Uma apostila é um pequeno texto acrescentado a uma obra. Decidi chamar assim os textos que submeto ao vosso olhar, pois eles se enquadram dentro do espírito de várias produções minhas anteriores sem, no entanto, possuírem unidade autónoma.
São textos em prosa ou em verso, que me apeteceu escrever em vários momentos. São também comentários para mim próprio. Cada um deles sinaliza meu estado de espírito ao longo do ano de 2025.
Esta pequena recolha deve, portanto, ficar como «Apostila» das anteriores OPUS I, II e III que agrupam a minha produção poética no Blog «Manuel Banet, Ele Próprio» de 2016, até final de 2024. Outras recolhas de poesia inéditas anteriores ao ano de 2016 ficam por divulgar, à espera que algum editor se interesse por elas.
PERANTE OS TEMPOS DE ESTUPIDEZ
Em vez de prefácio
Desesperadamente procuro o sentido; não procuro por pensar que o irei encontrar, mas por impulso irracional, no que existe de humano, no âmago do meu ser.
Não sei se isto é defeito ou virtude, sinceramente. Mas, de facto, talvez seja defeito, pois sofro e nada ganho, nem meu sofrimento a outros aproveita.
Gostava de ser como a árvore ou como o rio que se estende sem perguntar para onde corre, sem se importar com as pedras nas margens.
Mas não sou árvore, nem rio, nem pedra. Gostava de ser animal e sentir. E meu saber ser instinto, e minha vida ser instantes sucessivos.
Mas também não sou o animal, simples produto da Natureza, nela imerso e dela participante. Sou homem, por isso sofro, pois vejo a degradação da espécie e o sofrimento de muitos, sob a opressão sádica e violenta de alguns.
Mas como posso fazer face a esta monstruosidade? - Deus não tem plano nenhum para a nossa espécie, nem para todas as outras. Esta é a conclusão a que cheguei, por agora.
Confortável ou não, esta conclusão parece-me o princípio de racionalidade neste tempo de violência, de desprezo pelas leis dos homens e da Natureza, do triunfo da morte, a par da estupidez e da vaidade...
FORTUNA
Poderia pôr a teus pés, Deusa gloriosa,
Cestas de fruta e flores odoríferas
Das mais exóticas espécies
Que seja possível alcançar.
E poderia declamar a teu ouvido
Versos em rimas obscuras, ofegantes
Sem outra lógica que a do sonhar
Mas tudo em vão seria, Fortuna
Tens ouvidos e cabeça de bronze
Teu gesto amplo ficou para sempre
Parado, na suspensa promessa...
Para lá da Tua casa, velejo em mar
Denso e fluido, no ocaso demente
Enfunando as velas em tributo
À sombra que traça o Sol.
Fortuna seja nome de barco
Destino humano sempre igual.
O MUNDO
O mundo está fora de mim, no sentido trivial
Mas também se pode dizer que ele penetra
Em todos os poros da minha pele,
Pelo ar que respiro, pela comida que ingiro
Pela água e pelo vinho,
Pelas letras, os sons e os cheiros
Ele penetra por todos os canais
Dos sentidos.
Eu não recuso este fluxo constante
De sensações.
Porém, ficar cativo,
É outra coisa; estar cativo das coisas materiais
Ou até das ideias, das que se originam
Nas agitações fúteis, sempre procurando
O novo; como se, perante a novidade,
Devêssemos baixar a cabeça, curvar a espinha!
Se quiseres argumentar que eu «estou fora do mundo»
Tens razão, num certo sentido:
No sentido antigo e caído em desuso
da palavra «mundo»...
Como «mundano» ou «mundanidade»...
Se não sou deste mundo, estou contente
Estou mais aconchegado no mundo
Da infância, das recordações
Dos momentos felizes, da pesquisa
Científica e intelectual,
Do prazer de conversar com iguais...
Sim, não é com naturalidade, nem com desembaraço
Que «falo» através de telefones móveis, ou de teclados
Digitando palavras, como agora...
Sou realmente antiquado e não tenho complexos!
