O arqueólogo que
descobriu Gobekli Tepe, o mais antigo templo conhecido, Klaus Schmidt, afirmava
que – contrariamente à crença dos eruditos – a domesticação da natureza, animais
e plantas domesticadas, como base da alimentação humana, não antecedeu mas
sucedeu à construção de grandes conjuntos arquitectónicos como o famoso
complexo do sul da Anatólia. Ele colocava a hipótese de que o esforço dos
homens em erigir esses monumentos, ao congregá-los, obrigando a colaboração intensa
e prolongada de muitas distintas famílias e clãs, iria cimentar as bases que
permitiriam a sociedade se organizar de outro modo, abandonando
progressivamente o modo de vida caçador-recolector.
É evidente que esta
visão já é «anátema», se considerarmos aquilo que se estimava ser a
evolução do paleolítico tardio para o neolítico.
Porém, a questão da
densidade populacional deve ser vista em paralelo com esta teoria de Schmidt.
Sem dúvida que o chamado «crescente fértil», no final da última era glaciar era
uma zona privilegiada no que toca a recursos utilizáveis pelos humanos. Havia
abundância de gramíneas selvagens, não era um clima semidesértico, como é hoje
em dia, havia também uma grande abundância de animais selvagens herbívoros,
como a gazela, o corço, o javali… tudo animais que estão explicitamente
representados nos megálitos de Gobekli Tepe, assim como são abundantes os seus
restos fossilizados nas zonas do santuário e noutros sítios arqueológicos
aproximadamente contemporâneos. Penso
que este facto – haver abundância de recursos alimentares – veio permitir um
aumento da densidade populacional humana. Por sua vez, este aumento de
densidade populacional obrigou a uma melhor interacção entre clãs de
caçadores-recolectores.
Uma curiosa disposição dos megálitos antropomórficos em
círculo, em torno de um par central, sugere uma sociedade formada por
confederação de clãs. Os megálitos estão decorados com braços e cinturas que
representam humanos – não deuses – mas humanos abstratos, «colectivos», isto é, uma espécie
de totem. A identificação de cada clã é assegurada pela «assinatura individual», os diversos animais totémicos: javalis, raposas, leões, etc.
Cada clã possuiria aí o
símbolo da sua presença perene na aliança que constituia a confederação
construtora do templo.
Tenho lido e reflectido
sobre o assunto e chego à conclusão de que existe uma relutância da arqueologia
em fazer recuar o início da civilização tantos anos antes do que parece ser
o início da escrita: a civilização Suméria, inventora da escrita cuneiforme tem
cerca de 6000 anos, o misterioso povo de Goblekli Tepe é – pelo menos- outros 6
000 anos mais antigo!
Sem dúvida, os cientistas
académicos têm de ser muito prudentes na interpretação dos dados e estarão mais
confortáveis com hipóteses «continuístas», do que com hipóteses «catastrofistas».
Porém, tal como existe na biologia evolutiva a teoria dos «equilíbrios
pontuados», onde uma catástrofe varre de forma aleatória muitas espécies vivas,
deixando «ecossistemas vagos» para serem ocupados pelas espécies sobreviventes
que entretanto se foram adaptando e diferenciando, existiria lugar para
qualquer coisa semelhante, no caso da evolução das civilizações. A diferença substancial
é a de que, por maior que seja a destruição causada, seja por um cometa, seja
por dilúvios ou outras catástrofes, numa escala global, a memória cultural
nunca desparece por completo, fragmentos da civilização desaparecida são
resgatados pelos sobreviventes, ou pelas populações que não foram tão severamente
afectadas pela extinção; a gesta de heróis, ou semideuses, poderia ser a memória
remanescente de civilizações desaparecidas, claro, muito modificada pela
imprecisão e fantasia decorrente da transmissão oral durante séculos.
