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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

O ELOGIO DA PREGUIÇA

 Gostava de fazer o elogio da preguiça*, mas da verdadeira, da que não corresponde a uma fase de recuperação das forças, para depois continuar o trabalho, para se aguentar a rotina, para aí passar as melhores horas do dia a fazer aquilo que - interesse-nos, ou não - interessa sobretudo ao patrão. 

O problema ultrapassa a questão da duração do trabalho. O movimento operário, historicamente, lutava por uma delimitação, uma redução da contribuição do trabalhador em horas de trabalho, sem redução do salário. Não vejo isso como eticamente errado,  embora o «tempo de trabalho» seja uma aproximação em relação ao trabalho verdadeiro, sem aspas. 

Os economistas ao serviço do patronto inventaram essa coisa infernal da «produtividade», uma falácia** grosseira, pois o trabalhador não controla as condições concretas de sua produção de bens ou serviços. Estas condições dependem, em medida quase exclusiva, dos organizadores do trabalho, os gestores e empresários. 

 Mas, voltando ao assunto deste escrito, a questão dos períodos de ócio corresponderem a períodos de não-trabalho é mais outra falácia, pois o trabalhador deve atender a «n» coisas fora do horário quotidiano de trabalho e mesmo fora dos meses de trabalho, durante as férias. Ele tem de dedicar-se a múltiplas tarefas, indispensáveis para o seu funcionamento e o da sua família. O ócio não existe na vida das pessoas comuns, obrigadas a ganhar o sustento, seja pelo trabalho assalariado, ou por outra forma (profissão liberal, trabalho informal, etc.). 

As pessoas trabalham sobretudo para comprar o que precisam para viver. Alguns, conseguem pôr de lado para  adquirir pequenos extras, coisas (ou serviços), que não são realmente indispensáveis para refazer a sua capacidade de trabalho e perpetuar condições mínimas de vida, para si e sua família.

Mas o tempo de ócio verdadeiro, é a parte da vida que pode ser utilizada para um «hobby», uma prática desportiva, ou artística, ou de convívio com amigos... ou nada, só para preguiçar. 

A sociedade está doente de muitas maneiras; uma delas, é a percepção do tempo. Trabalhamos, para «ter tempo» e estarmos livres de obrigações; assim pensam as pessoas, em geral. Mas a equação está fundamentalmente falseada, pois o tempo, em si mesmo, não é coisa que se possa comprar, gastar ou consumir. Quanto ao trabalho humano, este sim, está sujeito a mercantilização para a grande maioria das pessoas.  

É debatível se o tempo deva ser considerado uma grandeza física, tal como a força, a energia ou o espaço.  No entanto, o tempo existe socialmente: No sentido psicológico - Na forma subjetiva como sentimos a passagem do tempo, em função das ações que realizamos num dado intervalo de tempo. Ou, no sentido económico - O tempo devotado a ganhar dinheiro, seja no trabalho assalariado ou noutra modalidade.

 Mas o tempo não tem substância, não é uma coisa. Porém, ele é objetivado, medido, dividido, repartido, ganho ou perdido... Note-se que, afinal, todas estas expressões são metáforas. Esta metaforização do tempo tornou-o «real» na vida e consciência das pessoas. As pessoas já não sabem funcionar doutro modo. A "civilização do trabalho" controla o espaço e o tempo das pessoas; controla este tempo, no sentido de determinar o que as pessoas podem fazer, num dado intervalo de tempo. 

A sociedade e os indivíduos tendem a considerar o tempo e o espaço de uma forma análoga. O «meu tempo»  é assumido como sendo minha propriedade privada, tal como a casa própria é o meu espaço privado. A forma de controlo mais eficaz, é a que não se faz notar. Assim, as pessoas costumam acreditar que dispõem do "seu tempo", tal como dispõem dos seus espaços privados. tempo de lazer verdadeiro, é aquele em que o indivíduo não se dedica a algo por motivos utilitários, como para obter dinheiro, ou estudar para obtenção dum diploma, etc., é a componente de ação individual que, potencialmente, escapa ao controlo social. Só esta fração de «tempo livre», é realmente livre. Alguém que preencha o seu chamado tempo livre, fazendo algo considerado útil, como cultivar a sua horta (por exemplo), está - na realidade - a reiterar a sua inserção na engrenagem produtiva.