Sou capaz de compreender os mais jovens,
Mas duvido que a recíproca seja verdadeira.
Estou fora do mundo e ele está fora de mim.
Sim, do mundo fútil, coisificado e destruidor
Do que há de mais humano na humanidade,
Estou fora!
Por muito que vos custe, pensai de outro modo;
Já será um princípio de emancipação.
Não pretendo que pensem como eu;
Mas pensem!
Com alma, espírito e todo o ser,
Libertos da prisão doirada da tecnologia
Que ambiciona encerrar nossas mentes.
Às Palavras Renunciei
Gostava de construir novas palavras,
Delas fazer um vocabulário
Só meu, para meus leitores
Que pudesse partilhar
Como num dicionário
Mas sem o estafado sentido
Só me acodem palavras gastas
Daquelas que são ecoadas
Em inúmeras canções
De amor ou desesperança
Lançadas ao desbarato
Enfim, palavras chãs
Se ao menos pudesse
Com elas construir
Algo novo, inaudito
Seria o triunfo do som
Sobre a gramática fria
A síntese genial
Então, como bandeira
Envolveria teu corpo
De cores, sons e sentidos
Na imperfeita obra
Que o poema desvela
E toda a nudez revela
Pois renunciei ser
O mago dos versos
A Lua não me aquece
Prefiro o forte abraço
Do vento oceânico
No meu corpo tenso
Colhi todos os perfumes,
Cores e sabores da vida
Como jardim de mistérios
Serei mais qu' uma ave
Improvisando seu canto
Em harmonia perfeita?
Somos frutos tardios
De jardins tranquilos
Nem mais, nem menos
Nenhuma pretensão
Tivemos de profetizar
A luz que se esvai
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Murtal, 05 de Junho 2025
GUERRAS SEM FIM
Gostava de voar para um país distante,
Muito mais distante, que a tecnologia atual
Nos pode transportar. Aí, pisaria o solo
e abraçaria as gentes; mas não teria ilusões:
Este país seria como os outros, apenas
Poupado aos horrores deste século moderno.
Não será algo assim que muitos de nós procuramos
Atingir? - O paraíso terreal ou refúgio
Contra a fealdade, a cobardia e crueldade
Dos nossos contemporâneos?
Estamos à procura do que não existe,
De uma utopia no sentido estricto
Não estamos porém errados, na essência:
É o nosso coração humano que nos diz
Outros procuram aconchego dentro da tribo
Dentro da família, do grupo a que pertencem
Não os critico pelo desejo de auto-preservação
Embora seja irrisório, neste Mundo em guerra
A guerra não poupa as simples gentes
Fustiga todos, todos nós somos sem-abrigo
Só os sanguinários poderosos têm meios;
Eles sabem-no e usam-se disso!
O Barco Encalhado
Navegando ao longo de costa rochosa, avistei um dia os escombros dum barco encalhado.
Perguntei ao piloto do meu navio se tivera notícia dalgum naufrágio, nos tempos mais recentes.
Ao que ele me respondeu: "Não, Senhor. Este deve ter encalhado há bastante tempo."
O casco de madeira apodrecida, negra, era colonizado por lapas e mexilhões; carangejos pequenos corriam à superfície.
A carcaça em decomposição ainda exibia, no centro, um fragmento de mastro; como um braço erguido para o céu .
A vida borbulhava nos seus destroços, como num cadáver de cetáceo morto que dera à costa.
Este, lentamente, é descarnado pelas brigadas de criaturas oceânicas até nada mais restar senão o esqueleto.
A visão daquele esquife imóvel no meio de rochedos bravios, lentamente devorado pelo exército voraz dos mares...
Fez-me pensar...
A cena apareceu-me como perfeita analogia das construções intelectuais que navegam na sociedade, como navios nos oceanos.
As construções defeituosas não vogam até muito longe. As correntes arrastam-nas, metem água e acabam por naufragar!
Depois, seus destroços presos nos rochedos, sob as furiosas vagas, ficam desconjuntados, irreconhecíveis.
