obra atribuída a Homero seriam, senão historicamente exatos, pelo menos, verosímeis.

De facto, o que se sabe seguramente pela arqueologia, é que Troia existiu, mas que houve uma sucessão de cidades, umas sobre as outras. Além disso, não houve uma única guerra de Troia, mas sim várias. O relato de Homero (ou atribuído a Homero) poderia ter condensado, numa única narração, o longo período de guerras de  Troia contra exércitos coligados das cidades-Estados gregas.  

Podemos - portanto - considerar que Cassandra, tal como está descrita na Ilíada, releva do mito, mais do que da História mitificada. 

Eu vejo a história de Cassandra (*) como simbólica dos comportamentos das sociedades, em relação às pessoas com maior visão, mais sábias, corajosas, e sabendo que estão a ir contra a corrente mas - ainda assim - dizendo a verdade, custe o que custar,  face aos poderosos e ao povo. 

A obra de Luís de Camões contém uma «atualização» de Cassandra, na figura do «Velho do Restelo». Este desempenha, no poema épico «Os Lusíadas», a mesma função que Cassandra, na Ilíada: Profetizar perigos e desgraças que ocorrerão a Portugal e aos portugueses, em consequência do lançamento das ambiciosas e aventureiras viagens marítimas, a partir dos finais do século XV.  

Uma caraterística comum nas «Cassandras» que se nos deparam ao longo da História, é que seus vaticínios, embora pareçam sensatos quando são lidos após os acontecimentos, foram descartados como  fantasias, sintomas de loucura, palavras vãs, pelos indivíduos que, contemporaneamente, ouviram ou leram tais profecias. 

Figura: Aquando da queda de Troia, Cassandra, que se refugiara no templo de Atena, é  violada e depois feita escrava.

No mito, Cassandra é abençoada com um dom, que consiste na capacidade de ver o futuro e, em simultâneo, é amaldiçoada com a impossibilidade de que suas palavras sejam tomadas a sério por seus concidadãos, incluindo a sua própria família. 

Na nossa época, as «Cassandras» avisaram com detalhe e antecedência e, como na lenda, não foram ouvidas. No âmbito económico, mas com grande repercussão política, a chamada «crise das sub-prime» (2008), levou ao quase desmoronamento do castelo de cartas da economia financeirizada. Esta crise foi prevista - com antecedência - por mais do que um analista dos mercados, incluindo figuras célebres do mundo financeiro.  

Mais recentemente, autores de várias escolas de pensamento económico, têm feito avisos muito enfáticos sobre a iminência de um colapso muito superior, em magnitude, ao de 2008. Os avisos são dirigidos ao poder financeiro nos bancos centrais e ministros da economia e finanças dos governos. Estes preocupantes alarmes têm sido também publicados na media, ao alcance do mais amplo público. 

Estes avisos, como os das outras «Cassandras» da História, estão a ser completamente ignorados, por quase todos: Desde pequenos especuladores, a gestores de Wall Street e doutros centros financeiros, a políticos - tanto no poder, como na oposição. Para mim, esta situação não só ilustra a enorme miopia dos poderes, especialmente após o quase colapso de 2008, como parece ser uma enésima atualização da história de Cassandra da Ilíada.

As multidões costumam ignorar, escarnecer, ou mesmo, violentamente atentar contra pessoas que vêm contrariar preconceitos e medos obsessivos. A fúria das multidões é estimulada por ditadores e demagogos, que assim defletem a ira e a frustração popular para que, perante as consequências de suas decisões aventureiras e fatais, nunca lhes sejam atribuídas responsabilidades, mas ao «bode expiatório». 

As pessoas com lucidez e juízo, nestes tempos conturbados, devem ser discretas. Não se devem expor, pois seriam «arrastadas na lama», ou ostracizadas, no mínimo. Devem preservar-se, pois de nada serve tentar convencer uma multidão fanatizada ou hipnotizda

Estas tentativas vãs apenas irão exacerbar a vontade de vingança das massas enganadas, que julgam que «o mensageiro das desgraças» é o causador das mesmas. O mensageiro é castigado em vez do tirano, que afinal de contas, é o causador das más notícias trazidas pelo primeiro. 

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(*) Citação da «Cassandra» de Friedrich Schiller:

« Por que me encarregaste tu de proclamar as tuas profecias com um pensamento lúcido numa cidade cega? Por que é que me fazes ver aquilo que não poderei desviar do nosso povo? O destino que nos ameaça deve cumprir-se, a infelicidade que eu temo tem de realizar-se, a desgraça que eu antevejo tem de acontecer»...

