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sábado, 16 de julho de 2022

MITOLOGIAS (VIII) MIDAS E A ECONOMIA FINANCEIRIZADA

 


Tenho estado a ler Michael Hudson. Já tinha tido contacto com este autor, desde há alguns anos, através artigos lidos na Internet, bastante esclarecedores e originais*, do ilustre professor de economia. Mas, ler um livro «em papel» é realmente outra coisa. Sobretudo, quando esse livro nos traz tanto conhecimento verdadeiro sobre economia, desfazendo os mitos que enformam a nossa época. 

E que tem isso a ver com a lenda do Rei Midas, que recebera de Dionísio (Deus da embriaguez, do amor sensual e dos excessos...) o dom de transformar em ouro, tudo aquilo em que tocasse? O ouro, nessa altura, era sinónimo de riqueza, a mais óbvia forma de riqueza, a forma de entesouramento preferida por reis e grandes comerciantes.  

Na realidade, o que nos diz o mito, tem a ver com riqueza acumulada que não corresponde a nenhum contributo prévio do seu possuidor. Um proprietário de terrenos aluga esses terrenos a agricultores; estes pagam uma renda. Um proprietário de dinheiro, moedas de ouro e de prata, empresta a juros, aumentando assim seu património, sem que tenha  contribuído com algo, do seu próprio esforço, para o aumento da riqueza geral. 

Michael Hudson sublinha que a riqueza adquirida por alguém sem que esta tivesse, de uma ou outra forma, contribuído para o acréscimo de riqueza ou bem-estar geral, os chamados «rentistas»,  era uma preocupação central das doutrinas económicas clássicas, desde Adam Smith, David Ricardo, J.S. Mill, Marx e outros. Até ao final do século XIX, muitos estavam a favor do capitalismo industrialista, contra um capitalismo rentista. Este não era senão uma herança do feudalismo, que as revoluções burguesas derrubaram, nos finais do séc. XVIII e ao longo do século XIX. Pois, se houve revolução política com o advento do Estado burguês, ao nível económico subsistiam muitos resquícios de feudalismo, como a classe dos terra-tenentes, tão relevantes na Itália do Sul, na Espanha e em Portugal, nomeadamente. O seu domínio estendia-se sobre aldeias inteiras com seus habitantes, situadas no meio de  quilómetros quadrados de terra pertença do senhor feudal, do latifundiário. 

Hoje em dia, o rentismo, ou extração de riqueza sem ter contribuído com nada de positivo para a economia, para a subsistência, o conforto ou a melhoria da sociedade, pode dizer-se que se estendeu e diversificou como nunca: Com efeito, a economia financeirizada é isso mesmo. A glorificação desta financeirização veio acompanhada de ideologia própria: O reaganismo-theacherismo e todos os seus derivados, incluindo o chamado «socialismo de terceira via» (Tony Blair e muitos outros); sobretudo, com as teorias neoliberais em economia (Milton Friedmann, e tutti quanti...).

Se o mito de Midas não fosse mais que uma fábula moralista, não seria suficientemente estimulante, para mim. Compreendo agora a metáfora, a um nível mais profundo, graças a Michael Hudson. Com efeito, a economia de renda «transforma em ouro (em riqueza)» tudo aquilo em que toca, no sentido do rentista obter acréscimo de riqueza, devido à exploração dos que não possuem meios de escapar à extração dessa renda: Não apenas sob forma da mais-valia salarial, como pela necessidade de recorrer ao crédito, para ter acesso a casa própria (os juros hipotecários dos bancos), ou para pagar os estudos, ou para comprar um carro (muitas vezes instrumento de trabalho do trabalhador precarizado, o «empresário individual»), etc. 

