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sexta-feira, 5 de abril de 2024

O ESPELHO DE NARCISO

MITOLOGIAS (XIII*)

 

Narciso era um jovem muito belo, mas que vivia sob  um decreto do destino, revelado à nascença, a sua mãe: Ele viveria muito tempo, se nunca visse a sua própria imagem. Mas, num dia de grande calor, o jovem Narciso debruçou-se para beber água de uma fonte. Aí, viu o reflexo do seu rosto e ficou siderado pela sua própria beleza. Tanto se enamorou de sua própria imagem, que tal obsessão o levou a definhar e a morrer.

Esta história da mitologia grega, como todas as outras, é uma forma simbólica de descrever traços de personalidade, por vezes nefastos, dos humanos.   

                                           Jehan Georges Vibert: Narcisse

Cada um fará a leitura que mais lhe pareça adequada à sua visão: Sem dúvida, que a história indica algo profundo da alma humana. Por outras palavras,  não se trata de uma história «moralizadora».

Note-se a relação da história de Narciso, com a de Psyché (a jovem mulher tão bela, que fazia inveja a Afrodite) e Eros (o Amor, filho de Psyché). O reflexo, aqui, é devolvido a Psyché pelo amor heterossexual ou seja, apenas este pode funcionar como o real «espelho» da alma; não o próprio, não o autoerotismo, mas o confronto com o não-próprio, com o amor de outrem. 


                                   Psyché e Cupido, por Canova

Nos dois mitos, o sujeito - quer seja Narciso, ou Psyché - está perante si próprio/a, está a ver a imagem de seu corpo, de sua alma (eidolon ; «ídolo»). Quando Psyché observa a sua perfeição ao espelho, dá-se aí oportunidade para o enamoramento narcísico. Mas, Eros vem durante a noite: Eles fazem amor em sonho, satisfazendo-se o desejo de Psyché, de amar e ser amada. 

No caso de Narciso, porém, o percurso de vida é descendente; o auto-amor conduz à auto-destruição. Segundo uma versão do mito, Narciso tanto se enamorou da imagem, que acabou por mergulhar no lago que a reflectia e afogar-se, no vão desejo de se unir a ela. 

Quando observo os meus contemporâneos, especialmente as pessoas que se transportam para todo o lado com smartphones e que os utilizam - entre outras funções - como câmara fotográfica portátil, não posso deixar de me surpreender pela frequente realização de selfies, ou seja, de imagens de si próprios. Estes selfies podem também ser com outrem, ou até em grupo, sem dúvida. Porém, o mais frequente é tratar-se de autorretratos singulares, em geral, com alguma paisagem ou monumento por detrás, como para imortalizar o momento. Trata-se de uma glorificação do ego, sem dúvida. Que estas pessoas afinal sejam narcisistas, isso não se pode inferir pelo simples gesto de fazer um «selfie». Mas, simbolicamente, creio que o gesto dá a imagem do tempo em que vivemos; a exaltação do ego, o amor de si próprio, o egoísmo e hedonismo glorificados.

Seria injusto inferir que todas as pessoas que tiram selfies, sejam necessariamente egolátricas. Porém, é expectável que se observe tal comportamento, se alguém for egolátrico, narcisista. Não nos podemos admirar que ele/ela se comporte desta maneira, que se mire e remire ao «espelho» do smartphone e queira "eternizar" sua imagem, associando-a à paisagem magnífica, ou a um monumento célebre.  

Lembro-me duma publicidade a uma marca de leite (há mais de uma dezena de anos, creio). Uma jovem mulher, de corpo esbelto e cara sorridente, afirmava: «Se eu não gostar de mim própria, quem gostará?» (ou algo semelhante, se a memória não me falha). 

