sexta-feira, 22 de agosto de 2025
A reforma de fogo do Papa Leão
quarta-feira, 13 de agosto de 2025
A HISTÓRIA DE MARIA SEGUNDO O CATOLICISMO
A Assunção da Virgem, de Ticiano
Antes de mais, qualquer pessoa profundamente cristã, seja de que denominação for, não deve sentir-se ofendida e não deve considerar que neste escrito pretendi apoucar a figura de Maria, Mãe de Jesus.
O que irei descrever é relativo à maneira como o cristianismo, primeiro perseguido pelas autoridades instaladas no poder na Judeia, sob o império romano e - seguidamente - também pelo próprio império romano, acabou por se transformar numa religião de Estado do império romano, levando à extinção oficial dos cultos ditos pagãos e mais ainda a moldar as narrativas relacionadas com a vida de Jesus e dos apóstolos, da maneira mais conveniente para o poder da época.
Com efeito, desde a mais alta antiguidade, surgem relatos de «virgens» que miraculosamente dão à luz um Deus ou semi-deus, ou um profeta, que está assim marcado -desde o início- com a marca do maravilhoso, do milagroso. Em muitos relatos bíblicos, são descritos «milagres», ou seja, acontecimentos que não se conformam com a «ordem natural das coisas» e reveladoras da vontade de Deus, direta ou indiretamente, através dos sacerdotes, profetas, evangelistas e santos.
Estamos a falar de uma era profundamente crente, mas que não faz a destrinça entre o sobrenatural insuflado nas obras divinas e o que passa por sobrenatural, num exercício destinado a convencer os fiéis.
Sabemos que os relatos dos Quatro Evangelhos canónicos, escritos todos eles muito depois dos acontecimentos relatados e mesmo depois da morte de Cristo, são unânimes relativamente à virgindade de Maria, embora esta unanimidade não tenha estatuto de «testemunho» direto, apenas de relato perpetuado de geração em geração.
O concílio de Niceia, convocado por ordem do Imperador Constantino e sob a sua atenta vigilância, pronunciou-se sobre uma série de questões em disputa no seio dos doutores cristãos. Estes procuravam fazer valer a sua versão dos acontecimentos, em polémica uns com outros. Aqui, tal como em muitas outras circunstâncias, o resultado que está consignado no «Credo Niceno» é o produto de disputas de poder dentro da Igreja Cristã. Esta já não era uma comunidade de seguidores diretos de Jesus, mas uma igreja poderosa, profundamente marcada pela sua transformação em religião de Estado.
Mesmo dentro daquele corpo de doutrina muito estricto havia lugar para especulação, relativamente à forma concreta como Maria ficou grávida de Jesus. Dizer que «foi obra do Espirito Santo», não adiantava muito, pois o Espírito Santo, todos concordavam que estava em todo o lugar, sendo emanação de Deus todo-poderoso (o Deus trinitário do «Pai-Filho-Espirito Santo). O catolicismo, ou seja a versão do cristianismo mais próxima do papado de Roma, insistia que tinha sido uma conceção «imaculada», como se a conceção pela via natural fosse «pecado». Uma característica constante do catolicismo, em todos os períodos, era ver pecado em tudo, em especial na vida sexual e amorosa dos crentes, de forma a que eles se sentissem «pecadores» de várias maneiras e formas, e logo precisando da confissão e absolvição dos pecados para poderem continuar a participar na comunidade, na missa, a receber a hóstia durante a comunhão e os sacramentos, em geral.
Depois do Concílio de Trento, em meados do Séc. XVI, os reinos católicos, além da própria Igreja, promulgaram a doutrina oficial da «Imaculada Conceição de Maria». Ao fazê-lo, estavam oficializando uma doutrina que não tinha objetivamente apoio em nada, senão na tenacidade dos teólogos mais «fundamentalistas».
Quanto aos cristãos reformados e protestantes, qualquer que fosse a sua obediência (anglicana, calvinista, anabaptista ou luterana), eles consideravam que esta inovação do Concílio de Trento era totalmente arbitrária e que impunha aos católicos acreditarem em algo absurdo. Surgem assim expressões irónicas, como «emprenhar pelos ouvidos», que exprimem a incredulidade sobre gravidezes ocorridas sem haver ato sexual «normal».