Por fim, o que resta do navio, desfaz-se; só alguns pedaços a boiar, ou nem isso. O que sobra, vai para as profundezas.
Ninguém advinha que ali se ergueu um orgulhoso navio. Da praia ao horizonte, o mar permanece tão vazio como no começo do Mundo.
«A GRANDE ILUSÃO» - PARTE II
Há cerca de 12 anos, escrevi um extenso ensaio intitulado «A Grande Ilusão». Este, está inserido neste blog, embora o seu aparecimento seja anterior à existência do blog.
Mas, o que me importa mais agora é escrever uma espécie de apêndice ou postfácio, enfatizando aspectos da Grande Ilusão que não eram visíveis, na altura, pelo menos de forma representativa. Quero referir-me à persistente ilusão dos homens dominarem a Natureza, de serem eles a ditarem as regras, a imporem as leis e julgarem que estão no cerne do funcionamento dessa mesma Natureza.
E digo que isto cabe perfeitamente sob o mesmo título, pois é uma tendência generalizada e os mais inteligentes caem na armadilha com maior facilidade ainda, que os estúpidos e os ignorantes.
Por isso mesmo, se verifica um tipo especial de estupidez, «a estupidez dos inteligentes», em que a sofisticação do raciocínio, a riqueza da argumentação, a erudição medida pelas numerosas referências, tudo isso junto, produz um resultado prático irrisório, ou manifestamente inoperante: Traduz-se numa incapacidade patológica de apreensão do real.
Porém, é essa mesma estupidez dos inteligentes, que tem maiores hipóteses de fazer carreira, de ter sucesso, numa sociedade plena de ilusões, incapaz de distinguir a realidade, da projecção da mente, sem qualquer outro critério de «verdade», que não seja essa filosófica nulidade chamada estatística.
A verdade não é nem pode ser uma questão estatística. Se todos errarem menos um, é este que tem razão, não importa quantos disserem que é esse indivíduo que está enganado. Em filosofia, o número não faz a prova e, sobretudo, não faz a razão. Verdades tão evidentes como esta, temos com frequência de voltar a enunciá-las, a reafirmá-las no nosso espírito, para mantermos a calma e a força da razão no meio do desvario.
A ilusão mais perniciosa - ao fim e ao cabo - talvez seja a de quem se «colocar no lugar de Deus». Este facto mantém-se válido quer acredites em Deus, quer não: É completamente independente da nossa posição em relação à existência da Divindade Cósmica, pois postula a impossibilidade ab initio da posição peculiar dos indivíduos que pensam tudo saber, capazes de tudo equacionar, de terem solução para tudo e - se lhes for fornecido o que exigem - serem capazes de tudo fazer. Estamos aqui perante um delírio agudo ou crónico de inflação do ego, uma extrema confusão entre o limitado e falível, efémero e fraco, ser humano e aquilo que ele consegue se aperceber do Universo, na sua limitadíssima visão do mesmo.
Mas, são esses indivíduos, inflados no seu narcisismo, que têm a maior probabilidade de arrastar as massas, as quais estão sempre em adoração do que elas consideram ser um «génio». As massas idólatras de super-homens e super-mulheres de pacotilha, são capazes de fazer as maiores loucuras, acreditar nos maiores absurdos, sendo estas crenças tanto mais fanaticamente defendidas, quanto mais absurdas forem.
Num mundo assim, é muito difícil ser-se racional, um pouco céptico e comedido. Num mundo assim, o sábio é frequentemente assimilado ao louco, ou ainda pior, ao dissidente. O seu destino não é invejável, pois vai do «gulag» para uns, até à fogueira, para outros. E porquê tanto ódio contra pessoas que pensam diferentemente da maioria? - Será que a grande maioria pensa, ou apenas repete slogans, lugares-comuns erigidos em grandes visões e todas as parafrenálias das ideologias? Se a maioria fosse composta por pessoas que pensam, elas não teriam problemas com os que têm um pensamento outro, dissidente. As suas capacidades cognitivas até ficariam estimuladas perante um pensamento dissidente e nunca lhes passaria pela cabeça «contrariar» uma teoria com uma sentença de morte ou de prisão, ou um linchamento.
