segunda-feira, 16 de abril de 2018

[OBRAS DE MANUEL BANET] ODE À RIBEIRA*


*Da recolha inédita «Lábios do Vento» (1979-1982). A «Ribeira» corresponde à zona do Mercado e do Cais da Ribeira, em Lisboa, locais de trabalho árduo e de vida boémia.  



ODE À RIBEIRA


Cais onde desaguam verduras mil
Sinfonia de cores, odores e gritos
Mulheres de olhar experiente
Observam o seu cliente
Gritando os seus pregões
Homens de sacas às costas
Atravessando um mar de alfaces
De couves lombardas, de aipos
De cenouras, de cravos
De todas as cores

Sob a luz iridescente
Dos candeeiros, os boémios
Sorvem o café, olhar vago,
Madeixa desgrenhada
E ao balcão de esmalte
O rapaz mexe o açúcar nos galões

Vendedeiras com batas pretas
Sobre as saias de roda
Seios abundantes arfando
Faces coradas como pimentões

As últimas prostitutas
Põem rímel e bâton
Nas suas máscaras como na tragédia antiga

Uma algazarra de buzinas
Faz levantar voo a um cortejo de gaivotas
Que debanda para os bordos dos navios
Mastodontes atracados
De onde saem cascatas de peixe prateado

E nisto, o céu começa a clarear
E lá ao longe um rubro clarão de fogueira
Abrasa o fino rendilhado do casario
E as nuvens, róseos animais que o vento deforma
Este vento fresco que sopra de manhã
Trazendo o odor a maresia, a cio e a suor

As negras em filas
Vão carregando canastas de peixe
Que se acumula nos camiões frigoríficos

Os trabalhadores, de cara tisnada, olhar cansado
Mordem o pão, bebem um gole
De vinho do Ti Zé
Aquecendo-se a um braseiro
Puxando umas passas do cigarro

Um zumbido de azáfama
Invade o campo auditivo
E nesta orgia de cores,
Cheiros e sons o espírito levanta voo

Ó homens da noite,
Rudes, sulcados de rugas,
Mãos sempre prontas a afagar as coxas abertas
De alguma sereia nocturna presa no vosso cordame

O chão está juncado de escarros, de beatas e de papéis
Oferece uma consistência mole ao andar
Os tamancos, as rodas dos carros carregando caixotes
A abarrotar de pescada luzente,
Com os seus guinchos estridentes, o seu raspar
O surdo tropel da cavalgada nocturna

E o rio sempre mansamente ondeando
Palpando o cais de seus dedos aveludados
Vai deixando alguns cacilheiros, luzes tremeluzentes
Deslizar suavemente sob o olhar fixo das gaivotas,
Sentinelas sempre alerta
Sobre o cimo dos mastros dos barcos
Balouçando ao ritmo da canção do vento

As alforrecas melancólicas dizem adeus
No meio das ondas aquelas jovens virgens
Que derramam a sua frescura sobre a amurada

No caminho do mar
O navio vai convidando do seu casco amarelo
Os marujos a subirem ao som das sirenes

As escadas de pedra carcomida vão dar
A uma mole de frutas de odor capitoso
Que nos envolve, nos lança um pregão,
Que nos recorda os passos daquela varina
Descendo a calçada, ancas dengosas, as saias alevantando-se
E deixando entrever as pernas rijas

Bebei este Mundo
Penetrai neste grande arraial nocturno de olhos cerrados
Para melhor sentir o cheiro que vos sobe às narinas







sexta-feira, 13 de abril de 2018

EXCERTOS DE «ESTÓRIAS DE ESTAR E DE SER» [OBRAS DE MANUEL BANET]


* RECOLHA INÉDITA DE POEMAS DE 1982-1983

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SINAIS

(HOMENAGEM A FERNANDO PESSOA)

 

 

Os sinos da tua aldeia do Largo de S. Carlos ouviam-se e não te restava outro remédio senão o de escrever.

-          O corpo complexo esvai-se de raiva quando o fogo retida o canto

-          O segredo não se resolve na poça em torno do menino, deitado... Sabe-se lá se dormindo ou sonhando, pois seus olhos vazios azuis fitam o azul.

