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quarta-feira, 18 de maio de 2022

MITOLOGIAS (IV)TRANSFORMAÇÕES ZOOMÓRFICAS



Cópia de um quadro perdido de Michelangelo representando Leda e o cisne


Zeus era conhecido por se transformar em animal, touro, cisne ou outro, e desse modo seduzir as mulheres que desejava, fecundá-las e estas inevitavelmente produziam uma progénie, que iria refletir de algum modo a excecionalidade da sua proveniência: ou pela sua beleza, ou pelas suas capacidades físicas, morais, intelectuais, etc.    

Esta capacidade em se transformar num animal, não era exclusiva de Zeus; todos os deuses do Olimpo a praticavam. Os heróis, os descendentes de deuses e humanos, talvez não tivessem a maravilhosa propriedade, encerrados que estavam na sua condição humana, mesmo que manifestassem atributos incomuns, em termos comparativos com os meramente humanos.  

Todos conhecem a história lendária de Leda. Ela deixou-se seduzir por um cisne, que não era senão Zeus. Este, através do estranho estratagema pode enganar o marido legítimo de Leda. Desta união nasceram, a partir de ovos, Castor e Pollux (os dois gémeos masculinos que acabaram por ir para a abóbada celeste, daí o nome duma das constelações), Climenestra e Helena.

Climenestra e Helena, tanto uma como outra, estão ligadas ao ciclo da epopeia da Ilíada. Helena é muito mais conhecida, visto que foi, segundo a lenda, raptada ao seu marido o rei de Esparta, por Páris, desencadeando a guerra de Troia. Climenestra tem uma história igualmente trágica, associada ao mesmo ciclo da Ilíada.

Como se vê, os produtos das uniões adulterinas com Zeus produziam seres excecionais, mas trágicos também. 

Outra célebre história de zoomorfismo ou de amores com animais, é a de Neptuno, transformando-se em touro, seduzindo e fecundando Pasífae, esposa do rei Minos. Na verdade, Pasífae faz muito para seduzir o touro em que o deus Neptuno se tinha transformado. Pede a Dédalo, o célebre arquiteto do rei de Creta, para construir uma réplica de vaca dentro da qual se esconderia. Esta réplica, perfeita e natural, seduziria o touro. Mais tarde, invocou ser forçada a tal conduta pelo facto do rei Minos ter sido perjuro, não satisfazendo a promessa feita a Neptuno. O produto da cópula do deus dos mares, com a rainha de Creta, foi o Minotauro, com corpo de homem e cabeça de touro.  Um  produto tão evidente destes amores, tinha de ser escondido no Labirinto

Além do princípio de que os deuses se podem transformar no que quiserem, nota-se a  aceitação «natural» da lascívia, perversidade, ou até, da propensão para a bestialidade (ter relações sexuais com animais), mas - sobretudo - do lado feminino! Ainda por cima, são caraterísticas dadas a mulheres de alta condição, como rainhas ou princesas.

A excecionalidade dos costumes dos deuses fazia parte da mitologia clássica. Eram capazes de fazer coisas completamente vedadas aos homens, também relativamente à lei moral, como serem adúlteros ou incitarem ao adultério, tomarem, violentarem as suas presas, usar toda a espécie de manhas, etc... 

Mas, este erotismo violento, tirânico, possessivo não seria a mera projeção do que se considerava ser "varonil" nessa época? Não seria a narrativa dos deuses, a projeção do comportamento dos grandes, dos poderosos? Não estaria já a mulher a ser vista apenas como presa, ou como sedutora, papeis estes que se foram acentuando e prolongando, com modificações, até à era cristã: A mulher «santa» e submissa, aceitando o sacrifício ou a «meretriz» sedutora e diabólica...

                            

                               BAIXO-RELEVO: LEDA, O CISNE E CUPIDO (ÉPOCA ROMANA)

Pessoalmente, estou convencido que gregos e romanos não «acreditavam» nestes mitos, no sentido literal: Como acreditar que Leda tivesse realmente sido fecundada por um cisne? Ou que Pasífae tivesse gerado um monstro com cabeça de touro e corpo de homem, por ter copulado com Neptuno/touro ? Muitas outras histórias também desafiam o senso comum. 

Claro que os que narram os mitos descrevem-nos como tendo acontecido, como estando na origem de constelações, de dinastias ou de guerras, etc. Assim, a origem semidivina da casta governante era afirmada. Também, a «imoralidade» aparente das histórias dos deuses olímpicos, tinha a restrição de que os deuses estavam para além do poder, da compreensão e da própria moral dos homens. Era assim compreendido e integrado o ato sexual, enquanto desejo violento, irracional, impulsivo. Assim eram - também - as pulsões eróticas dos próprios deuses. 

