Muitas pessoas aceitam a situação de massacres de populações indefesas em Gaza e noutras paragens, porque foram condicionadas durante muito tempo a verem certos povos como "inimigos". Porém, as pessoas de qualquer povo estão sobretudo preocupadas com os seus afazeres quotidianos e , salvo tenham sido também sujeitas a campanhas de ódio pelos seus governos, não nutrem antagonismo por outro povo. Na verdade, os inimigos são as elites governantes e as detentoras das maiores riquezas de qualquer país. São elas que instigam os sentimentos de ódio através da média que controlam.
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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

ARTHUR RIMBAUD / LÉO FERRÉ: «CHANSON DE LA PLUS HAUTE TOUR»

                                       Honoré Daumier: «A Revolta»

O JOVEM REVOLUCIONÁRIO RIMBAUD

No ano de 1872 Arthur Rimbaud parte de Paris, onde deixa Verlaine. Nesse tempo, este último tentava (em vão) refazer sua relação conjugal com a esposa, Mathilde. 
Mas Rimbaud, então com 18 anos, é também um «communard» que foge à repressão que se abateu sobre os que, de um modo ou de outro, participaram na gesta heroica da Commune. 

Tal como o poema «Les Corbeaux»*, esta canção alude ao desespero dos sobreviventes da Comuna de Paris. Ele evoca uma juventude que «perdeu a sua vida», ou seja, perdeu «o combate da sua vida». Isto, não no sentido de «perdição» moral, de ter ficado desgraçado pela vida de «deboche». Quem triunfa -por agora - são as «moscas varejeiras», os clericais que enchem a pátria «de incenso e de joio». Para mim, é claro o sentido anticlerical.
O isolamento do jovem explica-se como retirada, um auto- exílio político, até que a situação seja menos perigosa para ele. Parece-me bem mais verosímil do que uma retirada motivada por um suposto sentimento de frustração amorosa, na relação com Paul Verlaine.
A ambiguidade do poema foi desejada e conseguida graças ao génio de Rimbaud: De tal modo que, nos dias de hoje, muitos literatos fazem ainda uma leitura «intimista» e «analítica» dum texto, essencialmente político.
Uma prova em abono da minha tese é que as versões académicas, seguindo rigorosamente o manuscrito original, transcrevem «Ainsi la Prairie», o primeiro verso da 4ª estrofe. 
Ora, Prairie (= «prado»), não parece fazer sentido, nem sequer metafórico. Ainda por cima, a palavra vem com maiúscula, o que ainda faz menos sentido. A não ser que... o poeta quisesse referir outra palavra, parecida com «prairie», e esta aparecesse como um lapso, um erro.
Considero que a leitura correta, é a que faz Léo Ferré:             Ainsi la patrie / à l'oubi livrée (etc)

Creio que este verso-chave, com esta alusão dissimulada (através do falso erro) à pátria, uma vez corrigido, torna claro o significado do poema. É um poema político do revolucionário e communard, que tem de se abrigar na cidade natal de Charleville.






Chanson de la plus haute tour*
Arthur Rimbaud


Oisive jeunesse
A tout asservie,
Par délicatesse
J’ai perdu ma vie.
Ah ! Que le temps vienne
Où les coeurs s’éprennent.

Je me suis dit : laisse,
Et qu’on ne te voie :
Et sans la promesse
De plus hautes joies.
Que rien ne t’arrête,
Auguste retraite.

J’ai tant fait patience
Qu’à jamais j’oublie ;
Craintes et souffrances
Aux cieux sont parties.
Et la soif malsaine
Obscurcit mes veines.

Ainsi la patrie
A l’oubli livrée,
Grandie, et fleurie
D’encens et d’ivraies
Au bourdon farouche
De cent sales mouches.

Ah ! Mille veuvages
De la si pauvre âme
Qui n’a que l’image
De la Notre-Dame !
Est-ce que l’on prie
La Vierge Marie ?

Oisive jeunesse
A tout asservie,
Par délicatesse
J’ai perdu ma vie.
Ah ! Que le temps vienne
Où les coeurs s’éprennent !

Arthur Rimbaud, Derniers vers




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*Canção da Mais Alta Torre

Arthur Rimbaud

[tradução de Manuel Banet]


Juventude desocupada
A tudo submetida,
Por delicadeza
Perdi  minha vida.
Ah ! Que venha o tempo
Em que os corações se apaixonem!

