Estamos a viver o colapso.
A chamada civilização ocidental está a desfazer-se diante dos nossos olhos e não se trata dum fenómeno natural. É resultante da vontade da oligarquia, dos multimilionários, que constituem a «super-classe» capitalista. Esta tem ditado a agenda, não apenas em relação à concentração do capital, com a consequente potenciação dos lucros, como em relação ao poder político, em particular, nos grandes potentados imperialistas.
Não se pense que este processo de demolição seja inteiramente caótico; porém, para nós, que estamos por baixo, ele parece efetivamente um caos, uma catástrofe, um pesadelo: tudo aquilo que tivemos, como mais ou menos certo e seguro nas nossas vidas particulares e sociais, se está a desmoronar. Mas o processo é - afinal - de uma demolição controlada, programada com o rigor necessário, para que não sejam postos em causa os fundamentos da sociedade capitalista. O processo tem sido designado por vários nomes, entre eles «The Great Reset» e outros chavões e frases ideológicas que se destinam a fazer crer numa explicação do que está a acontecer, mas sem dar realmente as chaves para a compreensão global dos fenómenos.
Não serve de nada dizer que «o capitalismo está em crise», de facto, a crise é um dos principais processos que ele tem, enquanto modo de produção, para se adaptar aos novos contextos, desde invenções e suas aplicações na economia, até às transformações na política das grandes potências.
O que o processo atual mostra, não é que o «capitalismo esteja a morrer», longe disso; podemos ver como ele se está a desenvolver de modo pujante, na Ásia, em particular, na China. Mais uma vez se constata que está na própria natureza do sistema capitalista, a sua adaptação ás grandes transformações.
Hoje, a exploração já não se limita ao trabalhador individual, embora esta persista e até se tenha intensificado, nos últimos decénios. São relativamente novas, as modalidades de exploração da classe operária através do Estado todo poderoso, o capitalismo de Estado. A primeira versão - a soviética - acabou por se afundar nas suas próprias contradições. Mas o modelo «misto», o «socialismo com características chinesas», tem mostrado o seu vigor.
A classe capitalista ocidental não se engana ao colocar na China uma parte importante do aparelho produtivo das suas empresas, em estabelecer parcerias «win-win» com o Estado chinês, a fazer depender a extração de lucro do funcionamento bem oleado da exploração da classe operária chinesa, sob comando e controlo político da «elite comunista».
As pessoas, no Ocidente estão ainda a pensar em termos de ontém, ou mesmo, de antes-de-ontém. Não veem que, para se perpetuar o sistema capitalista no Ocidente, informatizado, digitalizado, robotizado, elas terão de se submeter à intensificação da exploração, que implica precariedade, dependência aos mecanismos assistenciais e a completa destituição social para os 90%, enquanto uma reduzida classe média irá servir os interesses da classe neofeudal, os 0.01%.
Esta classe neofeudal não terá muitas das características da classe feudal histórica: Não haverá ligação à terra, às grandes propriedades agrícolas; não haverá títulos de nobreza hereditária, embora as fortunas passem de geração em geração. Mas será uma nova classe feudal e a sociedade estará em breve debaixo deste novo feudalismo, pois as pessoas comuns terão perdido qualquer réstea de liberdade de movimentos, qualquer hipótese de determinar a sua carreira ou profissão, apenas terão escolha (se isso se pode chamar assim) entre serem assistidos crónicos, recebendo o mísero rendimento universal, o mínimo de subsistência na nova sociedade, ou submeterem-se a condições de exploração máxima, competindo com robots e algorítmos de IA, escravos-assalariados num dos gigantescos conglomerados mundiais que acumulam produção, serviços e comércio, como já se verifica na Coreia do Sul, com os "Chaebol" (Samsung, Hyundai, LG...).
Isto não é sequer a descrição de um futuro sombrio. Porque é o presente; está o mundo encaminhado nesta direção, quer queiramos quer não. Algumas regiões do mundo mostram-nos o seu presente, que será o nosso futuro próximo. Muitas variações superficiais escondem a uniformidade do modo de agir e de explorar os recursos, humanos e naturais.
A capacidade das pessoas comprenderem o que se está a passar é sempre muito limitada. Na melhor das hipóteses, conseguem delinear as tendências principais. Mas, não podem socorrer-se duma teoria, seja ela qual for. A razão disto, é muito simples: os dados de que uma pessoa, ou um grande número de pessoas, dispõe sobre o presente, são limitados; há dados que pura e simplesmente não estão disponíveis, seja intencionalmente ou não. Há até elementos de informação não disponíveis, porque os investigadores das áreas de economia, sociologia, etc, não os consideram relevantes. Mas, alguns deles serão relevantes, apesar da opinião dos «especialistas».
Por outro lado, é sempre necessário um certo recuo histórico para se ter uma ideia geral da evolução social e económica. Não podemos fazer «história do presente», isso é somente a projeção da nossa ideologia sobre as ocorrências que se podem observar. Então como encarar a atual transformação? Como encontrar o fio condutor para se avaliar as evoluções possíveis?
