Inspirada no Livro do Apocalipse, a Sequência do Dies Irae* faz parte do ofício de Requiem, a missa celebrada perante o corpo do falecido antes deste ser sepultado.
Em várias épocas da História da Música foi usado o tema do Dies Irae. Foi o caso de Mozart, Liszt, Berlioz e incontáveis outros. Em suas composições, foi utilizado como tema em sonatas ou sinfonias, além da Sequência ser parte integrante do Requiem. Os compositores - ao comporem missas de Requiem - respeitaram, geralmente, a tradição católica.
Pode-se argumentar que toda a música ocidental se baseia no Canto Gregoriano, em última análise: Isto não é falso, em termos de desenvolvimento histórico. Mas, a polifonia medieval e renascentista, a música sacra e profana barroca, clássica, romântica, etc. nem sempre mostram a origem sacra da sua inspiração, que está efetivamente presente em muitas composições.
Por outro lado, os modos gregorianos (8 modos, inicialmente) foram deturpados a partir do Renascimento, sendo transformados em 12 modos, para assim forçadamente os fazer corresponder aos modos gregos antigos ou melhor, ao que se julgava serem os modos gregos, na antiguidade.
Após isto, os modos acabaram por ser reduzidos somente a dois, o modo Maior, e o modo menor. Costuma designar-se por 'modulação' a transposição de um tom para outro, mantendo as relações entre notas: não se pode considerar uma verdadeira modulação, pois se manterá o mesmo modo e o mesmo relacionamento entre as notas. Elas serão mais agudas, ou mais graves na escala, porém sem quaisquer diferenças nas relações entre elas. As mudanças de tom tornaram-se frequentes nas composições, desde o fim do Renascimento ao Romantismo: Elas são meras transposições, afinal. O paradigma tonal dominou toda a música, erudita ou popular, até aos finais do século XIX.
Foi por essa altura (segunda metade do séc. XIX) que a música litúrgica (gregoriana) experimentou um renovo. O Renascimento Gregoriano foi iniciado em França, na Abadia de Solesmes. Esta restauração do Canto Litúrgico, levou a que muitos músicos eruditos (entre outros, Ravel, Debussy, Stravinsky e compositores mais recentes), se inspirassem nos modos gregorianos e compusessem peças com estruturas modais, pentatónicas ou outras, em vez das tonais clássicas.
Paradoxalmente, o retorno ao passado, o conhecimento e o rigor interpretativo do canto litúrgico gregoriano, contribuiu para despoletar a revolução na música dos finais do século XIX, inícios do século XX.
Foi assim que a música erudita contemporânea se pôde emancipar da "ditadura tonal".
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* Sequência Dies Irae
(parte da Missa de Requiem)
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1- Dies iræ! Dies illa
Solvet sæclum in favilla:
Teste David cum Sibylla!
2.- Quantus tremor est futurus,
Quando iudex est venturus,
Cuncta stricte discussurus!
3.- Tuba mirum spargens sonum
Per sepulchra regionum,
Coget omnes ante thronum.
4.- Mors stupebit, et natura,
Cum resurget creatura,
Iudicanti responsura.
5.- Liber scriptus proferetur,
In quo totum continetur,
Unde mundus iudicetur.
6.- Iudex ergo cum sedebit,
Quidquid latet, apparebit:
Nil inultum remanebit.
7.- O tu, Deus maiestatis,
alme candor Trinitatis
nos coniunge cum beatis.
Amen.
Imagem: um retrato de J. S. Bach quando jovem, do período em que terá copiado e adaptado muita música italiana, nomeadamente de Vivaldi
Hoje em dia, com o conceito de «copyright», temos tendência a ver qualquer empréstimo como uma espécie de «roubo». Porém, na era do barroco (e mesmo, depois), era comum uma peça de música dum compositor, ser adaptada por outro.
São célebres as adaptações, feitas para o órgão (ou cravo) pelo jovem Bach, dos concertos para cordas do «Estro Armonico» de Vivaldi*. São adaptações de pleno direito, pois as modificações necessárias para serem executadas no cravo ou no órgão implicavam mudanças substanciais: quer na tessitura das vozes, quer no enchimento harmónico e noutros detalhes, que fazem destas «transcrições» mais propriamente «adaptações».
Muitos músicos fizeram adaptações do mesmo tipo. Franz Liszt, por exemplo, transcreveu peças de Bach (originalmente para órgão solo) em peças para piano. Busoni, mais tarde, também efetuou transcrições para piano doutras obras de Bach. Estas transcrições são conhecidas e frequentemente interpretadas.
