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domingo, 15 de maio de 2022

MITOLOGIAS (III) QUIMERAS

Chamam-se quimeras, as figuras de animais fantásticos, parte de uma espécie e outra parte, de outra. O termo também se aplica quando uma das partes em causa é humana, sendo a outra animal. Será o caso, por exemplo, das quimeras célebres, as esfinges e as sereias.

Tanto umas como outras, têm uma parte do corpo, de origem humana (do sexo feminino) e outra parte de animal. Hoje irei apenas referir um caso das sereias, deixando pra outras alturas a reflexão sobre outras quimeras. Há tanto por onde escolher, que seria impossível fazer um artigo pequeno, como os desta série «Mitologias»; seria necessário fazer toda uma série deles. Com efeito, quase todos os relatos mitológicos envolvem, num ou noutro ponto, um animal que se pode chamar de «quimera»; em todo o caso, desempenham funções de relevo num número incalculável de mitos.




As Sereias

Mulher-Peixe seria a definição das sereias, porém, verifica-se que podiam tomar o aspeto de aves parecidas com mochos, a julgar por um vaso pintado de terracota, descrevendo a história de Ulisses, tentado pelas sereias.


O canto das sereias era a perdição dos marinheiros que, seduzidos, mergulhavam no mar revolto, para nunca mais voltarem.

Ulisses, porém, fez-se amarrar ao mastro do barco pela sua tripulação. Esta, por ordem do seu capitão, tinha tapado os ouvidos com tampões de cera, enquanto ele - Ulisses - tinha os ouvidos bem abertos, mas não podia libertar-se das amarras. Teve possibilidade de ouvir os sons maviosos que emitiam esses seres fantásticos, mas sem sucumbir ao mal de enlouquecer e de as seguir para o abismo.

A alucinação de Ulisses e de tantos marujos era efetivamente sonora: ninguém sobrevivia a esse sortilégio, pelo que ninguém podia exprimir ou explicar em que consistiam esses cânticos tão sedutores, que causavam a perdição de tripulações inteiras.

Estamos perante uma história que teve com certeza inúmeras versões orais, antes de Homero a registar na Odisseia, admitindo que Homero ele próprio não fosse um mito, admitindo ainda que tenha sido ele, não apenas a compor, como a dar a versão escrita, hoje conhecida, da Ilíada e da Odisseia.

Mas, esta história não tem a ver com quaisquer híbridos de mulheres e animais, ou até mesmo com os perigos que enfrentavam os marinheiros nos mares desconhecidos. Mesmo que a narrativa linear esteja exatamente descrevendo essa ocorrência. Estamos no reino da poesia, da metáfora, do conto moralizante, de tudo menos de uma descrição de qualquer fenómeno natural.

Eu não acredito que as histórias maravilhosas - ou mitos - que os homens contaram e transmitiram oralmente, desde tempos imemoriais, fossem vistas por eles como relatos de acontecimentos, de fenómenos naturais ocorridos, ou até como testemunhos fiéis das aventuras de heróis famosos.

Não; o mito não era algo da ordem do real. Não creio que o vissem como sendo algo extraordinário, mas ainda assim, na esfera dos possíveis. Antes, como a fantasia revelando uma verdade oculta, algo que era importante os homens tomarem consciência, ficando precavidos e capazes de reagir perante sua ocorrência.

No caso do cântico das sereias, é evidente que a metáfora é a do coro de elogios, de melodias maviosas, irresistíveis a muitos ouvidos, mesmo aos dos marinheiros empedernidos e dos heróis calejados da guerra de Troia.

Ou seja, o tema real é a tentação dos homens. De sucumbirem ao efeito sedutor das fanfarras, dos elogios, das glórias, que acompanham os vencedores. Seria o referido cântico uma metáfora da corte de bajuladores que acompanha os vencedores, que os leva à embriaguez da vitória ou «húbris», pela qual estão dispostos a cometer as maiores loucuras, como a de mergulhar num mar tempestuoso, para irem ao encontro das vozes canoras.

A "vox populi" (dos romanos), era essa voz que entoava os cânticos de sereias. Era essa a tentação que era preciso, a todo o custo, evitar. A voz coletiva que desencadeia a loucura para a qual são arrastados os heróis, de repente guindados ao cimo do poder.