Do ponto de vista do rentista há um acréscimo, ao capturar rendimento, o que - aliás - se vai traduzir por aumento correspondente no PIB dum país, mas sem que tal corresponda a um verdadeiro aumento da riqueza global. Com efeito, se alguém - o indivíduo A -desvia parte do seu rendimento, não para consumo pessoal ou para investimento produtivo, mas para pagar uma «renda», (em termos atuais...) prestações incluindo juros, a quem lhe emprestou dinheiro. Se o rendimento desviado vai para a conta de B, então não houve acréscimo de riqueza. Houve apenas uma transferência, duma conta para outra, do excedente gerado por A. Este excedente corresponde ao que A conseguiu pôr de lado, sem deixar de satisfazer as necessidades básicas próprias e da família. É evidente que, sob o capitalismo, quando a capacidade dos pobres e das classes médias diminui, devido às crises periódicas que o assolam, eles perdem os bens que estavam a adquirir a prestações (incluindo a sua casa própria), ou são espoliados de bens dados em garantia, indo essa riqueza material parar às mãos dos proprietários do capital, em geral, membros da oligarquia: No nosso tempo, a oligarquia é sobretudo a detentora do capital  financeiro e imobiliário;  na Grécia antiga, onde foi originado o mito do Rei Midas, era sobretudo a dona da terra, da propriedade agrária.

O Rei Midas transformava em ouro tudo aquilo em que tocava, mas o ouro não é vida, o ouro é estéril, aquilo que se transforma em ouro deixa de participar na economia produtiva, apenas fica entesourado. Como analogia perfeita, note-se que o entesouramento vai traduzir-se numa perda da sociedade no seu conjunto, porque esse capital não é posto ao serviço da economia. O Rei Midas armazenava-o numa torre, onde ia deliciar-se, tocando nas riquezas que eram dele e só dele. 

Hoje, como exemplos de capital não produtivo, temos «buy backs» ou auto-compra de ações de empresas cotadas em bolsa, que assim desviam potencial investimento produtivo para manterem as suas ações artificialmente altas. Temos os capitais especulativos (hedge funds, bancos de investimento) que «vivem» do saber antecipado dos movimentos e oportunidades dos mercados, normalmente, pelo insider trading, pois não possuem uma «bola de cristal»! E também, as muito importantes e generalizadas rendas de monopólio, é o caso dos preços praticados por  grandes empresas de informática e de tecnologia da informação entre outras, que conseguiram eliminar os concorrentes. Nestes casos, o preço cobrado não tem qualquer relação com o custo e produção do bem ou serviço, mas com aquilo que a empresa monopolista estima ser a capacidade aquisitiva e/ou o desejo do consumidor, condicionado pela publicidade. Tudo isto, são diversas formas de extração de «renda», ou seja, um rendimento não resultante de input real  do proprietário do capital.  

Michael Hudson, recentemente, deu uma conferência  em que fez o historial das diferenças entre civilizações da antiguidade. Nos impérios do Médio-Oriente e da Ásia, havia a noção de que ser credor dava demasiado poder e que as dívidas tinham, de tempos a tempos, de ser perdoadas (os anos de jubileu, ou de Shemitah) para que reinasse a paz social. Enquanto nos reinos e impérios do Ocidente (Grécia e Roma), a oligarquia conseguiu impor a sua lei: O credor tinha sempre o direito do seu lado. A restituição do que estava em dívida, tinha prioridade jurídica absoluta. Foi assim que os agricultores endividados ficaram espoliados das suas terras e  foram transformados em proletários, em servos ou em escravos.

Esta interpretação jurídica do direito de propriedade e da prioridade que têm os credores sobre os bens das pessoas endividadas, continuou até hoje, no Ocidente,  através do direito romano e logo do direito anglo-saxónico, atualmente imposto como a norma em grande parte das relações mercantis, económicas e financeiras internacionais. 

Este processo, onde o credor tem um poder de vida e de morte sobre o devedor (a etimologia do termo inglês para hipoteca, «mortgage», vem do francês antigo, literalmente: «fazer um juramento sob pena de morte», caso ele não seja cumprido), abafa as forças produtivas em qualquer sociedade submetida a ele. 

Muito capital é desviado para as mãos dos credores. Este capital, é (em grande parte) entesourado, não é reinvestido na economia produtiva: O resultado é o empobrecimento geral da sociedade visto que o rendimento disponível global (o capital disponível para ser investido) vai sempre diminuir.

Como tentei explicar, a lenda do Rei Midas poderá ser muito mais rica de significado, do que uma banal história moralista sobre a ganância e os males que advêm aos gananciosos.