Os ditadores e demagogos de todas as espécies e variedades, sabem perfeitamente que uma maioria da espécie humana não pensa. Sabem que não é difícil enfiar-lhes na cabeça uma série de automatismos mentais, como aliás a «educação» se esmera a fazer, em todas as nações, de todos os continentes.
Com as técnicas de condicionamento da psique, podem ver a massa das gentes, (no sentido próprio, por vezes...) executar os que se atrevem a não acatar, os que não se submetem à «verdade» da multidão furiosa.
Estes comportamentos surgem, não espontaneamente, mas por condicionamento, aberto ou disfarçado, em muitas sociedades. Muitos fanatismos são completamente «reversíveis», no sentido em que se pode mudar-lhe etiquetas, sinais, protagonistas, mas continuam a ser reflexos pavlovianos. Trata-se, porém, de um ser humano na aparência, mas que o medo, o desejo de pertença, a imaturidade, fez submeter-se ao que lhe aponta um chefe.
O engodo da «IA», tem servido para fazer passar as mais extremadas posições e manipulação dos factos e isto, ao bel prazer dos multimilionários que possuem as empresas de «IA». Nada deste extremismo induzido surge ao olhar do público como insano, como totalmente repelente, etc. porque foi emitido (supostamente) por um algorítmo «IA» o qual teria a virtude de «pensar mais e melhor» que a mente humana.
Junta-se a ignorância do que sejam estas máquinas informáticas e os algorítmos, com o complexo de inferioridade frente àquilo que não se compreende, que se julga demasiado complexo.
O resultado é uma regressão, não apenas à infância, como ao «estado larvar»: Os indivíduos estão dentro de casulos, são alimentados e mantidos, consumindo o que os mantém em vida, mas uma vida do tipo zombie...
Assim, a redução do número de efetivos nas diversas populações pode prosseguir (com vários métodos), até ao limite que os Senhores desejarem. O limite para a redução dos efetivos, é que deverá haver um número suficiente de escravos para manutenção do mundo de conforto dos Senhores.
Quanto aos escravos, em breve, nem terão a capacidade de reprodução. Esta deixará de estar dependente de um «ato animal»; será um complexo de operações de tecnologia biológica. Logicamente, as pessoas «vulgares» (a plebe, os escravos), serão produzidas em série, por clonagem. Assim, por uma técnica muito simples, produzem-se «seres sem defeitos». Estes terão sua recompensa num pouco de comida, um mísero abrigo e serão «processados» e substituídos quando sua produtividade baixar.
Se olharmos retrospectivamente, compreendemos que muitos fenómenos sociais, muitas situações «aberrantes» até, já se podiam delinear, pois despontavam nas sociedades onde ocorreram, mas as pessoas contemporâneas desses fenómenos não deram por nada, aparentemente. Embora, de facto, haja sempre algumas pessoas que não se deixam iludir e tentam dar o alerta, este nunca é tomado a sério ou pior, é considerado subversivo, vindo dos inimigos da sociedade.
É falso pensarmos que não existe mais religião, baseados na premissa errada de que as pessoas abandonaram os respectivos templos. Há uma religião e está mais viva do que nunca, embora as pessoas não consigam identificá-la como tal. Por um lado, é transversal às diversas religiões, tradicionalmente prevalecentes. Por outro, ela flui pelos interstícios da sociedade, confundindo-se com as atividades mais triviais e indispensáveis no dia-a-dia. Não é religião que erga templos explícitos para culto dos fiéis. No entanto, o seu culto é muito divulgado e tem um número de fiéis certamente maioritário, em relação a todas as outras. Falo da religião do dinheiro.
No passado, ela existia também, diga-se: mas era temperada por outras coisas, como seja uma moral (religiosa, ou com raízes religiosas), que prescrevia o que se devia fazer ou não fazer, além de toda uma moldura de valores, de virtudes, às quais os devotos deveriam se conformar. Ou, pelo menos, na aparência.