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ARTIGOS ANTERIORES DA SÉRIE MITOLOGIAS:

domingo, 15 de maio de 2022

MITOLOGIAS (III) QUIMERAS

Chamam-se quimeras, as figuras de animais fantásticos, parte de uma espécie e outra parte, de outra. O termo também se aplica quando uma das partes em causa é humana, sendo a outra animal. Será o caso, por exemplo, das quimeras célebres, as esfinges e as sereias.

Tanto umas como outras, têm uma parte do corpo, de origem humana (do sexo feminino) e outra parte de animal. Hoje irei apenas referir um caso das sereias, deixando pra outras alturas a reflexão sobre outras quimeras. Há tanto por onde escolher, que seria impossível fazer um artigo pequeno, como os desta série «Mitologias»; seria necessário fazer toda uma série deles. Com efeito, quase todos os relatos mitológicos envolvem, num ou noutro ponto, um animal que se pode chamar de «quimera»; em todo o caso, desempenham funções de relevo num número incalculável de mitos.




As Sereias

Mulher-Peixe seria a definição das sereias, porém, verifica-se que podiam tomar o aspeto de aves parecidas com mochos, a julgar por um vaso pintado de terracota, descrevendo a história de Ulisses, tentado pelas sereias.


O canto das sereias era a perdição dos marinheiros que, seduzidos, mergulhavam no mar revolto, para nunca mais voltarem.

Ulisses, porém, fez-se amarrar ao mastro do barco pela sua tripulação. Esta, por ordem do seu capitão, tinha tapado os ouvidos com tampões de cera, enquanto ele - Ulisses - tinha os ouvidos bem abertos, mas não podia libertar-se das amarras. Teve possibilidade de ouvir os sons maviosos que emitiam esses seres fantásticos, mas sem sucumbir ao mal de enlouquecer e de as seguir para o abismo.

A alucinação de Ulisses e de tantos marujos era efetivamente sonora: ninguém sobrevivia a esse sortilégio, pelo que ninguém podia exprimir ou explicar em que consistiam esses cânticos tão sedutores, que causavam a perdição de tripulações inteiras.

Estamos perante uma história que teve com certeza inúmeras versões orais, antes de Homero a registar na Odisseia, admitindo que Homero ele próprio não fosse um mito, admitindo ainda que tenha sido ele, não apenas a compor, como a dar a versão escrita, hoje conhecida, da Ilíada e da Odisseia.

Mas, esta história não tem a ver com quaisquer híbridos de mulheres e animais, ou até mesmo com os perigos que enfrentavam os marinheiros nos mares desconhecidos. Mesmo que a narrativa linear esteja exatamente descrevendo essa ocorrência. Estamos no reino da poesia, da metáfora, do conto moralizante, de tudo menos de uma descrição de qualquer fenómeno natural.

Eu não acredito que as histórias maravilhosas - ou mitos - que os homens contaram e transmitiram oralmente, desde tempos imemoriais, fossem vistas por eles como relatos de acontecimentos, de fenómenos naturais ocorridos, ou até como testemunhos fiéis das aventuras de heróis famosos.

Não; o mito não era algo da ordem do real. Não creio que o vissem como sendo algo extraordinário, mas ainda assim, na esfera dos possíveis. Antes, como a fantasia revelando uma verdade oculta, algo que era importante os homens tomarem consciência, ficando precavidos e capazes de reagir perante sua ocorrência.

No caso do cântico das sereias, é evidente que a metáfora é a do coro de elogios, de melodias maviosas, irresistíveis a muitos ouvidos, mesmo aos dos marinheiros empedernidos e dos heróis calejados da guerra de Troia.

Ou seja, o tema real é a tentação dos homens. De sucumbirem ao efeito sedutor das fanfarras, dos elogios, das glórias, que acompanham os vencedores. Seria o referido cântico uma metáfora da corte de bajuladores que acompanha os vencedores, que os leva à embriaguez da vitória ou «húbris», pela qual estão dispostos a cometer as maiores loucuras, como a de mergulhar num mar tempestuoso, para irem ao encontro das vozes canoras.

A "vox populi" (dos romanos), era essa voz que entoava os cânticos de sereias. Era essa a tentação que era preciso, a todo o custo, evitar. A voz coletiva que desencadeia a loucura para a qual são arrastados os heróis, de repente guindados ao cimo do poder.