Lembro também, há alguns anos, do aparecimento e propagação de uma daquelas frases-feitas: «de que é preciso cultivar a auto-estima».  Francamente, a auto-estima é cultivada  até à exaustão, até à desmesura de muitos se sentirem legitimados a pisar os direitos dos seus vizinhos, ou colegas, ou familiares, sob pretexto de levarem a cabo seu «projeto pessoal». Vi, com preocupação, tal «auto-estima» ser apresentada como algo de positivo, algo que se deveria cultivar nas crianças e adolescentes. 

Tal mentalidade conjuga-se com a tendência hedónica: «O ter aquilo que se deseja, de imediato, sejam quais forem as consequências; apenas atender ao prazer do momento.» 

Narcisismo e hedonismo são chaves para entender esta sociedade. Um comportamento é tanto mais interiorizado, quanto menos conscientes as pessoas estejam dele.

Não podemos viver sem espelhos no sentido próprio e figurado. Porém, os «espelhos» de Narciso ou de Psyché, são deformantes: Não revelam os segredos do corpo e do espírito, a quem olha sua imagem neles refletida. O «selfie» é somente uma imagem superficial.

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*Consulte aqui os números anteriores desta série


domingo, 4 de setembro de 2022

MITOLOGIAS (XI) HISTÓRIA NATURAL DO UNICÓRNIO

Há uma certa dificuldade em compreender como é que se construiu este mito do unicórnio. Este animal magnífico foi, desde a Grécia Antiga e em narrativas posteriores, descrito como possuindo muitas virtudes e qualidades benéficas. Isto contradiz a tendência claramente dominante do «bestiário mitológico». Dos dragões aos lobisomens, quase todos possuem propriedades inquietantes, aterradoras.
O unicórnio é um animal muito belo, geralmente parecido a um nobre cavalo, de cor branca, simbolizando a pureza. É dócil perante donzelas, para junto das quais se dirige respondendo, solícito, ao seu apelo. Personificação do bem, da nobreza, da coragem, é um dos animais mais representados na heráldica. Algumas vezes, está presente no interior do próprio escudo heráldico; noutras, fora dele, segurando estandartes, como em muitos brasões. 
 
                                 
As propriedades do único corno do animal também eram maravilhosas: as taças dos reis e doutros personagens poderosos eram - às vezes - em chifre do unicórnio, considerado um antidoto eficaz contra venenos e infeções. Na «lógica por analogia», um fragmento do animal que simboliza a pureza, seria ele próprio, remédio ou preventivo eficaz contra substâncias impuras.

                    

Mas, se o unicórnio é animal lendário, a sua marca distintiva, o "chifre" (na realidade, um dente), não é um objeto imaginário: Seu detentor, o narval, é uma espécie de baleia do Oceano Ártico. Nos machos, um dos dentes cresce desta maneira. Após a morte dos mamíferos marinhos, é natural que algumas presas (dentes muito modificados) se destaquem do esqueleto e vão dar às costas geladas que rodeiam o Oceano Ártico desde o extremo Norte da Rússia e Norte da Escandinávia, à Gronelândia e Leste do Canadá.

                       

Para quem os recolhesse, tal poderia significar - senão o enriquecimento - pelo menos, um rendimento considerável. Depois, uma longa cadeia de intermediários encarregava-se de fazer chegar os espécimes raríssimos - com o seu preço decuplicado, pelo menos - a palácios reais e mansões de ricos comerciantes.
Os dentes de narval são representados em pinturas e frescos por artistas medievais, do renascimento e posteriores enquanto chifres de unicórnio. Algumas vezes, são montados em pedestais, como raridades preciosas.

O século XIX, apesar do seu cientismo e sua racionalidade, não esqueceu completamente o gentil unicórnio:
                              
O professor Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudónimo Lewis Carroll, escreveu, em «Alice no País das Maravilhas», um diálogo entre um Unicórnio e Alice (1).
Carroll, professor de lógica matemática, inventa um diálogo pleno de humor. Estabelece a equivalência perfeita entre a «realidade de Alice» (personagem ficcional) e a «realidade do Unicórnio» (outro personagem ficcional). Esta equivalência é afirmada através de um truque, ou falácia: «se tu me reconheces como real, então eu também te reconheço» ou seja, mútuo reconhecimento como «critério de verdade», entre personagens ficcionais.
Neste diálogo, CC. L. Dodgson/ Lewis Carroll desfaz humoristicamente aquele género de falácia.