Mas o Concílio de Trento e a Igreja Católica (papal), não apenas produziram este contra-senso teológico e biológico, como também imaginaram sem base nenhuma, que Maria, depois do falecimento, ascendeu aos céus e foi diretamente ao Paraíso, para junto de Deus. Esta ascenção aos céus é relatada em quadros muito belos de grandes pintores, os quais estão, ou estiveram, nos altares dos templos consagrados a Maria. Em geral, em todos os templos católicos ou até em casas particulares, é frequente encontrar-se imagens da «Ascenção da Vírgem». Estas imagens mostram Maria com traços duma jovem mulher, sobre um crescente de Lua (símbolo ancestral de fertilidade), com uma auréola de santa e com anjinhos que voejam em torno dela.
A Ascenção aos Céus de Maria tornou-se o coroar da teologia destinada a criar a figura de uma Deusa, uma figura divinal feminina, mas destituída dos aspectos eróticos das mulheres reais e das divindades femininas da antiguidade, assim como das religiões pagãs contemporâneas. A esta entidade divinizada da Virgem foi atribuído o papel de «intercessora», à qual os crentes deviam prestar culto e pedir que ela intercedesse por eles/elas, junto de Deus, para obter o perdão dos seus pecados. Para a mentalidade dos católicos, a figura da Virgem era vista como mais «poderosa» junto de Deus, que qualquer outro Santo católico, pois tinha a característica única de ser a Mãe de Cristo.
Os católicos que desprezam as outras religiões, nomeadamente as religiões politeístas, estão equivocados quanto à sua própria. Na realidade, a versão protestante do cristianismo, poderá ser considerada como tendente ao monoteísmo, embora não deixe de afirmar o dogma da Trindade (Deus sob forma Tri-una : Pai, Filho e Espírito Santo).
Mas os católicos, têm milhares de santos e santas, oficialmente reconhecidos e venerados em igrejas e noutros lugares. Quanto à Virgem Maria, ela é mais do que uma simples Santa: Ela tem as características duma Deusa, graças à longa tradição da teologia católica. Esta divinização de Santa Maria, Mãe de Deus, é considerada por não poucos protestantes como uma grave heresia, na medida em que alça uma pessoa - por mais Santa que tenha sido - à posição divina e assim é colocada para adoração dos muitos seguidores do catolicismo.
domingo, 2 de julho de 2023
O PAGANISMO CRISTIANIZADO
Foto: Menhir «cristianizado», de Saint Uzec (Bretanha)
A evolução das religiões instituídas afasta-as muito da sabedoria e ensinamentos dos profetas e seus primeiros seguidores. No caso do cristianismo, a religião de origem era a mesma que a do povo judeu, pelo que as pessoas que seguiram o Cristo inicialmente, consideravam-se dentro do Judaísmo. Mas, já em São Paulo, se nota um afastamento em relação a certas práticas do judaísmo ortodoxo.
Os dias santos, feriados, festas religiosas, foram colar-se às práticas de paganismo do Império romano. Sem essa colagem, não teria sido possível a religião cristã tornar-se «religião de Estado». Estas festas eram celebradas por todos, desde tempos imemoriais. Se o pretexto era homenagear - nesses festivais - certas divindades, o seu espírito não era apenas de devoção a esses deuses ou heróis míticos: Era um pouco como o Natal de hoje, uma festa pagã, a pretexto da data (mítica) do nascimento de Jesus Cristo.
Nas sociedades agrárias, os dias, semanas e meses estavam associados a tarefas agrícolas, comuns em toda a área mediterrânea. As épocas das colheitas, ou das sementeiras, etc. estavam associadas às espécies cultivadas e ao ciclo anual das estações. Estes ritos, dedicados aos deuses agrários, implicavam sacrifícios de animais e/ou de produções vegetais, em honra do/da deus/a, supostamente responsável pela fertilidade, pela abundância das colheitas, etc.