-          Não queria tornar a descer o rio do silêncio e, por isso, todas as portas cercadas            
      de palmas eram refúgio ou ancoradoiro do vapor da Real Companhia Britânica.
-          E... porém, há sempre uma esperança feita de estrelas, coroando a fronte de Ti em odes mordidas e rasgadas no ventre
-          Não guardei rancor às ovelhas que desciam o monte em manhãs de neblina ...
... Os cais socorriam o meu andar funâmbulo como se fossem ignorantes do morticínio das baleias
-          Há sempre um além .. o que não fica inscrito no momento ... o que sonhamos para nunca atingir ... o que pesa, soturno, os contornos de Aurora.
-          “Bum! Truz! Catrapuz!”
“Sou eu, o Gigante Adamastor! Sou eu, o Novo redentor da Pátria!
Hei de varrer as cobardias que enlutam as Quinas da Bandeira, ó única mortalha virginal!
Fujam aves de bico longo! Fujam!
Deixem-me mover a rápida locomotiva em perseguição do Século!
-          “Deixei o tabaco sobre a mesa, repare, não tanto por esquecimento, mas antes
      como marca ou sinal do fumo que me contém!”
....

E, todavia …

                 “I know not what tomorrow will bring”


OUTROS VENTOS

Outros ventos serão soprados, deslizando sobre a superfície tensa das águas.
Outros seres descerão das canoas, oferecendo frutos às imagens votivas da costa.
Outros estios, não os de outrora, os de sabor a laranja mordida nas sombras das casas, guardarão a memória bafienta dos sonhos.
Outros “outros”, anjos que sobem nos ramos do pinheiro, virão... olharão o vosso rosto, semblante em lágrimas, olharão os vossos pés e seu olhar morará para sempre em vossos corações.
Outros brincos de pérolas irão adornar o fundo das arcas carcomidas pelos vermes... ignorantes da certeza que roí a carne.
Outros finais de renda orvalhada tecidos serão, por obra de minha mente desperta e .. porque não... do eco quebradiço de vossas mãos.
Outros fumos lânguidos serão cozinhados nas montanhas de Machu Pichu.
Outros silêncios darão ao seu princípio o mágico despertar da evidência.
Outros sons habitarão a corda em que cantavam o hino ao hexâmero.
Outras palavras serão desenterradas do chão, em contraste com o saber já profanado.
Outros retornos dobrarão as esquinas das praças desertas e fincarão seus dedos nas estátuas de bronze.
Outros “eu” serão nascidos quando tocarem o fogo, esse simples facto de distância sem trégua do além.
Outros nós crescerão e serão desfeitos nas gargantas, libertando o júbilo e o rio correndo pelo canhão até ao oceano.




QUESTÃO DE ESTILO


Abordar as margens do estilo, sem prévio banho pelo complexo, é uma loucura. Assim, torna-se indispensável pôr a claro o que resta da questão:
-          “Quando se vão os ventos, que esperança nos fica?”
O estilo é sempre uma questão pessoal... pessoalíssima ... ou seja, cabem sempre mais uns dentro do Cânon.
No Cânon, o imóvel é Sacro. No Cânon, o movimento descreve um círculo. Imagem da perfeição. Negação e afirmação consentâneas do gesto. Mas o estilo vai correndo entre brumas, até que raia o Sol e o revela.
Neste ponto, a palavra “revela” deve ser entendida como sinónimo de “novo estar”, de “repetição outra” ... em suma: de “variação”.
A monotonia é um escolho no escopro do artista. Ele rompe a pedra, cujos fragmentos dispersos sob o domínio do Tempo, se vão agrupar algures no halo que envolve a escultura.

             .... E as “arcadas capitulares” do desejo obscurecem o traço.
             ... E os anjos metafísicos observam o trabalho do Templo.
             ... E os contornos do traço quebram-se em gorgolejar fremente.
             ... E o final não se tece em dádiva espontânea, antes é arrancado num urro de 
                 dor.

A tudo isto responde o Estilo:
“- Que tenho eu a ver com isso? – O meu caminho está traçado ... Eu sigo-o e não imagino sequer outro porvir!
-          Fiquem lá com os vossos deuses e venham bater á minha porta, sim, quando tiverem achado a medida do vosso desejo”

Não é em vão que se ouvem as histórias do vento na Acrópole e não é por capricho que me sento em frente ao Mar...

                                    É por Ser ...



COISAS

 Agora sei que nada me move.
... o que se me afigura passível de explicação:

             Primeiro, devemos dizer que de nada vale contemplar o voo das aves se a sua nomeação fizer com que esqueçamos este simples facto: os objectos, as coisas, são.
             Segundo, devemos considerar que o nosso olhar reflecte os contornos pela luz que recebe e quem diz luz, diz sobra.
             Terceiro, não precisamos de filosofar a evidência do nosso olhar porque sabemos que é subjectivo e – logo – fugaz.
             Quarto, de bem pouco nos custa cerrar os olhos do espírito ao que nos cerca, para que não restem dúvidas de que “só vemos o que queremos ver”.