Agora, o fator mais importante de ascenção social é o dinheiro. Não importa como foi obtido, nem como é gasto... É a sua acumulação que provoca «respeito religioso», da parte da multidão. Assim, ser rico - muito rico, na verdade - tornou-se virtude. Claro que as pessoas sempre admiraram e cobiçaram os ricos, no passado. Porém, a passagem do dinheiro a culto religioso, fez dos detentores do capital, simultâneamente, sacerdotes, magos, semi-deuses...
Bem podemos dizer e demonstrar que por este andar, a Terra fica esgotada, que os equilíbrios estão rompidos, que a diversidade biológica se vai reduzindo perigosamente, que ecossistemas estão a entrar em ruptura, que o esgotamento dos recursos ou sua contaminação vão tornar muito difícil a vida das gerações vindouras. Não, as pessoas estão viradas exclusivamente para «ganharem mais», para consumir agora, aquilo que antes estava acima de suas posses, e só conseguem equacionar a felicidade ou o sucesso dentro de sua comunidade, com seu enriquecimento.
Não procurei ser futurólogo no texto inicial de «A Grande Ilusão». Aqui, nesta segunda parte, atrevi-me a descrever tendências, que já se podem ver despontar no presente e têm já uma repercussão, mas que não se tornaram ainda, lugares-comuns.
MAIS UM DEVANEIO
Como vivem as pessoas
São iguais a ti e a mim
Mas elas parecem movidas
Por estranhos impulsos
Movia-me num sonho
Daqueles em que a pessoa
Vive como na realidade
Onde tudo acontece
Eu falava com as pessoas
E elas respondiam-me
Naturalmente, sem mistério
O sonho, denso, parecia real
Tudo se movia no quotidiano
Nem estranho, nem encantado,
Somente a banalíssima
Vida que todos nós tecemos
Porém, algo, não sei bem o quê,
Apoderou-se do meu espírito,
Quis rasgar o véu ilusório
Daquela realidade fictícia
Ao abrir uma porta, recebi
O fôlego poderoso do espaço
E do tempo, das cores e dos sons
Dos movimentos das ondas
... Das falas entrecruzadas
Num mercado ao ar livre
Do brouhaha indistinto num café,
Do caminhar da sombra...
Senti então um imenso desgosto
Como se tivesse abandonado
O verdadeiro mundo
Como se ele não fosse sonhado
Durante algum tempo senti
Nostalgia dos meus devaneios
Mas, por fim fiquei em paz
Com o mundo e o meu ser:
Tudo o que existe é sonho
Sonhado. Podemos dele sair
Para logo entrar noutro.
A realidade é um efeito
Ela tem o poder da ilusão
Tudo o que se vê acordado
É uma representação
Nada mais, um teatro
Se nos conformamos
Com o nosso papel,
Seremos bons atores
Na peça chamada Universo
UM HOMEM
Nem alto, nem baixo
Nem Adonis, nem Herói
Mediano em tudo, vulgar
Esse homem que desprezais
Foi quem arriscou a vida
Para salvar muitas outras
Num ato sem dramatismo
Fez o que era preciso
Não se vangloriou,
Nem tentou aproveitar-se.
- Quantos, homens e mulheres
Cumpriram seu destino
Sabendo o que os esperava?
SE EU PUDESSE VOAR
O REMANESCENTE SÃO PALAVRAS
Deixa a ridícula miragem
De sermos perpétuos, eternos
Não desprezes um suspiro
Um olhar, ou gesto inacabado
Sermos aquilo que somos
Parece o mais difícil, afinal:
Neste mundo, enganados somos
Pelos espelhos da nossa vaidade
Afinal, a felicidade está no instante,
No efémero, no real ao nosso alcance;
Nesta curvatura do espaço-tempo
Onde cegos e surdos caminhamos
Mas ouvir os sons naturais,
Apreciar uma paisagem intacta
Sem «monumentos» que plantaram
Os humanos na sua ébria vaidade
Colher tais impressões não cansa:
Levo-as para casa, nelas renovo
A misteriosa e potente força
Que a Vida nos oferece
Fecho os olhos e vejo a realidade
Transmutada em sonho único
Que nenhum artifício captaria
Porque o sonho é meu guia
SABEREI...?