Hoje em dia, não existe freio, nenhuma retenção por parte dos poderosos. Eles dominam através das «vozes de sereias» da comunicação social.
Notem que «media» significa mediador. Este mediador (coletivo) substitui-se ao que deveria ser a voz do povo.
A «vox populi» já não se exprime de modo nenhum; a substitui-la ouvem-se apenas os gritos, apelos «patrióticos» e outros slogans «encantatórios», que têm como destinatários, não os ouvidos dos poderosos - eles é que encomendam tais sinfonias - mas os nossos.
O vozeiro obsessivo, permanente da media, destina-se a que o povo permaneça iludido, ou pior, que se encaminhe para o precipício, inconsciente de que quem o embala com cânticos de sereias, são os donos da sua escravidão.
Já não é sem tempo, que as pessoas acordem do seu encantamento ou hipnose: Pois elas são como os marinheiros, mas sem os tampões de cera e sem um Ulisses para sabiamente as guiar.

sábado, 9 de outubro de 2021

O HOMEM HOMÉRICO

 
 
Raras vezes tive tanto prazer em ouvir um diálogo desta natureza, literária e filosófica, como aquele que aqui deixo à vossa consideração. Sylvain Tesson despertou a minha curiosidade: Vou procurar os poemas épicos de Homero e lê-los numa boa tradução. Parece-me tão acertado ler Homero agora, como em qualquer outra época; a humanidade que ele descreve é a mesma, são as mesmas paixões, a mesma húbris, as mesmas racionalidades, os mesmos individualismos, os mesmos coletivismos.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

DO NEOLÍTICO À IDADE DO BRONZE (PARTE V)

Este episódio finaliza a série (ver outras partes: I, II, III, IV )


Para ter uma ideia do período complexo que foi o final da idade do bronze, decidi aprofundar o estudo sobre aquilo que nos diz a arqueologia sobre o assunto da guerra de Tróia.

Ela foi celebrizada por Homero, mas existiu ou não ? E se existiu, foi realmente como ele a descreveu, ou a realidade afasta-se muito da epopeia? ...Existiram realmente as personagens da Ilíada?

De muito se frequentar a antiguidade e os seus escritos, acabamos por fazer uma ideia completamente idealizada do passado. Tanto mais que poetas, escritores, dramaturgos da Antiguidade, passaram a escrito estes episódios centenas de anos depois da sua ocorrência: não apenas é o caso da Ilíada, como doutras gestas dos seus povos.  Eles não se preocupavam com a objectividade histórica; tinham apenas em mente a glória do seu povo e dos seus heróis.

O que sabemos hoje da história real da guerra que se concluiu com a tomada e destruição de Tróia, o tema da obra de Homero designada por «Ilíada» ?

Felizmente, temos uma excelente série de vídeos para nos guiar em tão complexa e fascinante busca da verdade, debaixo do mito.

Lição nº1: (introdução)

                    


Lição nº2: os micénios

                    


Lição nº3:  os hititas


                   

              

Lição nº4: os povos do mar

                  


Lição nº5: a literatura grega, o ciclo épico

                  

A continuação da série de vídeos pode ser seguida clicando nos números seguintes: nº6, nº7, nº8, nº9, nº10, nº11, nº12, nº13, nº14 
É muito interessante e instrutivo seguir, nos vários episódios, as múltiplas evidências da arqueologia, confrontando-as com as versões literárias dos eventos. 

Pessoalmente, verifico que não sabia quase nada sobre a realidade do império Hitita, sobre a transição tumultuosa entre a idade do bronze tardia e o início da idade do ferro. 
Depois de ver/ouvir esta série, parece-me que, embora tenham identificado e escavado o local de Tróia no noroeste da Anatólia, demasiado pouco sabemos sobre o reino que foi derrotado. 
Seria Tróia um reino vassalo dos hititas? Seria a guerra de Tróia, não entre troianos e gregos mas com terceiros, sendo os gregos aliados e não inimigos?  
Homero descreveu uma guerra que realmente existiu, estou convencido. Mas pode ter fantasiado um certo número de eventos, mesmo que alguns factos tenham sido confirmados pelas escavações. 
É possível que a guerra de Tróia tenha consistido numa série de campanhas. O que Homero descreveu, seria então a campanha final, que resultou na destruição da cidade-estado de Tróia. 


Lição nº14: lição conclusiva sobre a guerra de Tróia