*Por exemplo, From Junk Economics to a False View of History ,recentemente publicado, que resume algumas partes do livro The Destiny of Civilization

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MITOLOGIAS (VII) O GRANDE MITO DO NOSSO TEMPO

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MITOLOGIAS (VI): ASTROLOGIA

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MITOLOGIAS (V) : COSMOGONIAS, OS MITOS DAS ORIGENS

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MITOLOGIAS (IV)TRANSFORMAÇÕES ZOOMÓRFICAS

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MITOLOGIAS (III) QUIMERAS

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MITOLOGIAS (II): PROMETEU AGRILHOADO

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MITOLOGIAS (I) : OS CICLOPES

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domingo, 5 de junho de 2022

MITOLOGIAS (VI): ASTROLOGIA

                                           


Nesta curta nota, não pretendo abordar todos os aspetos da questão. A história da astrologia confunde-se com a história das civilizações e não se pode dissociar da conceção tradicional do Universo, dada pelas diferentes religiões.
Parece-me mais adequado pensar a astrologia como parte integrante de crenças que se cristalizaram - em várias civilizações - em ciclos de mitos. Com efeito, se os mitos são narrações produzidas e reproduzidas em determinadas culturas, tendo valor exemplar (como na Grécia Antiga, por exemplo), esses mitos são também visões do Mundo, da Génese ou das Origens. Têm como função explicar os mistérios do Cosmos, da Natureza, da existência Humana.
 
Na astrologia terão operado dois níveis distintos:
- O empirismo, com a observação de estrelas e planetas, em geral, das suas trajetórias na abóbada celeste, dos ciclos, da sua periodicidade, a repetição das figuras do zodíaco, cada constelação zodiacal aparecendo sobre um dado ponto da abóbada celeste no mesmo período do ano. Este nível tem uma importância prática, sobretudo a partir do momento em que é preciso determinar o tempo de semear em função da época do ano, ou outras tarefas do ciclo agrícola anual. Ou seja, a civilização agrária, a revolução neolítica, implicam o domínio, não apenas das espécies vegetais cultivadas, ou de animais domesticados e selecionados, como também o domínio do calendário, da meteorologia e de todos os fenómenos associados. Trata-se de saberes absolutamente indispensáveis, quer para a agricultura, quer para a pastorícia. 

- A religião, no sentido etimológico, tem a função de religar o homem com o cosmos, com o sopro divino, a harmonia natural e a criação. Como tal, a ordem de baixo tem de ser análoga à ordem o alto (Tábua de Esmeralda, dos Alquimistas). Isto, tanto no caso da astrologia, como da alquimia, é do domínio das correspondências: A relação do dia e hora do nascimento, com os astros (planetas, constelações) que se encontram por cima do indivíduo, nesse momento. Esta é uma relação direta, determinista e indelével. 
               
                                                     

Aquilo que hoje se designa por astrologia é uma forma de divinação, baseada na «carta dos céus» astrológica, correspondente à configuração astral no local e data do nascimento da pessoa. Mas, este conjunto de crenças tem uma origem muito evidente: Corresponde ao universo mental do politeísmo.
A astrologia é uma prática divinatória com a qual o cristianismo teve de se acomodar desde as origens. Mas, na sua essência a religião dos Evangelhos é contrária às práticas e teorias implícitas na astrologia. Basta reparar no que se passou com muitas festas «cristãs» como a festa do Natal cristão (o festival pagão do Sol Invicto e solstício de inverno) ou a Festa de S. João Baptista (celebração dos Deuses do fogo e solstício de verão). A religião cristã institucionalizada teve de acomodar práticas pagãs milenares presentes no império romano e em todas as áreas para onde o cristianismo se expandiu.
Mas, ao nível dos arquétipos, da psicologia profunda, a crença na astrologia desempenha um papel especial. Hoje, muitas pessoas absolutamente normais, cultas e equilibradas, têm uma crença na astrologia, nos signos. A um nível profundo, elas estariam à procura duma identificação com um animal fétiche, um totem: Trata-se, afinal, da mesma necessidade que os povos ameríndios têm de estar associados ao animal-totem. Mas, neste caso, trata-se de identificação coletiva, ao nível da tribo, enquanto na religião dos signos trata-se de identificação individual. Muitas pessoas na nossa sociedade têm desejo de pertença, mas não seguem uma religião aparente, institucional. A crença nos signos não é vista como «religião», mas preenche o papel central que é desempenhado por qualquer religião: RE- ligar o humano com o cosmos.
Será a astrologia de hoje, uma forma degradada e inconsciente de culto pagão? Note-se que ela permite às pessoas «justificar» o seu fatalismo. A crença num mecanismo que determina o indivíduo desde a nascença, é um determinismo férreo. Está-se perante a negação explícita do livre arbítrio, um conceito importante na teologia e filosofia ocidentais. O determinismo pode ser reconfortante para alguns: Possibilita mecanismos psicológicos de identificação e de conciliação consigo próprio.
Nas sociedades ocidentais, hedonistas e individualistas, a religião aparentemente não existe. É o que parece, mas -afinal - não é assim: É frequente ouvir-se dizer que «não acredito em Deus, nem na vida para além da morte». Porém, ao mesmo tempo, acredita-se que a configuração astral, no momento do nascimento, foi determinar todos os aspetos da personalidade. Além disso, as conjunções de astros traçariam o percurso da vida inteira, desde as escolhas no plano amoroso, às profissionais, etc. É uma forma da pessoa não se assumir como responsável pelos seus atos: «Aquilo que sou, aquilo que fiz, é devido ao meu signo».