Disse para comigo: deixa,
E que não te vejam :
E sem a promessa 
De mais elevados prazeres.
Que nada te retenha
Do augusto retiro.

Tanto exerci paciência
Que esqueço para sempre;
Receios e sofrimentos
Para os céus partiram.
E a sede doentia
Obscurece-me as veias.

Assim a pátria
Ao esquecimento votada,
Crescida, e florida
De incenso e de joios
Ao bordão obstinado
De cem nojentas moscas.

Ah ! Mil viuvezes
Da tão pobre alma
Que  só tem a imagem
Da Nossa-Senhora!
Será que se reza
À Virgem Maria ?

Juventude desocupada
A tudo submetida,
Por delicadeza
Perdi  minha vida.
Ah ! Que venha o tempo
Em que os corações se apaixonem!

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terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Les Corbeaux (Arthur Rimbaud / Léo Ferré)

Van Gogh, outro artista maldito, deixou-nos este «Campo de trigo sobrevoado por corvos»

Contrariamente a certas análises do poema, tenho ideia que Arthur Rimbaud se refere a uma derrota (da Guerra Franco-Prussiana, de 1870) para, indiretamente, invocar a morte da Comuna de Paris e a destruição do movimento operário («La défaite sans avenir»).
Certos críticos fazem a amálgama da derrota dos exércitos de Napoleão III em Sedan, com a «derrota» pessoal, resultante da indiferença ou hostilidade, que o jovem Athur Rimbaud teria encontrado em Paris, para onde se dirigiu a pé desde Arras (Norte da França), para se encontrar com poetas simbolistas que ele admirava. É verdade que o jovem sofreu um fiasco: os poetas mais em voga rejeitaram suas teorias de «desregramento dos sentidos», que ele preconizava como espécie de «via sacra» para obter a matéria-prima poética que iria florescer, mais tarde. Porém, ele não foi assim tão mal acolhido; devem tê-lo considerado um «garoto» que queria mostrar-se original.

            
   Detalhe de Quadro de Henry Fantin-Latour de 1872, com Verlaine e Rimbaud

Rimbaud era um jovem vagabundo, pobre. Ele esteve em contacto com jovens de classes populares, de costumes sexuais muito mais livres do que a burguesia da qual era oriundo, envolvendo-se em relações com tais filhos do povo. Ele assumiu-se como sendo um deles. Coloca-se claramente ao lado dos communards, dos operários que tomaram as armas em rebelião contra a capitulação vergonhosa dos políticos republicanos.
Mas, em 1872, a memória da Comuna de Paris de 1871 estava bem viva e, sobretudo, da «semana sangrenta», a repressão que se abateu sobre seus defensores, em Junho de 1871, com dezenas de milhares de mortes, decapitando o movimento social e político do proletariado francês. Como poderia ele publicar um poema em memória dos communards? - Impossível!
-Então, ele jogou na ambiguidade. Ele refere-se, de forma não muito explícita, aliás, à derrota do exército francês em 1870, os mortos de anteontem, mas fica implícito para alguém que conheça o contexto da época, que a derrota de ontem, a derrota «sem futuro», foi a da Comuna de Paris.
É muito original o modo como trata o exército de corvos, aqueles que anunciam/lembram o «dever»...Não lhes atribui qualificativos que tradicionalmente se atribuem aos corvos: Aves de «mau-agoiro», aves alimentando-se dos cadáveres após as batalhas, etc. Pelo contrário, os «chers corbeaux délicieux» são pintados como um exército, que progride ao longo das estradas e dos rios, dispersando-se pelos campos de França. Eles gritam, severos, enquanto esvoaçam por cima das cabeças dos peões: «soit donc le crieur du devoir» (sê pois o arauto do dever). A «nossa fúnebre ave negra», por quem estará ela de luto, a nossa ave? Penso que será pelos humildes, que foram esmagados, quer na guerra franco-prussiana, quer na repressão da Comuna de Paris, que lhe seguiu.
Ele pede, para os que ficaram presos (pour ceux qu'au fond du bois enchaîne), depois da derrota sem futuro (La défaite sans avenir), que Deus (Seigneur, é a primeira palavra do poema, portanto, trata-se de uma oração) lhes deixe as toutinegras de Maio (les fauvettes de Mai), símbolo da esperança e renovo da vida. O sentido geral é obscurecido intencionalmente, mas é possível decifrar a intenção de Rimbaud, em homenagear os caídos da Comuna. Não se pode esquecer que este poema foi escrutinado pela censura.