As grandes transformações saem sempre fora dos modelos estabelecidos. Nada do que é realmente novo se pode plasmar numa realidade do passado. Quando se usa o termo «neo-feudalismo», é porque há aspectos superficiais que evocam o período feudal, mas sobretudo porque não se conseguiu compreender a lógica do supermonopolismo que se vem afirmando em diversas partes do globo.
Os arautos do capitalismo, por mais que possuam títulos académicos, apenas reproduzem a lenga-lenga «da sociedade de livre concorrência», do «livre mercado». Porém, esta visão está longe de corresponder à realidade.
O que um grande grupo capitalista atual faz, é tentar minimizar a concorrência, a todo o custo e por todos os processos. Desde a influência no aparelho de Estado, para colocar em inferioridade os seus concorrentes, às fusões e aquisições, para neutralizar o potencial de crescimento doutras empresas operando no mesmo sector, ou ainda outras e diversas táticas, envolvendo patentes, ou redes exclusivas de distribuição, etc. Se estudarmos - no concreto - a estratégia dos grandes grupos, vemos que sua máxima preocupação é conseguir uma situação de monopólio no mercado e, uma vez conseguida, mantê-la, usando toda a panóplia de meios legais e ilegais, para liquidar toda a concorrência, logo à nascença, se possível.
A sociedade capitalista atual será portanto caracterizada pelo domínio estratégico de grandes conglomerados, monopolizando setores inteiros ou, nalguns casos, partilhando o mercado apenas com um, ou com poucos concorrentes, em duopólio ou oligopólio.
Nesta sociedade, algumas atividades são deixadas a empresas familiares ou outras, porque não desempenham papel relevante para o controlo estratégico dos mercados. Mesmo nestes casos, difundiu-se o sistema de «franchising» ou seja, a exploração por concessionários, com a empresa-mãe a controlar tudo o que é produzido e recebendo uma renda, pelo facto do concessionário ter autorização para usar a marca prestigiosa.
Nesta sociedade, a produção em massa será abundante e barata: o trabalho humano será quase nulo e servirá somente para controlar os robots em ação. Uma cadeia de montagem de automóveis - atualmente - corresponde ao novo paradigma, onde quase tudo está robotizado, sendo a parte humana confinada a duas áreas: a concepção dos modelos, assistida por algorítmos de IA; e o controlo do produto saído da cadeia de montagem, também este assistido por computadores utilizando IA.
Numa sociedade com caraterísticas socialistas ou igualitárias, o mesmo processo de produção iria permitir uma sociedade com ócios maiores; as pessoas trabalhariam apenas 4 horas por dia, 5 dias por semana, por exemplo. Numa sociedade onde o bem-estar das pessoas é uma preocupação central, a robotização seria algo muito positivo: Iria livrar os humanos da execução de trabalhos perigosos, insalubres, fatigantes, ou repetitivos. Mas numa sociedade onde as assimetrias sociais se extremaram, isso não irá passar-se assim. Dum lado, os multimilionários, do outro, pessoas destituídas, relegadas aos trabalhos pouco ou nada prestigiosos... Nesta sociedade, a robotização, a generalização da IA, irá servir para acentuar as condições de exploração e de submissão dos assalariados. Estes, não terão boas condições de vida, serão menos considerados que os robots, tanto mais que haverá um abundante «exército de reserva» de desempregados, ou de ultra-precários.
As condições objetivas da transição para uma sociedade de tipo socialista estão reunidas, e isto não é de agora. No final do século XIX, já se podia claramente afirmar a mesma coisa. Certamente, as condições concretas de produção eram totalmente diferentes, das de hoje. Mas o fundamental estava realizado, tanto no passado, como hoje: A existência dum excedente, do qual os produtores podiam beneficiar ( se conservassem o fruto do seu trabalho), permitindo-lhes ter uma vida digna, ao abrigo das carências vitais.
Hoje, as condições objetivas existem, embora não pareça ser o caso, porque enormes quantidades da riqueza social produzida são constantemente desviadas para o usufruto exclusivo dos oligarcas parasitas, ou para construções faraónicas dos Estados, os quais estão controlados pela oligarquia e não pelo povo.
A transformação para um tipo real e realizável de socialismo é sobretudo obstacularizada pela campanha permanente, contra tudo o que - no passado e no presente - se aproxime do modelo socialista. Os próprios (nominais) defensores do socialismo, por vezes, têm contribuído para desprestigiar este modo de produção, junto dos trabalhadores.
A batalha pelo socialismo faz parte de uma luta multissecular, que implica - antes de mais - uma ética própria, que tem de se desenvolver nas fileiras dos que efetivamente desejam o socialismo. Para um modelo destes ser realizável, é preciso que existam estruturas sociais, como cooperativas, comunas (rurais ou urbanas) e associações de tipo igualitário, que irradiem uma cultura diferente e apelativa. A atração por outro modo de vida e por relações sociais mais satisfatórias a todos os níveis, tem de ser essencialmente através do exemplo. Só assim se poderão vencer os preconceitos e campanhas difamatórias dos propagandistas pró-capitalistas.