Também, desde tempos imemoriais, se assinalavam certos momentos* da trajetória do Sol: O solstício de Inverno (23 de Dezembro; festa do Natal) e o de Verão (23 de Junho, festa de S. João Batista). Os equinócios: O equinócio da Primavera, coincidindo com a Páscoa, festa pagã da fecundidade e o equinócio do Outono, em Setembro, após a colheita dos cereais, coincidente com a vindima, a colheita da maçã e doutros frutos.
Havia rituais associados à Deusa da Terra e da Agricultura, ou Ceres, a deusa que era responsável pela fertilidade agrícola. Nalguns povos, instaurou-se o Thanksgiving, ou seja, o dia em que se agradece a Deus pelas colheitas, em continuidade com festas pagãs com o mesmo fim.
O «Dia dos Mortos» (30 de Outubro) e o de «Todos os Santos» (1º de Novembro), foram instaurados com o objetivo de apagar a memória do Halloween, o ritual celta de culto dos mortos.
Os camponeses e artesãos medievais não tinham direito a um mês de férias. Além disso, tinham muito pouca mobilidade: Quanto muito, podiam visitar parentes numa aldeia próxima, à distância de uma jornada a pé. Porém, tinham muitos dias feriados: As festas do santo patrono da vila ou cidade, além dos feriados tradicionais, celebrados em toda a cristandade: Natal e São Silvestre, Carnaval e Quaresma, Semana Santa e Páscoa, Corpo de Deus.
É um erro considerar-se que os «pagãos» (ou seja, todos os povos que celebravam religiões politeístas) eram forçosamente «bárbaros», primitivos, etc. Esta visão deturpa a profunda ligação das religiões politeístas, que eram as da Grécia e Roma antigas, com as mais elevadas realizações da antiguidade, todas as artes, as ciências mais avançadas, engenharia, arte de navegar, etc. e sobretudo a sofisticação da filosofia, com várias escolas que o Renascimento europeu (a partir do séc. XV) redescobriu e tentou emular.
A popularidade das festas pagãs, devia-se em parte a uma devoção genuína aos deuses e deusas que eram objeto de culto e celebração nestas festas. Mas, em grande parte também, elas estavam intrinsecamente ligadas aos ciclos naturais. Os povos, desde tempos imemoriais, tinham observado os fenómenos periódicos dos astros, da Terra, do Sol e da Lua; as estações do ano, os ciclos de reprodução de plantas e animais; etc... Naturalmente, atribuíam os movimentos e transformações a forças divinas, cósmicas, que os deuses personificavam. Cada divindade presidia a um certo número de fenómenos da Natureza. Estas mesmas divindades também eram invocadas em circunstâncias particulares da vida dos indivíduos, do nascimento até à morte.
Ao fim e ao cabo, a nossa cultura está impregnada de símbolos e mesmo de crenças que vêm das religiões politeístas. Essa mesma herança está disfarçada pela cristianização de muitas festas pagãs, pela transformação de locais sagrados das religiões pagãs em santuários e locais de adoração de santos cristãos. A própria existência dos santos, embora na religião dos teólogos, aqueles sejam apenas «homens e mulheres notáveis, que constituem exemplos de vida e de fé para os cristãos», são vistos pelo povo cristão como se fossem (quase) deuses, aos quais se pede algo, que recebem dos devotos presentes (sacrifícios, num certo sentido, mesmo que não sejam animais sacrificiais), os devotos sentem-se obrigados em «cumprir as promessas feitas», enfim, uma quantidade de indícios de que a forma como os «santos-deuses» são ressentidos é muito semelhante à dos deuses do paganismo. Que outro significado terão as santas e os santos cristãos, serem os patronos de profissões, de atividades, ou os que devem ser invocados para determinadas doenças ou outros males ?
O protestantismo - nas suas diversas tendências - insurgiu-se contra esses cultos «divinos» dados a santos e santas cristãos, pelas tradições populares. Mas não conseguiu eliminar por completo essa adoração dos santos, mesmo nas zonas mais profundamente influenciadas pelo protestantismo (ex: Estados do Centro e do Norte da Europa, assim como os EUA e Canadá).