Em resumo, os mitos nas cabeças dos contemporâneos, não serão assim tão diferentes da mitologia dos Sumérios, Fenícios, Egípcios, Gregos, etc. Há milhares de anos atrás, estes usaram o conhecimento empírico dos movimentos dos astros, de maneira que puderam viajar em terras incógnitas, ou por mares não navegados, ou fazer previsões corretas sobre as estações do ano e fenómenos meteorológicos associados. Estes, sempre foram conhecimentos muito úteis para agricultores e pastores. Eles banhavam num universo mental politeísta. Por dentro da matriz politeísta construíram explicações para os fenómenos astronómicos observados: O retorno periódico dos astros, correlacionado com fenómenos dos mares, da vegetação, das migrações das aves, etc.
Hoje, porém, uma «mitologia astrológica» parece desempenhar um papel de religião, mas degradada ao nível de crença. A crença, para sobreviver, tem de se fechar em relação à realidade, ao saber científico. A crença aposta na transformação interior do indivíduo e não busca coerência, nem com o mundo, nem com os saberes científicos. Isso não é importante para ela; é antes um obstáculo. No entanto, hoje, para se compreender os fenómenos cósmicos, é indispensável o conhecimento científico da Astronomia e da Cosmologia, que são tão diferentes da astrologia, como a Química é da alquimia.
Porém, note-se, há quem se interesse pela astrologia numa perspetiva não-ingénua, não-ocultista, como assunto antropológico. Compreender os mitos e as crenças, não só do passado ou de povos exóticos, mas igualmente de nossas sociedades contemporâneas, faz todo o sentido. É uma chave para o universo mental individual e para as ideologias que moldam as sociedades.

MITOLOGIAS (V) : COSMOGONIAS, OS MITOS DAS ORIGENS

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MITOLOGIAS (IV)TRANSFORMAÇÕES ZOOMÓRFICAS

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MITOLOGIAS (III) QUIMERAS

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MITOLOGIAS (II): PROMETEU AGRILHOADO

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MITOLOGIAS (I) : OS CICLOPES

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segunda-feira, 23 de maio de 2022

MITOLOGIAS (V) : COSMOGONIAS, OS MITOS DAS ORIGENS


 
Praticamente todas as culturas presentes ou passadas possuem suas narrativas da Génese, da Origem do Universo, da Origem da Humanidade.

 Embora estas narrativas sejam completamente diferentes na aparência, se pegarmos em descrições oriundas de povos não industrializados, na África ou América do Sul e Central, por exemplo, verificamos que todas essas descrições se enquadram num conjunto que - explicitamente - se coloca como explicação do que atualmente existe, da existência do homem e da mulher, dos animais, do Sol, da Lua, etc.