Agora sei que as coisas se movem.

           ... O meu espírito está dentro da sua gruta e olha para o exterior:

 Se as ideias fossem anteriores às imagens, nunca saberíamos distinguir uma árvore, concreta, real, da ideia de árvore, abstracta, metafísica.

Se as imagens não fossem, por virtude do espírito, transponíveis em ideias, que cego poderia jamais aprender?

Se as coisas ficam quando me ausento de sua presença, então não posso dizer que não existem independentemente de mim próprio.


(Mas então... para que certeza caminho, se a dúvida se instala a par e passo do meu passeio através do mundo das coisas?)








ESTAR


Estar atento ao ouvido do vento.
Estar nas horas de se perder o tempo na memória do ser.
Estar por debaixo da pele ou estar em posição horizontal ... de qualquer forma, estar em si.
Entende mais o silêncio quem vence o medo de Estar.
Não colhe os frutos verdes quem está deitado sobre nuvens.
Quem colhe os frutos verdes em cima do soalho azul, pode vir em Novembro, Janeiro ou Abril ... mas estará sempre prestes a nascer.
Estar no berço de espuma, por cima do ruído, em troca de um poema.
Estar em configuração astral dos olhos pouco fixos.
Estar no entrecruzar do desejo, sem que suba da carne o relento sofredor.
Estar como maresia e como urze.
Estar em fiel dissonância com o resto do Capítulo Social.
Estar ouvindo as pancadas das artérias, ouvindo o fluxo do sopro, ouvindo o caminhar do cristal.
Estar no centro ou estar na periferia, em todo o lado por onde se caminha, estar centrado.
Estar para si, nos outros, estar nos outros para os outros.
Estar ausente, mas por amor do presente.
Estar na dádiva da flor ou do insecto.
Estar na estação de mover as mós do rio, de colher os frutos das árvores, de estancar a sede dos poços,
Estar a si mesmo
Estar a sua estanquidade
Estar o Ser.






  






quarta-feira, 11 de abril de 2018

[OBRAS DE MANUEL BANET] 2 CANÇÕES *


*Estas duas canções pertencem a uma recolha chamada «Tenção», de poemas escritos entre 1973 e 1978, aproximadamente. 


E QUE RESTA DO PASSADO...


Mote:

                    E que resta do passado,
                    Senão um sulco no olhar?

Glosa:

Já vivi, indiferente,
Nem de todo satisfeito,
Nem e todo descontente,
Só um pouco contrafeito.

É por igual que aceito
Este amplexo ardente
Da morte que tão fremente
Toma meu corpo desfeito

Já meu olhar não distingue
Se é do Sol no poente,
Esta luz que se extingue,
Se é da alma doente.

As tuas mãos que com jeito
Lavam as manchas de sangue
Não evitarão que vingue
A fera que roí meu peito.

Já sobre a espádua,
Não pelo muito pelejar,
Mas pela vida árdua,
Desejo por fim repousar.

Nada me pode já salvar
Pois se estou à míngua
De calor nesta frágua,
Deixa a morte me levar!

“E que resta do passado...”
Já se esvai como água,
Como pranto sussurrado
Em secreta mágoa...

- Que mais resta do lampejar
Após ter-se apagado
No horizonte rasgado,
“Senão um sulco no olhar?”




DAI-ME O MOTE

Mote:
Ó voz, dai-me o mote
Que a glosa, a farei eu
“Nesta solidão de breu
Acendei o archote!”

Glosas:

Quando – minha Mãe – à luz
Me destes, não sabias
Que a teu filho trazias
A dor humana na cruz

Quando – meu Amor – beijei
Teu peito, ignoravas
O homem a quem te davas
- Amor, tudo esbanjei!

Obstinado quis saber
O sabor amargoso
Do vinho e do gozo
Falso de quem o beber

Não temo o chicote,
Assumo o que é meu:
“Nesta solidão de breu
Acendei o archote!”



segunda-feira, 9 de abril de 2018

PAUL CRAIG ROBERTS - O COLAPSO DA HEGEMONIA dos EUA


Paul Craig Roberts explica o «sumo» do unilateralismo, a ideologia inerente à governação dos EUA,  desde a chegada dos neo-cons ao poder na era Bill Clinton.