Vivaldi: Concerto para 2 violinos e orquestra, RV 522
No estudo abaixo citado, são contabilizadas e explicadas as modificações que Bach fez nas partituras originais de Vivaldi, para tornar as peças plenamente executáveis ao órgão: «Bach the Transcriber: His Organ Concertos after Vivaldi (Vincent C. K. Cheung)»
Alexandre Tharaud (piano) realizou um disco em 2001, com transcrições feitas por Bach de obras de Vivaldi, de Alexandro e Benedetto Marcello e Torelli, além de obras do próprio Bach: «Concerto Italien».
No século XX, muitos compositores usaram temas de peças musicais de autores do passado para compor suas próprias peças, usando mais ou menos livremente esses temas.
Veja-se, por exemplo, o caso de «La Campanella» de Paganini, utilizado por Rachmaninoff para compor uma rapsódia para piano e orquestra.
A estreia da Rapsódia sobre Tema de Paganini foi a 7 de Novembro de 1934 pela orquestra de Filadélfia, sob direção de Leopold Stokowski, com Rachmaninoff como solista. Este tema já tinha sido usado por Liszt, cerca dum século antes.
Abaixo, Yuja Wang interpreta a parte de piano da Rapsódia de Rachaminoff:
Não nos devemos surpreender que grandes músicos copiem e usem materiais de outros: Pode ser visto como exercício, ou como forma de estudar as técnicas de composição dos mestres. Em tais circunstâncias, não se trata de "plágio", mas antes de homenagem!
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(*) música de Vivaldi e transcrições por Bach, nestaPLAYLIST
Martha Argerich, no máximo da criatividade expressiva. Tenho dificuldade em descolar desta interpretação, embora conheça outras, de qualidade.
As análises valem o que valem, os juízos de valor idem; podeis ler muitas e diversas opiniões, consultando a Internet.
Para mim, este concerto tem algo de revigorante. Tem a capacidade de me fazer olhar para as coisas com otimismo e com o sentido do relativo, devido ao seu efeito humorístico.
Como é humorística, de facto, a moldagem da matéria sonora, nesta obra! Há uma sucessão rápida de temas, no primeiro andamento, mas isso não me soa a extravagante, ou a demasiado extrovertido.
Imagine, o leitor, que estivesse a assistir a um filme*: A atenção do auditor é desviada de um para outro plano, de um naipe da orquestra para o solo de piano, e vice-versa. O mais espantoso, afinal, é que não se trata de um mero exercício virtuosístico.
Diz-se que a grande arte é a que parece muito «fácil»: É, de facto, o caso deste concerto, um condensado de energia telúrica, de otimismo e surpresa, do princípio ao fim. Liszt escreveu este concerto ao longo de 19 anos, só o dando a conhecer ao público na estreia,em 1855.
Portanto, não se deixe distrair: Oiça os cerca de vinte minutos deste concerto, com concentração total. É um bom tónico, excelente para relaxar músculos demasiado tensos, para infundir otimismo e afastar ideias deprimentes!
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Liszt compôs esta obra várias décadas antes do aparecimento do cinema.
Esta transcrição pianística de Liszt, sobre um Lied muito célebre de Schubert, deve ser escutada no contexto literário que enforma a peça. Sobretudo, deve-se ler a versão original, com os versos do «Fausto» de Goethe, uma passagem em que Margarida (Gretchen) está na roda de fiar (Spinnrade).
Esta célebre peça de Paganini - tantas vezes interpretada ao piano, na transcrição de Liszt - está para a música clássica como uma espécie de «êxito pop» que toda a gente conhece.
Para mim, é notável a perfeita adequação estilística e técnica de Vanessa Mae, célebre, entre outras coisas por interpretar Vivaldi no violino eléctrico.
Talvez o mais precioso legado da Pátria Húngara à modernidade seja a música composta por Ferénc Liszt.
Esta, não é «música fácil». Se ela entra facilmente no ouvido, não cai em facilitismos, escapa assim ao cliché de que a música romântica seria sinónima de «lamecha». É uma classificação completamente infundada. Basta, para se convencer disto, escutar com atenção a presente Sonata.
Não eram lamechas Chopin, Berlioz, ou Liszt... nem os tardo-românticos, Tchaikovsky ou Rachmaninoff, nenhum deles pode ser acusado de tal falta de bom-gosto.