Lucrécio, no seu célebre poema De Rerum Natura, cita os deuses, mas não dá muito crédito à sua existência. Limita-se a dizer que eles, lá no Olimpo, vão vivendo sua vida, com suas intrigas, sem se importarem com o mundo dos homens. 

Esta atitude era de quase ateísmo, o mais extrema possível, não ofendendo porém as leis de Roma. Se afirmasse claramente que os deuses não existiam, poderia ter sérios problemas  com as autoridades. Mas, note-se, todo o discurso filosófico-científico do longo poema se centra nas causas naturais e em como não devíamos estar preocupados com o além. 

Assim, no contexto de afirmar a prevalência absoluta das coisas naturais, fornece explicações inteiramente racionais sobre a hereditariedade  e a sexualidade. É notável que - embora conceda grande capacidade geratriz e transformadora à Natureza - não tenta «explicar» o que é da ordem do mito: As quimeras, as transformações miraculosas, etc. Nomeadamente, recordo-me duma passagem, onde argumentava que, se uma árvore dá maçãs, não se pode esperar que ela dê peras, nem que da semente da maçã surja outra árvore, que não seja uma macieira.

Este poema foi escrito na época latina, depois do declínio e conquista do mundo grego pelos romanos. Porém, Lucrécio recolhe toda a tradição de Epicuro (do qual restam poucos originais). Epicuro e Demócrito estão no âmago da cultura grega. Mesmo que estes filósofos e correntes filosóficas não tivessem sido dominantes no seu tempo, é evidente que suas teses foram bem conhecidas doutros filósofos contemporâneos. 

As histórias de transformações (sobretudo de deuses) em animais, muito comuns nos relatos da mitologia greco-romana, são formas poéticas. Tal como em relação às quimeras (grifos, esfinges, etc.), desempenhavam um papel nas narrativas míticas, mas tais histórias não eram percebidas - nem por antigos, nem por modernos - como relatos de casos verídicos, nem sequer, verosímeis. 

Eram símbolos e como tal, tinham um papel, mas esse papel não era o de explicação racional. Eram uma forma de acomodar o universo do inconsciente, as pulsões profundas da alma, individual e coletiva, a aceitação da irracionalidade do mundo, a metáfora das forças obscuras que nos atravessam o espírito e sobre as quais não temos um controlo verdadeiro. Enfim, faziam parte dos arquétipos e do  que Jung designa por «inconsciente coletivo». 

Estavam na raiz e no centro da mitologia greco-romana. Não se poderia estar «dentro» dessa civilização, sem dialogar com esses mitos fundadores, os quais se propagavam sob todas as formas.

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Nota: Em baixo seleciono alguns links. Nestes, pode o leitor obter informação complementar.

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1- Metamorfoses. Lúcio de Apuleio.
   

2- A titânide Métis, primeira esposa de Zeus e mãe da deusa Atena, era considerada capaz de mudar sua aparência para qualquer coisa que ela quisesse.



 
6- Sobre zoofilia 


7- De Rerum...

«Não se deve, porém, aceitar que os elementos se possam juntar de todas as maneiras. De outro modo, ver-se-ia por toda parte nascerem monstros, existirem espécies de homens semiferas, brotarem às vezes ramos de um corpo vivo, unirem-se membros de animais terrestres e marinhos e até apresentar a natureza, pelas terras de tudo produtoras, quimeras que exalassem chamas das tétricas goelas.
Ora, é manifesto que nada disto sucede, visto que todos os corpos criados a partir de germes determinados e de determinada mãe conservam, segundo vemos, ao crescer, os caracteres específicos». (20 LUCRÉCIO. Da natureza II, 700-710.)

8- Explorações do Mundo da Antiguidade. 
Este vídeo permite-nos ver a enorme mobilidade dos exploradores e portanto o entrecruzamento de culturas que existiu na Antiguidade

domingo, 15 de maio de 2022

MITOLOGIAS (III) QUIMERAS

Chamam-se quimeras, as figuras de animais fantásticos, parte de uma espécie e outra parte, de outra. O termo também se aplica quando uma das partes em causa é humana, sendo a outra animal. Será o caso, por exemplo, das quimeras célebres, as esfinges e as sereias.