Para os povos
«primitivos» de hoje, não existe passado, existe um eterno presente e uma
ligação de todo o povo com os seus deuses. Para eles, o mundo visível é apenas uma camada
superficial e enganadora, por vezes, em paralelo com o mundo dos espíritos,
sempre presentes. Os cultos xamânicos parecem ter denominadores comuns, os quais implicam
uso de substâncias alucinogénias, quer produzidas por plantas ou fungos, sendo
causadoras de imagens muito semelhantes e transculturais. Isso foi comprovado
em indivíduos que voluntariamente tomavam tais substâncias em experiências
científicas, controladas.
São várias as descobertas,
no Médio Oriente, na Indonésia, na América Central, no Peru e Bolívia, que nos
fazem recuar no tempo as fronteiras do que chamamos uma sociedade complexa e estruturada, uma civilização: obrigam a questionar toda a nossa visão da pré-história e mesmo da
antiguidade. Inclusive, a datação dos megálitos que polvilham as zonas
costeiras desde o Norte das Ilhas Britânicas até ao sul da Península Ibérica,
atribuídas à «civilização do cobre», o Calcolítico, podem estar erroneamente
datadas de cerca de 3000 anos, aproximadamente. Podem bem ser complexos rituais
de idades muito mais antigas.
Parece-me ser uma obsessão
de literatos, considerar-se que a principal ruptura da história da humanidade
ocorre quando se inventou a escrita, ocorrência que pode ter sido
produzida ao longo de muitas centenas de anos, senão milénios. Basta pensar na
sofisticada sociedade descrita pelos poemas épicos, quer da epopeia de Gilgamesh,
quer da Ilíada e Odisseia, ou noutras ainda: as tradições orais exprimem, de
forma colorida pela poesia dos mitos, as relações sociais e as figurações
mentais complexas dos heróis, cuja existência precedeu de centenas ou milhares de
anos as primeiras transcrições escritas dos referidos poemas épicos.
A transmissão cultural
pode ser muito eficaz na ausência de uma forma complexa e precisa de escrita. A
verdadeira escrita aparece com a necessidade de contabilizar, de quantificar,
de atestar transacções comerciais. São dessa natureza pragmática as mais
antigas tabuletas de argila com caracteres cuneiformes: são uma invenção do
comércio, parece. Ou seja, a escrita só aparece quando as trocas comerciais
entre povos, ou entre várias entidades dentro do mesmo reino, atinge uma
grande complexidade, o que implica uma casta de burocratas encarregues pelo poder
real de controlar os fluxos, tornando possível a eficaz a extracção de renda, de
imposto, de tributo.
Logicamente, esse tipo de
registo não existe na origem da civilização agrária, mas antes no seu apogeu!
Será antes o fruto tardio da revolução agrária, iniciada no Neolítico,
prolongada pelo Calcolítico e tendo continuidade nas idades do Bronze e do Ferro.
Uma relação constante dos
monumentos megalíticos com conhecimentos de astronomia pode ser verificada, um pouco por todo o lado, o que indica uma visão cósmica da religião.
Os que
erigiam estes monumentos, estavam conscientemente a estabelecer uma relação profunda com a
abóbada celeste, onde residiam os deuses, onde estava a morada dos
antepassados. Era o Céu que governava os grandes e pequenos ciclos na Terra: as
estações, as alternâncias da noite e do dia, etc.
O conhecimento astronómico, tal como o das virtudes das plantas (alimentares ou venenosas, indutoras
de transe ou curativas), estava reservado a sacerdotes ou xamãs,
que tinham capacidade de se pôr em contacto com o «mundo de cima», com o
«além», com o «mundo dos espíritos». Eram temidos e reverenciados. Eles teriam
orientado os povos de acordo com a sua sabedoria.
Relatos sobre sábios que ensinam as técnicas e dão a educação necessária à civilização dos povos, estão presentes numa
enorme variedade de culturas. Exprimem a etapa pré-institucional, a etapa
xamanística da história dos povos.
Esta história permanece viva na memória coletiva, de forma confabulada em mitologias.