 Os mitos de origem na Grécia antiga não são exceção, no fundo. Eles se conformam com uma visão do caos (primordial), a partir do qual nascem os primeiros deuses, claramente personificações de forças naturais, visto que «comandam» essas forças. 

A mitologia greco-romana distingue claramente o tempo das origens do tempo presente. Não existe uma continuidade, mas antes uma série de etapas descontínuas, pelas quais passaram o Universo e o Mundo. Nestas fases, embora o presente seja necessariamente herdeiro delas, não está sujeito às mesmas forças ou a manifestações esbatidas, somente, como que a testemunhar do tal passado remoto. Por exemplo, sendo os titãs responsáveis pela forma como foi moldado Mundo, a geologia, as montanhas, os mares, etc., o seu trabalho está basicamente completado e o que se observa - agora - é o resultado dele.

Note-se que as cosmogonias orientais, como a Hindu, a Budista, a Taoista, etc. são completamente diferentes, visto que partem doutro princípio organizador. Nelas, o tempo não é linear, mas circular. A existência de ciclos, leva a que seja possível observar «n» vezes os mesmos processos naturais, os mesmos fenómenos. Terá sido isso que levou povos e filósofos dessas culturas a postular que o tempo é cíclico. Segundo algumas correntes orientais, o tempo seria ilusão, ou mera aparência; o tempo existiria só na nossa mente.   

Legenda da Figura 1: Representação de Omphalos, a origem do mundo, num templo grego

A mitologia grega - da qual se vão inspirar as tradições europeias - postula uma origem absoluta do Universo, a partir do «ovo primordial». A rutura do equilíbrio teria desencadeado o caos, que se foi transformando em ordem, em resultado do trabalho dos titãs, deuses primordiais e progenitores dos deuses do Olimpo. 

O tempo é unidirecional e aberto, na mitologia grega, a qual foi inspiração de todas as narrativas do Ocidente, em relação à origem do Mundo.

Por contraste, o tempo é cíclico em bom número de cosmogonias asiáticas; tal distinção leva a que sua cosmovisão seja totalmente diferente da ocidental. 


                                 
Legenda da figura 2: A imagem do Ouroboros, ou serpente que morde a sua própria cauda, é um símbolo do tempo cíclico. Foi adotada no Ocidente por influência provável de filosofias orientais.

Talvez seja isso o que distingue mais a filosofia Oriental (Chinesa, Japonesa, Indiana, etc.) da Ocidental (Greco-romana, Judaica, Cristã, Islâmica). 
As consequências não se limitam à filosofia, pois podemos encontrar reflexo disso na economia, na administração pública, na política, na estratégia e nas ciências sociais, desde a História, à Sociologia, à Antropologia. 
Por debaixo da aparente uniformidade de discursos, existe uma estrutura profunda totalmente dissemelhante. Não se deve considerar que uma é a forma «correta» e a outra «errada» de conceber as origens e as transformações. 
A riqueza e diversidade na abordagem dos fenómenos naturais e sociais é um aspeto positivo que possibilita a fecundação recíproca das culturas e civilizações. 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

MITOLOGIAS (IV)TRANSFORMAÇÕES ZOOMÓRFICAS



Cópia de um quadro perdido de Michelangelo representando Leda e o cisne


Zeus era conhecido por se transformar em animal, touro, cisne ou outro, e desse modo seduzir as mulheres que desejava, fecundá-las e estas inevitavelmente produziam uma progénie, que iria refletir de algum modo a excecionalidade da sua proveniência: ou pela sua beleza, ou pelas suas capacidades físicas, morais, intelectuais, etc.    

Esta capacidade em se transformar num animal, não era exclusiva de Zeus; todos os deuses do Olimpo a praticavam. Os heróis, os descendentes de deuses e humanos, talvez não tivessem a maravilhosa propriedade, encerrados que estavam na sua condição humana, mesmo que manifestassem atributos incomuns, em termos comparativos com os meramente humanos.  

Todos conhecem a história lendária de Leda. Ela deixou-se seduzir por um cisne, que não era senão Zeus. Este, através do estranho estratagema pode enganar o marido legítimo de Leda. Desta união nasceram, a partir de ovos, Castor e Pollux (os dois gémeos masculinos que acabaram por ir para a abóbada celeste, daí o nome duma das constelações), Climenestra e Helena.