No século XXI, deu-se um novo sentido ao termo unicórnio, mas no vocabulário dos «traders».
Na gíria da finança, uma empresa «unicórnio» é aquela que rapidamente atinge um valor considerável em bolsa, com elevados lucros, sobretudo para os que primeiro nela apostaram. Infelizmente, o mais frequente, é que empresas «unicórnio» sejam uma autêntica fraude. Verificou-se a entrada em bolsa de empresas destituídas de receitas (2), antecedendo tanto a crise das «dot.com» do ano 2000, como o grande crash de 2008. 


Hoje, classificar uma dada empresa como «unicórnio», pode ter conotação irónica, designando empresas lançadas com muita publicidade, mas sem substância, que atraem os investidores ávidos de lucros fáceis. As cotações destas empresas, inicialmente sobem muito depressa e logo também depressa descem, podendo mesmo ser varridas, num instante.
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1) DIÁLOGO : ALICE E O UNICÓRNIO (de «Alice no País das Maravilhas»):

 ‘What—is—this?’ he said at last.

‘This is a child!’ Haigha replied eagerly, coming in front of Alice to introduce her, and spreading out both his hands towards her in an Anglo-Saxon attitude. ‘We only found it to-day. It's as large as life, and twice as natural!’

‘I always thought they were fabulous monsters!’ said the Unicorn. ‘Is it alive?’

‘It can talk,’ said Haigha, solemnly.

The Unicorn looked dreamily at Alice, and said ‘Talk, child.’

Alice could not help her lips curling up into a smile as she began: ‘Do you know, I always thought Unicorns were fabulous monsters, too! I never saw one alive before!’

‘Well, now that we have seen each other,’ said the Unicorn, ‘if you'll believe in me, I'll believe in you. Is that a bargain?’

‘Yes, if you like,’ said Alice.


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(2) Ou não produziam realmente qualquer produto ou serviço, ou - caso produzissem - eram cronicamente deficitárias. Apesar disso, puderam ser inscritas nas bolsas de ações!


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ARTIGOS ANTERIORES DA SÉRIE MITOLOGIAS:



quarta-feira, 31 de agosto de 2022

MITOLOGIAS (cap. X) : CASSANDRA, DA ILÍADA AOS NOSSOS DIAS

Quando falamos de Cassandra, estamos a falar de um mito, independentemente de ter existido, ou não, uma princesa em Troia com tal nome.

 A história contemporânea não reconhece a Ilíada como um escrito histórico, que sobreviveu miraculosamente, primeiro oralmente, depois por escrito, relatando a guerra das cidades-estado do Peloponeso contra Troia. Porém, a constante utilização do longo poema pelas artes, poesia e literatura nos séculos após os supostos acontecimentos,  tem criado a ilusão de que os episódios da obra atribuída a Homero seriam, senão historicamente exatos, pelo menos, verosímeis.

De facto, o que se sabe seguramente pela arqueologia, é que Troia existiu, mas que houve uma sucessão de cidades, umas sobre as outras. Além disso, não houve uma única guerra de Troia, mas sim várias. O relato de Homero (ou atribuído a Homero) poderia ter condensado, numa única narração, o longo período de guerras de  Troia contra exércitos coligados das cidades-Estados gregas.  

Podemos - portanto - considerar que Cassandra, tal como está descrita na Ilíada, releva do mito, mais do que da História mitificada. 