O catolicismo, predominante no Sul Europeu, na América Latina, e noutras paragens, tem abordado estas questões de uma forma ambígua: Na religião dos teólogos católicos, o conceito de «santo» é bastante semelhante aos dos protestantes. Mas, em relação ao povo católico há, não só uma tolerância em relação a crenças populares de origem pagã, como também existe um discreto ou ostensivo encorajamento de práticas de devoção, que são diretamente inspiradas do paganismo. Com efeito, as Nossas Senhoras disto ou daquilo, têm virtudes milagrosas «comprovadas» pelas lendas que estão ligadas a elas e aos seus locais específicos de devoção. Como disse acima, o modo como é feita a invocação de um santo é o equivalente a dar-lhes um estatuto de divindade, com o poder de «interferir» junto de Deus, para olhar pelo devoto e de realizar a cura ou alívio neste ou naquele aspeto da vida (saúde, dinheiro, ligações conjugais ou amorosas, etc...). Penso que a mentalidade dos que rezam, nestes termos, ao santo de sua devoção é idêntica - no essencial - ao que uma pessoa da antiguidade greco-romana faria, em relação ao deus sob a proteção do qual se colocava.
Embora teoricamente o Deus de cristãos, judeus e muçulmanos seja único, a verdade é que os povos onde estas religiões nasceram, tiveram religiões politeístas, que antecederam as «reformas» monoteístas. Os cristãos não puderam «erradicar» o politeísmo, senão «disfarçando-o» em adoração aos santos. Podem-se considerar os «exércitos» de santos católicos como um elaborado panteão, com especialidades médicas ou outras, cuidadosamente distribuídas, de tal modo que o devoto tenha - em qualquer circunstância - sempre um santo apropriado para invocar.
Não vejo, portanto, diferença em qualquer aspeto essencial com as religiões politeístas existentes, ou passadas; também nestas, as divindades asseguram uma fração «dos trabalhos divinos», tendo que colaborar com a Entidade suprema, o Deus principal das religiões na Grécia e na Roma antigas (Zeus e Júpiter) ou o seu análogo noutras culturas. A Virgem Maria e outros Santos, são considerados interceptores junto de Deus, sendo este conceito do papel dos santos, em si mesmo, uma clara negação da omnisciência do Deus Supremo e mesmo da sua omnipotência.
Porém, aquilo que caracteriza a religião nascida há cerca de 2000 anos atrás, principalmente antes do período dos concílios, quando se começou a codificar o cristianismo, não tem muito que ver com a religião praticada depois pelos cristãos, pelo clero e pelas mais elevadas autoridades eclesiásticas. Muitas pessoas sinceras e totalmente inocentes foram parar às fogueiras da Inquisição, ou sacrificadas de múltiplas maneiras cruéis, apenas por colocarem questões sobre a adoração dos Santos.
Talvez a maior traição dos que se dizem fiéis de Cristo, seja a sua intolerância sectária, que fez com que praticassem crimes, com a boa consciência de que os faziam «pela glória Divina». Este passado de intolerância sectária, ainda presente nalguns, é a maior negação da mensagem de Cristo.
Não digo que não haja sectarismo noutras religiões, no passado e no presente. Mas, o que choca particularmente, é que no caso dos Evangelhos de Cristo, a sua mensagem de Libertação espiritual profunda, tenha sido desvirtuada e o seja ainda agora, em tantos sítios e por tantas entidades eclesiásticas. Sem o seu papel pernicioso, o povo seria provavelmente menos fanático, haveria mais consideração pela Palavra e pelo Espírito da mensagem de Jesus.
O meu esforço para encontrar uma via pessoal para viver em harmonia com os Ensinamentos de Cristo, tem recebido muito pouco apoio institucional. Penso que seja também o caso de muitos cristãos pelo mundo fora.
O problema não decorre do texto das Escrituras Sagradas, mas, da perversidade daqueles que as interpretam a seu bel prazer, para conquistar e consolidar o poder, nas igrejas e nas sociedades. Chegam a negar - na prática - a «Boa Nova», que dizem seguir e propagar. Felizmente, conheço um certo número de teólogos e de filósofos cristãos, que esclarecem os aspetos de Libertação, Espiritualidade e Compromisso com os outros. Também existem algumas pessoas na minha vida pessoal, que são (ou foram) reais apoios para minha vivência cristã.
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*)Ver a influência pagã no calendário cristão:
https://wol.jw.org/pt/wol/d/r5/lp-t/1966206