Climenestra e Helena, tanto uma como outra, estão ligadas ao ciclo da epopeia da Ilíada. Helena é muito mais conhecida, visto que foi, segundo a lenda, raptada ao seu marido o rei de Esparta, por Páris, desencadeando a guerra de Troia. Climenestra tem uma história igualmente trágica, associada ao mesmo ciclo da Ilíada.

Como se vê, os produtos das uniões adulterinas com Zeus produziam seres excecionais, mas trágicos também. 

Outra célebre história de zoomorfismo ou de amores com animais, é a de Neptuno, transformando-se em touro, seduzindo e fecundando Pasífae, esposa do rei Minos. Na verdade, Pasífae faz muito para seduzir o touro em que o deus Neptuno se tinha transformado. Pede a Dédalo, o célebre arquiteto do rei de Creta, para construir uma réplica de vaca dentro da qual se esconderia. Esta réplica, perfeita e natural, seduziria o touro. Mais tarde, invocou ser forçada a tal conduta pelo facto do rei Minos ter sido perjuro, não satisfazendo a promessa feita a Neptuno. O produto da cópula do deus dos mares, com a rainha de Creta, foi o Minotauro, com corpo de homem e cabeça de touro.  Um  produto tão evidente destes amores, tinha de ser escondido no Labirinto

Além do princípio de que os deuses se podem transformar no que quiserem, nota-se a  aceitação «natural» da lascívia, perversidade, ou até, da propensão para a bestialidade (ter relações sexuais com animais), mas - sobretudo - do lado feminino! Ainda por cima, são caraterísticas dadas a mulheres de alta condição, como rainhas ou princesas.

A excecionalidade dos costumes dos deuses fazia parte da mitologia clássica. Eram capazes de fazer coisas completamente vedadas aos homens, também relativamente à lei moral, como serem adúlteros ou incitarem ao adultério, tomarem, violentarem as suas presas, usar toda a espécie de manhas, etc... 

Mas, este erotismo violento, tirânico, possessivo não seria a mera projeção do que se considerava ser "varonil" nessa época? Não seria a narrativa dos deuses, a projeção do comportamento dos grandes, dos poderosos? Não estaria já a mulher a ser vista apenas como presa, ou como sedutora, papeis estes que se foram acentuando e prolongando, com modificações, até à era cristã: A mulher «santa» e submissa, aceitando o sacrifício ou a «meretriz» sedutora e diabólica...

                            

                               BAIXO-RELEVO: LEDA, O CISNE E CUPIDO (ÉPOCA ROMANA)

Pessoalmente, estou convencido que gregos e romanos não «acreditavam» nestes mitos, no sentido literal: Como acreditar que Leda tivesse realmente sido fecundada por um cisne? Ou que Pasífae tivesse gerado um monstro com cabeça de touro e corpo de homem, por ter copulado com Neptuno/touro ? Muitas outras histórias também desafiam o senso comum. 

Claro que os que narram os mitos descrevem-nos como tendo acontecido, como estando na origem de constelações, de dinastias ou de guerras, etc. Assim, a origem semidivina da casta governante era afirmada. Também, a «imoralidade» aparente das histórias dos deuses olímpicos, tinha a restrição de que os deuses estavam para além do poder, da compreensão e da própria moral dos homens. Era assim compreendido e integrado o ato sexual, enquanto desejo violento, irracional, impulsivo. Assim eram - também - as pulsões eróticas dos próprios deuses. 

Lucrécio, no seu célebre poema De Rerum Natura, cita os deuses, mas não dá muito crédito à sua existência. Limita-se a dizer que eles, lá no Olimpo, vão vivendo sua vida, com suas intrigas, sem se importarem com o mundo dos homens. 

Esta atitude era de quase ateísmo, o mais extrema possível, não ofendendo porém as leis de Roma. Se afirmasse claramente que os deuses não existiam, poderia ter sérios problemas  com as autoridades. Mas, note-se, todo o discurso filosófico-científico do longo poema se centra nas causas naturais e em como não devíamos estar preocupados com o além. 