O tempo de preguiça verdadeira é um tempo de prazer para o sujeito, sem necessidade, nem rotina ou dever. Realmente, uma janela de liberdade. Note-se que os ricos e poderosos em todos os tempos da História, eram os que podiam dedicar-se ao ócio. Tinham pessoal que trabalhava nas suas propriedades, que geria sua fortuna, que executava as tarefas domésticas, etc. 

Tanto no passado, como no presente, os indivíduos realmente criativos são os que conseguem tirar o melhor partido dos seus ócios. Por isso, se diz que a preguiça é amiga das artes, da criação artística, ou literária.

No século XIX surgiram, como resultado da escravização assalariada industrial,  movimentos para limitar o trabalho quotidiano: Nomeadamente, campanhas pelas 8 horas de trabalho. Segundo os sindicalistas da época, o trabalhador precisava de 8 horas para dormir, de 8 horas para as diversas tarefas do quotidiano, além das 8 horas de trabalho. Hoje em dia, este conceito de jornada laboral está a ser posto em causa, com graves consequências na vida de milhões de indivíduos, nas sociedades ditas desenvolvidas. 

A maioria dos oprimidos, sejam eles assalariados ou não, tem estado mais motivada pelas reivindicações laborais, quantitativas (mais salário, maior cobertura social, maior cobertura nos gastos de saúde, etc.), do que  pelas reivindicações qualitativas, de algum modo relacionadas com o tempo. Exemplos destas últimas: Dispor inteiramente de si próprio fora do horário de trabalho, ter período(s) de férias, usufruir da licença parental, etc.  

Somente pela transformação da sociedade, a robotização pode deixar de ser, exclusivamente, para aumento da produtividade e do lucro. Nessa altura, os avanços da robótica servirão para auxiliar na libertação do trabalho, livrando as pessoas dos trabalhos penosos, repetitivos, perigosos e sem criatividade. Se tal não ocorrer, a escravização será ainda mais acentuada do que agora.

Tem vindo a generalizar-se a prática de levar consigo trabalho para casa,  literalmente, invadindo a esfera do lar. Assim, em pleno século XXI, muitos trabalhadores tornaram-se escravos a tempo inteiro, 24/24h. A intensificação da exploração não é apenas coisa do Século XIX. Os efeitos sociais e na saúde dos trabalhadores têm sido terríveis, embora ocultados pela media ao serviço do poder. O aumento vertiginoso das neuroses e psicoses, está estreitamente correlacionada com a exploração acrescida a que os indivíduos estão sujeitos. 

Não sei durante quanto tempo vai continuar a intensificação da exploração, que se constata atualmente, em especial nas sociedades ditas afluentes: Multiplicam-se os trabalhadores «flexíveis», ou seja, disponíveis para trabalhar a qualquer hora do dia e em qualquer dia da semana, sem limites, ao capricho da entidade patronal. É uma forma de sobre-exploração cada vez mais comum em empresas e setores das sociedades digitalizadas, desreguladas e em declínio, do neoliberalismo. 

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* Expressão semelhante ao título do livro de Paul Lafargue, «Le droit à la paresse», mas o que escrevo é substancialmente diferente do conteúdo desta obra.

** Esta produtividade, tomada como critério exclusivo para avaliar todo o trabalho, foi criticada por Bertrand Russell, entre outros. 



domingo, 14 de novembro de 2021

BRINCANDO COM O FOGO, ou como se liberta o génio mau da inflação

 É da natureza dos bancos centrais, em especial da FED, estarem sempre numa posição inadequada, contra-cíclica, em relação à economia. Por exemplo, agora estão com um atraso de muitos meses a tentar a viragem na política de «dinheiro fácil» através de «tapering», que é a desaceleração da impressão monetária, mas não a supressão da mesma. Esta impressão monetária não resolve nenhum problema real, verdadeiro da economia. Com efeito, o aumento da massa monetária total, ou em circulação, vai estimular a perceção dos intervenientes nos mercados, de que há maior riqueza, maior disponibilidade para gastar. Mas não se produziram mais bens nem serviços, não houve acréscimo de autêntica riqueza. É um mecanismo essencialmente psicológico, como, aliás, são de base psicológica muitas das movimentações que ocorrem nas economias. 