Saberei eu... sorrir?
Quando, vestidos de branco
Partilharmos instantes
Poucos, dum último olhar
Saberemos nós guardar
Intimidade num hospital
Indústria de morte asseptizada
Que nos vê como corpos?
Saberei eu ... no momento
Da separação, que seja
Realmente a nova etapa
De nosso amor?
Amor, que seja eu
O primeiro a partir.
Deixa-me adormecer
Sob teu carinhoso olhar
Não consigo viver sem ti
Não por ter necessidades
De qualquer espécie
No vazio da tua ausência
Mas, não saberei
Viver sem ti
Tão simples como isso;
Sem ti, nada faz sentido
Eu não temo a morte,
Mas tua ausência
Porque, agora sei,
És meu fluído vital
Deixa-me crer que a morte
Seja, afinal, a transição.
Pois, Amor, se assim for
Não terei queixumes
Não precisarei de nada
Sabendo que nos veremos
De novo noutra dimensão
As almas emparelhadas
PROSA POÉTICA
NOVE SENTENÇAS
ENQUANTO...
Enquanto a música fluir no ar
e para os meus ouvidos
e nos circuitos neuronais
o meu cérebro poderá nutrir-se
de surpresa, fantasia e liberdade;
Enquanto intérpretes fizerem reviver
as ideias de compositores
nos seus instrumentos
e vibrar as cordas
das sensíveis almas;
Enquanto houver
aves selvagens
e cantos de pastores
que os cães reconhecem;
Enquanto a vida florescer
a cada manhã de sol
erguendo os rostos
para o calor suave ...
haverá razões para estar
aqui , ser testemunho
das coisas belas
e efémeras que vejo
e recolho no meu ser.
APOSTA
Sempre tive grande relutância
Em apostar nalguma coisa
Ou acontecimento. Pensava:
Se podes calcular a probabilidade
Dessa coisa, apostar é fútil,
E se não podes, é suicidário.
Mas hoje declaro que aposto.
Aposto pela vida, face ao caos
Face à extinção, ao domínio
Absoluto, incontroverso;
Face à capitulação, também
À fraqueza dupla do querer.
Aqueles que hesitam, calculam
Mas calculam mal; o cálculo
É simples: Escolhes lutar
Ou sofrer a humilhação
Antes de morreres esmagado.
Só os fracos hesitariam
Porque quem luta, quem se ergue
Usando seus meios e inteligência
Está a ganhar a partida;
Se ganhou, salvou-se e salvou-nos
De uma secular servidão.
Se perdeu, não perdeu... pois
A sua semente vingará.
Se não luta, é certo:
Perderá de certeza.
Por isso, aposto que o tempo
Trará uma nova geração
Bastante mais comprometida
Perante a urgência
De salvar a humanidade
De quem pretende dominá-la.
Se eles fizerem esta aposta
Terão meu apoio e participação
Na medida em que puder ser útil
A esperança reside no humano
Que subsiste em cada um.
Que este ascenda à consciência,
É A MINHA APOSTA
Murtal, Parede
A 5 de Dezembro de 2025
Nas neves sujas de dezembro
Nas neves sujas de Dezembro
Corpos caídos, manchas escuras
Ao cair da noite, o uivar de lobos
Eram jovens ou menos jovens
Tinham esperança de viver
Corpos imóveis, apodrecendo
Os estrondos do canhão
Os clarões dos impactos
Os céus riscados de fogo
Nada os impressiona.
Suas faces azuladas
Serenas, os olhares vazios
As estrelas já não vêem
A rígidez dos músculos
Induziu posturas insólitas
Aos corpos gélidos
Serão enterrados
Mais tarde, com missa
Cemitério e choro de Mães
Esposas ou noivas,
Discursos solenes,
Placas em memória,
Condecorações póstumas...
Mas nada pode curar
A dor da ausência
Nem os corpos e almas
Torturados, humilhados
Para este inglório fim.