Tanto umas como outras, têm uma parte do corpo, de origem humana (do sexo feminino) e outra parte de animal. Hoje irei apenas referir um caso das sereias, deixando pra outras alturas a reflexão sobre outras quimeras. Há tanto por onde escolher, que seria impossível fazer um artigo pequeno, como os desta série «Mitologias»; seria necessário fazer toda uma série deles. Com efeito, quase todos os relatos mitológicos envolvem, num ou noutro ponto, um animal que se pode chamar de «quimera»; em todo o caso, desempenham funções de relevo num número incalculável de mitos.




As Sereias

Mulher-Peixe seria a definição das sereias, porém, verifica-se que podiam tomar o aspeto de aves parecidas com mochos, a julgar por um vaso pintado de terracota, descrevendo a história de Ulisses, tentado pelas sereias.


O canto das sereias era a perdição dos marinheiros que, seduzidos, mergulhavam no mar revolto, para nunca mais voltarem.

Ulisses, porém, fez-se amarrar ao mastro do barco pela sua tripulação. Esta, por ordem do seu capitão, tinha tapado os ouvidos com tampões de cera, enquanto ele - Ulisses - tinha os ouvidos bem abertos, mas não podia libertar-se das amarras. Teve possibilidade de ouvir os sons maviosos que emitiam esses seres fantásticos, mas sem sucumbir ao mal de enlouquecer e de as seguir para o abismo.

A alucinação de Ulisses e de tantos marujos era efetivamente sonora: ninguém sobrevivia a esse sortilégio, pelo que ninguém podia exprimir ou explicar em que consistiam esses cânticos tão sedutores, que causavam a perdição de tripulações inteiras.

Estamos perante uma história que teve com certeza inúmeras versões orais, antes de Homero a registar na Odisseia, admitindo que Homero ele próprio não fosse um mito, admitindo ainda que tenha sido ele, não apenas a compor, como a dar a versão escrita, hoje conhecida, da Ilíada e da Odisseia.

Mas, esta história não tem a ver com quaisquer híbridos de mulheres e animais, ou até mesmo com os perigos que enfrentavam os marinheiros nos mares desconhecidos. Mesmo que a narrativa linear esteja exatamente descrevendo essa ocorrência. Estamos no reino da poesia, da metáfora, do conto moralizante, de tudo menos de uma descrição de qualquer fenómeno natural.

Eu não acredito que as histórias maravilhosas - ou mitos - que os homens contaram e transmitiram oralmente, desde tempos imemoriais, fossem vistas por eles como relatos de acontecimentos, de fenómenos naturais ocorridos, ou até como testemunhos fiéis das aventuras de heróis famosos.

Não; o mito não era algo da ordem do real. Não creio que o vissem como sendo algo extraordinário, mas ainda assim, na esfera dos possíveis. Antes, como a fantasia revelando uma verdade oculta, algo que era importante os homens tomarem consciência, ficando precavidos e capazes de reagir perante sua ocorrência.

No caso do cântico das sereias, é evidente que a metáfora é a do coro de elogios, de melodias maviosas, irresistíveis a muitos ouvidos, mesmo aos dos marinheiros empedernidos e dos heróis calejados da guerra de Troia.

Ou seja, o tema real é a tentação dos homens. De sucumbirem ao efeito sedutor das fanfarras, dos elogios, das glórias, que acompanham os vencedores. Seria o referido cântico uma metáfora da corte de bajuladores que acompanha os vencedores, que os leva à embriaguez da vitória ou «húbris», pela qual estão dispostos a cometer as maiores loucuras, como a de mergulhar num mar tempestuoso, para irem ao encontro das vozes canoras.

A "vox populi" (dos romanos), era essa voz que entoava os cânticos de sereias. Era essa a tentação que era preciso, a todo o custo, evitar. A voz coletiva que desencadeia a loucura para a qual são arrastados os heróis, de repente guindados ao cimo do poder.

Hoje em dia, não existe freio, nenhuma retenção por parte dos poderosos. Eles dominam através das «vozes de sereias» da comunicação social.
Notem que «media» significa mediador. Este mediador (coletivo) substitui-se ao que deveria ser a voz do povo.
A «vox populi» já não se exprime de modo nenhum; a substitui-la ouvem-se apenas os gritos, apelos «patrióticos» e outros slogans «encantatórios», que têm como destinatários, não os ouvidos dos poderosos - eles é que encomendam tais sinfonias - mas os nossos.
O vozeiro obsessivo, permanente da media, destina-se a que o povo permaneça iludido, ou pior, que se encaminhe para o precipício, inconsciente de que quem o embala com cânticos de sereias, são os donos da sua escravidão.
Já não é sem tempo, que as pessoas acordem do seu encantamento ou hipnose: Pois elas são como os marinheiros, mas sem os tampões de cera e sem um Ulisses para sabiamente as guiar.