A razão pela qual os bancos centrais, em especial os «ocidentais», fazem sistemáticos erros de avaliação da situação económica mundial, é que funcionam com modelos lineares. Baseiam-se nestes modelos e numa visão teórica neokeynesiana. Assim projetam eles as tendências e baseiam o fundamental das suas decisões. O problema com isto, é que tais projeções não colam com a realidade. Se a economia fosse uma verdadeira ciência (não é!), estaria sempre a reavaliar a validade de seus modelos, de suas projeções, incluindo os fundamentos e pressupostos sobre os quais se construíram tais modelos e projeções. 

A realidade é outra: A FED e todos os bancos centrais ocidentais, que lhes seguem as passadas, vão dar sempre prioridade aos conceitos teóricos, sobre a realidade dos factos no terreno. Em todas as crises, especialmente as mais graves,  pode-se notar esse desfasamento. Isso significa que os bancos centrais, em vez de criarem condições para o retorno à normalidade, suas intervenções têm o efeito oposto, o de aumentar a amplitude dos ciclos económicos. 

A recente afirmação de Jerome Powell, de que o surto de inflação era transitório e que, portanto, não haveria nada de fundamental a mudar no rumo decidido pela FED, ilustra claramente a inadequação da política da FED, a qual só pode ter por base uma inadequada visão da realidade, ela própria devida a modelos não apropriados, baseados em teorias parciais, ou defeituosas no fundamental. 

Veja como Mohamed El Erian, numa curta entrevista AQUI, destrói a narrativa emanada da FED e do seu presidente, ao dizer que esta crise foi logo caracterizada por inflação devida a escassez da oferta. Referia as disrupções dos mercados de matérias-primas, bens acabados e, mesmo, de mão-de-obra, resultantes da crise estrutural e de conjuntura - os lockdown a pretexto do COVID - que a exacerbou. Os elementos que El Erian refere estavam patentes, não eram elementos ocultos que somente podiam ser detetados após muitos meses. 

Porém, o que a FED e outros bancos centrais fizeram, com a sua impressão monetária levada ao extremo, foi exacerbar o problema, criando um efeito inflacionário do lado da procura, além e por cima do existente, devido à escassez na oferta. 

A inundação de liquidez nos mercados não veio salvar coisa nenhuma na economia produtiva. Veio apenas insuflar ainda mais as já muito grandes bolhas nas bolsas e em todos os ativos. 

Além disso, houve um súbito aumento de dinheiro disponível, na economia do dia-a-dia, com o dinheiro distribuído às pessoas para compensar as paragens de trabalho forçadas («helicopter-money»). Foi uma medida tornada necessária pelos lockdown, mas os lockdown não eram necessários! 


Assim se destapou a lâmpada de Aladino e deixou-se o génio malévolo da inflação surgir e crescer, com o risco de tudo devorar na onda hiperinflacionária.

A conclusão a que chego é que os bancos centrais são estruturas de poder que se têm pautado por uma política claramente favorável aos muito ricos, os multibilionários, embora tenham o discurso de cuidar da economia para o bem do maior número. 

Isto não pode surpreender alguém convicto da natureza depredadora, parasitária do capitalismo de hoje, com as enormes disparidades de riqueza, logo de poder. 

O diálogo AQUI entre Slavoj Zizek e Yanis Varoufakis demonstra-o: Não há capitalismo, no sentido clássico. Há um domínio dos muito poderosos donos de plataformas (Facebook, Amazon, Google, etc.) que possuem literalmente o campo todo, o chamado «mercado». Este deixou de ser propriamente um mercado, no sentido clássico do termo. Por isso, Varoufakis utiliza a expressão «tecno-feudalismo», outros usam outras expressões, mas vem a dar no mesmo: A realidade é que estamos numa nova era, onde nada é favorável aos pequenos capitalistas e aos trabalhadores, onde tudo está nas mãos de corporações gigantes, monopólios ou oligopólios, que tudo controlam.