Léo Ferré compõe uma canção magnífica, em correspondência com o significado subjacente do poema de Arthur Rimbaud.

                                         


SEIGNEUR, quand froide est la prairie,
Quand, dans les hameaux abattus,
Les longs angélus se sont tus ...
Sur la nature défleurie
Faites s'abattre des grands cieux
Les chers corbeaux délicieux.

Armée étrange aux cris sévères,
Les vents froids attaquent vos nids !
Vous le long des fleuves jaunis,
Sur les routes aux vieux calvaires,
Sur les fossés et, sur les trous
Dispersez-vous, ralliez-vous !

Par milliers, sur les champs de France,
Où dorment des morts d'avant-hier,
Tournoyez, n'est-ce pas l'hiver,
Pour que chaque passant repense !
Sois donc le crieur du devoir,
Ô notre funèbre oiseau noir !

Mais, saints du ciel, en haut du chêne,.
Mât perdu dans le soir charmé,
Laissez les fauvettes de mai
Pour ceux qu'au fond du bois enchaîne,
Dans l'herbe d'où l'on ne peut fuir,
La défaite sans avenir.




segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Debussy: Suite Bergamasque (interprete: Seong-Jin Cho)

 


Claude Debussy, Paul Verlaine e o Simbolismo

Paul Verlaine (1844 -1896) tem sido considerado um dos chefes de fila do movimento Simbolista. 
Tal era a sua potência poética que - apesar da sua «má vida» e dos amores proibidos com Artur Rimbaud - o elegeram o «Príncipe dos Poetas», do Parnasso Contemporâneo. 
A sua arte é talvez a forma mais acabada de síntese entre o clássico e o moderno.
Quando nos debruçamos sobre a sua obra, valorizando os aspetos estéticos, ficamos extasiados pela musicalidade, subtileza e pela utilização de audácias de estilo que seriam lembradas pelos seus sucessores.
Afinal de contas, é certo que ele seja o Príncipe: Porque, que mais pode uma alma literária desejar para sua posteridade, do que ser admirada, plagiada, estudada, posta em música e isto, em sucessivas gerações!?

A peça Clair de Lune (Luar) de Debussy, integrada na suite «Bergamasque», não sendo um «poema musicado» é uma peça que banha na atmosfera simbolista e possui óbvias referências à poesia de Verlaine. Não apenas o nome «Clair de Lune» é idêntico a um dos poemas da recolha das «Fêtes Galantes» mas, no poema de Verlaine, este menciona «masques et bergamasques»: Trata-se de uma ironia saborosa, pois «masques» (máscaras) estão unidas, pela rima interna, com «bergamasque» a dança renascentista, originária de Bergamo, Itália.
Estou convencido que Debussy escolheu este título da suite «Bergamasque», como forma de homenagear o poeta simbolista.
Os versos de Verlaine têm sido postos em música por sucessivas gerações de compositores, desde Gabriel Fauré e Reynaldo Hahn, a Léo Ferré e Georges Brassens ... e muitos mais! 




Clair de lune

Votre âme est un paysage choisi
Que vont charmant masques et bergamasques
Jouant du luth et dansant et quasi
Tristes sous leurs déguisements fantasques.

Tout en chantant sur le mode mineur
L'amour vainqueur et la vie opportune,
Ils n'ont pas l'air de croire à leur bonheur
Et leur chanson se mêle au clair de lune,

Au calme clair de lune triste et beau,
Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres
Et sangloter d'extase les jets d'eau,
Les grands jets d'eau sveltes parmi les marbres.
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[Tradução de Manuel Banet]

Ao Luar

Vossa alma é a paisagem escolhida
Onde se movem máscaras e bergamascas
Tangem alaúdes, dançam e vão quase
Tristes sob suas roupagens de fantasia.

Enquanto cantam em modo menor
O amor triunfante e a vida sorridente, 
Parecem não crer na  sua felicidade
E sua canção mistura-se ao luar

Ao luar calmo, triste e belo
Que faz sonhar pássaros nos ramos
E soluçar de êxtase repuxos de água,
Grandes repuxos esbeltos entre os mármores.