O preconceito e a ignorância colaram a etiqueta de «romântica» à música lamecha - que, efectivamente, se compôs nessa época e em todas as épocas - para logo repudiar tudo o que pertença à grande corrente estética do Romantismo, como sendo o sub-produto de uma sensibilidade doentia, mal-conjugada com o pior convencionalismo musical.
Mas, o romantismo de Beethoven a Wagner, a Brahms e, mesmo, o de compositores mais tardios, não tem pinga disso! Tem que ver com a figuração dos sentimentos, através do discurso musical. Tem que ver com uma clara opção pelo rigor, se necessário, derribando as formas tradicionais e tratando de criar formas novas, adequadas às exigências expressivas. Para os românticos, o piano foi, sem dúvida, o instrumento de eleição e Liszt foi um dos seus maiores intérpretes.
Ouvir-se - hoje em dia - a grande Sonata em Si bemol menor de Liszt, pelo jovem Seong-ji Cho, é um prazer raro. Espero que o partilhem comigo, leitores do meu blog!
5:52 Cantado espressivo (Singing expressively) 9:03 Incarzando (Getting quicker) 10:15 Recitativo (Recitatively) 12:25 Andante sostenuto (very legato in a sustained manner - Just like taking a walk while thinking deeply) 13:22 Quasi Adagio (Like slowly) 19:49 Allegro energico 22:00 Piu mosso (More quickly) 23:57 Cantando espressivo senza slentare - Stretta quasi presto (Singing expressively without slowing down - quickening the speed very fast) 25:51 Presto - Prestissimo (Very fast - Very very fast) 26:57 Andante sostenuto 28:11 Allegro moderato (moderately quick) 29:36 Lento assai
A grande qualidade de Valentina Lisitsa neste video
Pode-se apreciar a peça de Liszt (ver a notícia descritiva por baixo do vídeo) usufruindo a música por si mesma.
Pode-se também evocar o drama do Dr. Fausto, uma das grandes narrativas lendárias do nosso tempo. Com efeito, se foi inventado ou adaptado de várias lendas populares por Marlowe, é algo intemporal, pois tem aquela vida própria dos grandes mitos que se podem adaptar a cada época.
Uma das leituras mais marcantes da minha juventude foi o romance de Thomas Mann, uma adaptação da história de Fausto ao século vinte, pondo em cena personagens que são a síntese de muitos destinos individuais.
3º andamento da Sinfonia «Fausto» Hungarian State
Concert Orchestra; János Ferencsik.
Mas o mito de Fausto pode igualmente ser associado a este princípio de século XXI: o mito de uma juventude eterna nunca foi tão espalhado. Pense-se no faustiano pacto de certos biólogos, que tentam - a todo o custo - conseguir a ruptura das fronteiras naturais da vida, tendo como objectivo final a vida humana.
Igualmente, é neste capitalismo depredador, em fim de percurso, que são propostos «pactos com o diabo» a todos os que ele esteja interessado em seduzir.
Nunca o poder do dinheiro foi tão grande, nunca foi tão férreo o seu reino, a meu ver.
No futuro...
- ou se extingue a «lei» da sociedade baseada no dinheiro, tornando possível o florescer duma humanidade não desfigurada no seu âmago,
- ou será a perda total do que resta desta civilização, transformando-se num mundo dominado pela oligarquia mais despiedada que possa existir e onde o resto da humanidade será escravizada.
Uma gravação da grande intérprete do reportório clássico e romântico, Valentina Lisitsa
A dança macabra ou dos mortos (Totentanz) é um tema bem conhecido da iconografia medieval.
As damas, os nobres, os plebeus, os clérigos, os camponeses, os comerciantes, até mesmo os reis, os imperadores e os papas, são todos eles arrastados numa dança frenética, com esqueletos dançantes.
Nas épocas em que a morte fazia grandes colheitas, devido às guerras, as epidemias, às fomes, estas danças macabras lembravam a todos que quaisquer que fossem sua riqueza e estatuto social, podiam ser requisitados pela Morte em qualquer momento, para participar na dança...
Liszt utiliza, entre outros, o tema do «Dies Irae» da missa de Requiem. A sua composição obviamente descritiva é também uma peça arrojada, mesmo para ouvidos do século XXI.
A intérprete Valentina Lisitza demonstra um grande controlo e subtileza, numa peça muito difícil tecnicamente.
Gosto de ouvir com atenção este «monumento da música».