Hoje em dia, não existe freio, nenhuma retenção por parte dos poderosos. Eles dominam através das «vozes de sereias» da comunicação social.
Notem que «media» significa mediador. Este mediador (coletivo) substitui-se ao que deveria ser a voz do povo.
A «vox populi» já não se exprime de modo nenhum; a substitui-la ouvem-se apenas os gritos, apelos «patrióticos» e outros slogans «encantatórios», que têm como destinatários, não os ouvidos dos poderosos - eles é que encomendam tais sinfonias - mas os nossos.
O vozeiro obsessivo, permanente da media, destina-se a que o povo permaneça iludido, ou pior, que se encaminhe para o precipício, inconsciente de que quem o embala com cânticos de sereias, são os donos da sua escravidão.
Já não é sem tempo, que as pessoas acordem do seu encantamento ou hipnose: Pois elas são como os marinheiros, mas sem os tampões de cera e sem um Ulisses para sabiamente as guiar.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

MITOLOGIAS (I) : OS CICLOPES



Os ciclopes eram um povo mítico de gigantes, descrito por Homero na Odisseia, que manteve Ulisses cativo, com os seus homens. Não irei descrever o mito, tal como está contado na Odisseia, nem todas as representações e associações com outros deuses da antiguidade greco-romana. Apenas, irei dizer-vos o que simboliza para mim a raça ciclópica, capaz de forjar as melhores armas, a  raça possuidora de um só olho no meio da testa.

Simboliza a força bruta da guerra, os militarismos, os políticos que mandam os outros morrer pela defesa dos seus regimes. Simboliza a violência organizada, a capacidade de acorrentar povos inteiros, de os escravizar. Simboliza os fabricantes e mercadores de armas, as enormes energias e recursos financeiros e criativos de que dispõem para produzir armamento sempre mais terrível. Simboliza uma ordem de agentes poderosos, mas subordinados a uma outra ordem, bem mais poderosa, a dos «deuses» (os verdadeiros detentores do capital), à qual está submissa e para quem faz aquilo que faz. 

O olho único é, para mim, outro símbolo do capital global: O olho simboliza o dispositivo panótico, que constantemente nos vigia. Esse olho está conectado diretamente aos citados «deuses». 

As pessoas são esmagadas pela força dos ciclopes, porque se encontram dispersas, cheias de medo. Estão possuídas pelo medo, não conseguem raciocinar. Não têm coragem de procurar os pontos fracos das bestas, de agir em consonância com isso, como o fez - sabiamente - Ulisses. O seu estratagema de furar o olho único do ciclope com uma estaca afiada, quando ele estava dormindo a sesta, resultou porque Ulisses teve em conta os pontos fracos do inimigo e porque forjou a arma e delineou a tática adequadas à circunstância. Para mim, as pessoas perdem quando têm medo. Perdem, também, quando não veem nos seus semelhantes, irmãos e irmãs de infortúnio, qualquer que seja a cor da pele, a etnia, a língua, a religião, a ideologia etc.

A maneira eficaz pela qual os ciclopes modernos nos mantêm escravizados é através da incessante  hipnose, a hipnose que nos faz colar ao discurso do poder, estarmos focalizados no poder, e mesmo quando o discurso é aparentemente «anti-poder» e se reveste de irreverência, ou mesmo de «revolta». A dialética do poder não pode ser combatida através dum «contrapoder», isto é a forma pela qual as nossas iniciativas são esmagadas; ou são traídas, no caso improvável de triunfarem.

 A verdadeira arma para combater o ciclope moderno não é dada por uma  analogia direta da estaca de madeira afiada, que usaram Ulisses e seus companheiros. 

Trata-se de uma metáfora, ou melhor, é uma «arma» no sentido de haver uma organização clandestina, fortemente motivada pela necessidade de libertação, que se põe de acordo, em segredo, para realizar o plano. Ele é discutido pelos conjurados, com muito tino e prudência, pois seu fracasso será equivalente a uma morte atroz. 

Nos que se querem libertar, não pode existir mentalidade de «herói», não deve existir o desejo de «feitos gloriosos», que implicam o autossacrifício. 

São homens e mulheres vulgares, com as suas paixões e medos, hesitações e  egoísmos, que têm de ser mobilizados para o combate contra os ciclopes contemporâneos. 

Trata-se de uma guerra muito assimétrica. Por isso mesmo, do lado dos oprimidos deve existir clareza de objetivos a alcançar, determinação muito grande, elevado grau de confiança recíproca, espírito crítico e autocrítico, e todas as virtudes «antigas» (a temperança, a frugalidade, a paciência, etc...). 

Só poderá existir eficácia no alcançar da libertação, se agirmos como aquele grupo de homens aprisionados pelos ciclopes, em pequenos grupos. Só nestes, a confiança recíproca pode ser muito elevada, como entre os marinheiros que confiavam uns nos outros e no seu capitão, Ulisses. Este era um líder corajoso, astuto, que todos eles respeitavam.