Assim, no contexto de afirmar a prevalência absoluta das coisas naturais, fornece explicações inteiramente racionais sobre a hereditariedade  e a sexualidade. É notável que - embora conceda grande capacidade geratriz e transformadora à Natureza - não tenta «explicar» o que é da ordem do mito: As quimeras, as transformações miraculosas, etc. Nomeadamente, recordo-me duma passagem, onde argumentava que, se uma árvore dá maçãs, não se pode esperar que ela dê peras, nem que da semente da maçã surja outra árvore, que não seja uma macieira.

Este poema foi escrito na época latina, depois do declínio e conquista do mundo grego pelos romanos. Porém, Lucrécio recolhe toda a tradição de Epicuro (do qual restam poucos originais). Epicuro e Demócrito estão no âmago da cultura grega. Mesmo que estes filósofos e correntes filosóficas não tivessem sido dominantes no seu tempo, é evidente que suas teses foram bem conhecidas doutros filósofos contemporâneos. 

As histórias de transformações (sobretudo de deuses) em animais, muito comuns nos relatos da mitologia greco-romana, são formas poéticas. Tal como em relação às quimeras (grifos, esfinges, etc.), desempenhavam um papel nas narrativas míticas, mas tais histórias não eram percebidas - nem por antigos, nem por modernos - como relatos de casos verídicos, nem sequer, verosímeis. 

Eram símbolos e como tal, tinham um papel, mas esse papel não era o de explicação racional. Eram uma forma de acomodar o universo do inconsciente, as pulsões profundas da alma, individual e coletiva, a aceitação da irracionalidade do mundo, a metáfora das forças obscuras que nos atravessam o espírito e sobre as quais não temos um controlo verdadeiro. Enfim, faziam parte dos arquétipos e do  que Jung designa por «inconsciente coletivo». 

Estavam na raiz e no centro da mitologia greco-romana. Não se poderia estar «dentro» dessa civilização, sem dialogar com esses mitos fundadores, os quais se propagavam sob todas as formas.

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Nota: Em baixo seleciono alguns links. Nestes, pode o leitor obter informação complementar.

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1- Metamorfoses. Lúcio de Apuleio.
   

2- A titânide Métis, primeira esposa de Zeus e mãe da deusa Atena, era considerada capaz de mudar sua aparência para qualquer coisa que ela quisesse.



 
6- Sobre zoofilia 


7- De Rerum...

«Não se deve, porém, aceitar que os elementos se possam juntar de todas as maneiras. De outro modo, ver-se-ia por toda parte nascerem monstros, existirem espécies de homens semiferas, brotarem às vezes ramos de um corpo vivo, unirem-se membros de animais terrestres e marinhos e até apresentar a natureza, pelas terras de tudo produtoras, quimeras que exalassem chamas das tétricas goelas.
Ora, é manifesto que nada disto sucede, visto que todos os corpos criados a partir de germes determinados e de determinada mãe conservam, segundo vemos, ao crescer, os caracteres específicos». (20 LUCRÉCIO. Da natureza II, 700-710.)

8- Explorações do Mundo da Antiguidade. 
Este vídeo permite-nos ver a enorme mobilidade dos exploradores e portanto o entrecruzamento de culturas que existiu na Antiguidade

domingo, 15 de maio de 2022

MITOLOGIAS (III) QUIMERAS

Chamam-se quimeras, as figuras de animais fantásticos, parte de uma espécie e outra parte, de outra. O termo também se aplica quando uma das partes em causa é humana, sendo a outra animal. Será o caso, por exemplo, das quimeras célebres, as esfinges e as sereias.

Tanto umas como outras, têm uma parte do corpo, de origem humana (do sexo feminino) e outra parte de animal. Hoje irei apenas referir um caso das sereias, deixando pra outras alturas a reflexão sobre outras quimeras. Há tanto por onde escolher, que seria impossível fazer um artigo pequeno, como os desta série «Mitologias»; seria necessário fazer toda uma série deles. Com efeito, quase todos os relatos mitológicos envolvem, num ou noutro ponto, um animal que se pode chamar de «quimera»; em todo o caso, desempenham funções de relevo num número incalculável de mitos.