Eu vejo a história de Cassandra (*) como simbólica dos comportamentos das sociedades, em relação às pessoas com maior visão, mais sábias, corajosas, e sabendo que estão a ir contra a corrente mas - ainda assim - dizendo a verdade, custe o que custar,  face aos poderosos e ao povo. 

A obra de Luís de Camões contém uma «atualização» de Cassandra, na figura do «Velho do Restelo». Este desempenha, no poema épico «Os Lusíadas», a mesma função que Cassandra, na Ilíada: Profetizar perigos e desgraças que ocorrerão a Portugal e aos portugueses, em consequência do lançamento das ambiciosas e aventureiras viagens marítimas, a partir dos finais do século XV.  

Uma caraterística comum nas «Cassandras» que se nos deparam ao longo da História, é que seus vaticínios, embora pareçam sensatos quando são lidos após os acontecimentos, foram descartados como  fantasias, sintomas de loucura, palavras vãs, pelos indivíduos que, contemporaneamente, ouviram ou leram tais profecias. 

Figura: Aquando da queda de Troia, Cassandra, que se refugiara no templo de Atena, é  violada e depois feita escrava.

No mito, Cassandra é abençoada com um dom, que consiste na capacidade de ver o futuro e, em simultâneo, é amaldiçoada com a impossibilidade de que suas palavras sejam tomadas a sério por seus concidadãos, incluindo a sua própria família. 

Na nossa época, as «Cassandras» avisaram com detalhe e antecedência e, como na lenda, não foram ouvidas. No âmbito económico, mas com grande repercussão política, a chamada «crise das sub-prime» (2008), levou ao quase desmoronamento do castelo de cartas da economia financeirizada. Esta crise foi prevista - com antecedência - por mais do que um analista dos mercados, incluindo figuras célebres do mundo financeiro.  

Mais recentemente, autores de várias escolas de pensamento económico, têm feito avisos muito enfáticos sobre a iminência de um colapso muito superior, em magnitude, ao de 2008. Os avisos são dirigidos ao poder financeiro nos bancos centrais e ministros da economia e finanças dos governos. Estes preocupantes alarmes têm sido também publicados na media, ao alcance do mais amplo público. 

Estes avisos, como os das outras «Cassandras» da História, estão a ser completamente ignorados, por quase todos: Desde pequenos especuladores, a gestores de Wall Street e doutros centros financeiros, a políticos - tanto no poder, como na oposição. Para mim, esta situação não só ilustra a enorme miopia dos poderes, especialmente após o quase colapso de 2008, como parece ser uma enésima atualização da história de Cassandra da Ilíada.

As multidões costumam ignorar, escarnecer, ou mesmo, violentamente atentar contra pessoas que vêm contrariar preconceitos e medos obsessivos. A fúria das multidões é estimulada por ditadores e demagogos, que assim defletem a ira e a frustração popular para que, perante as consequências de suas decisões aventureiras e fatais, nunca lhes sejam atribuídas responsabilidades, mas ao «bode expiatório». 

As pessoas com lucidez e juízo, nestes tempos conturbados, devem ser discretas. Não se devem expor, pois seriam «arrastadas na lama», ou ostracizadas, no mínimo. Devem preservar-se, pois de nada serve tentar convencer uma multidão fanatizada ou hipnotizda

Estas tentativas vãs apenas irão exacerbar a vontade de vingança das massas enganadas, que julgam que «o mensageiro das desgraças» é o causador das mesmas. O mensageiro é castigado em vez do tirano, que afinal de contas, é o causador das más notícias trazidas pelo primeiro. 

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(*) Citação da «Cassandra» de Friedrich Schiller:

« Por que me encarregaste tu de proclamar as tuas profecias com um pensamento lúcido numa cidade cega? Por que é que me fazes ver aquilo que não poderei desviar do nosso povo? O destino que nos ameaça deve cumprir-se, a infelicidade que eu temo tem de realizar-se, a desgraça que eu antevejo tem de acontecer»...

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