As Sereias

Mulher-Peixe seria a definição das sereias, porém, verifica-se que podiam tomar o aspeto de aves parecidas com mochos, a julgar por um vaso pintado de terracota, descrevendo a história de Ulisses, tentado pelas sereias.


O canto das sereias era a perdição dos marinheiros que, seduzidos, mergulhavam no mar revolto, para nunca mais voltarem.

Ulisses, porém, fez-se amarrar ao mastro do barco pela sua tripulação. Esta, por ordem do seu capitão, tinha tapado os ouvidos com tampões de cera, enquanto ele - Ulisses - tinha os ouvidos bem abertos, mas não podia libertar-se das amarras. Teve possibilidade de ouvir os sons maviosos que emitiam esses seres fantásticos, mas sem sucumbir ao mal de enlouquecer e de as seguir para o abismo.

A alucinação de Ulisses e de tantos marujos era efetivamente sonora: ninguém sobrevivia a esse sortilégio, pelo que ninguém podia exprimir ou explicar em que consistiam esses cânticos tão sedutores, que causavam a perdição de tripulações inteiras.

Estamos perante uma história que teve com certeza inúmeras versões orais, antes de Homero a registar na Odisseia, admitindo que Homero ele próprio não fosse um mito, admitindo ainda que tenha sido ele, não apenas a compor, como a dar a versão escrita, hoje conhecida, da Ilíada e da Odisseia.

Mas, esta história não tem a ver com quaisquer híbridos de mulheres e animais, ou até mesmo com os perigos que enfrentavam os marinheiros nos mares desconhecidos. Mesmo que a narrativa linear esteja exatamente descrevendo essa ocorrência. Estamos no reino da poesia, da metáfora, do conto moralizante, de tudo menos de uma descrição de qualquer fenómeno natural.

Eu não acredito que as histórias maravilhosas - ou mitos - que os homens contaram e transmitiram oralmente, desde tempos imemoriais, fossem vistas por eles como relatos de acontecimentos, de fenómenos naturais ocorridos, ou até como testemunhos fiéis das aventuras de heróis famosos.

Não; o mito não era algo da ordem do real. Não creio que o vissem como sendo algo extraordinário, mas ainda assim, na esfera dos possíveis. Antes, como a fantasia revelando uma verdade oculta, algo que era importante os homens tomarem consciência, ficando precavidos e capazes de reagir perante sua ocorrência.

No caso do cântico das sereias, é evidente que a metáfora é a do coro de elogios, de melodias maviosas, irresistíveis a muitos ouvidos, mesmo aos dos marinheiros empedernidos e dos heróis calejados da guerra de Troia.

Ou seja, o tema real é a tentação dos homens. De sucumbirem ao efeito sedutor das fanfarras, dos elogios, das glórias, que acompanham os vencedores. Seria o referido cântico uma metáfora da corte de bajuladores que acompanha os vencedores, que os leva à embriaguez da vitória ou «húbris», pela qual estão dispostos a cometer as maiores loucuras, como a de mergulhar num mar tempestuoso, para irem ao encontro das vozes canoras.

A "vox populi" (dos romanos), era essa voz que entoava os cânticos de sereias. Era essa a tentação que era preciso, a todo o custo, evitar. A voz coletiva que desencadeia a loucura para a qual são arrastados os heróis, de repente guindados ao cimo do poder.

Hoje em dia, não existe freio, nenhuma retenção por parte dos poderosos. Eles dominam através das «vozes de sereias» da comunicação social.
Notem que «media» significa mediador. Este mediador (coletivo) substitui-se ao que deveria ser a voz do povo.
A «vox populi» já não se exprime de modo nenhum; a substitui-la ouvem-se apenas os gritos, apelos «patrióticos» e outros slogans «encantatórios», que têm como destinatários, não os ouvidos dos poderosos - eles é que encomendam tais sinfonias - mas os nossos.
O vozeiro obsessivo, permanente da media, destina-se a que o povo permaneça iludido, ou pior, que se encaminhe para o precipício, inconsciente de que quem o embala com cânticos de sereias, são os donos da sua escravidão.
Já não é sem tempo, que as pessoas acordem do seu encantamento ou hipnose: Pois elas são como os marinheiros, mas sem os tampões de cera e sem um Ulisses para sabiamente as guiar.