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quinta-feira, 17 de outubro de 2024

SERÁ QUE O CAPITALISMO ESTÁ A MORRER?




Ouvem-se vozes anunciando a morte próxima do capitalismo. Mas, o que entendem por "capitalismo"?

Do meu ponto de vista, o capitalismo não é uma "forma de economia" somente, é sobretudo um "modo de produção". É o capitalismo, enquanto modo de produção, que estabelece a relação dos homens com as mercadorias e define as relações hierárquicas entre eles, decorrentes da posição de cada um no processo de produção das referidas mercadorias. A detenção privada dos meios de produção não pode ser critério suficiente para caracterizar o modo capitalista de produção. Basta ver que, nos modos de produção esclavagista e feudal, as respetivas classes dominantes possuíam a quase totalidade dos meios produtivos.

Uma das notáveis características do capitalismo, é que os que detêm a propriedade dos meios e controlam a produção, acumulam poder sob forma de dinheiro. O dinheiro e a inteira panóplia dos veículos financeiros, deixaram de ser apenas meios auxiliares nas trocas, passaram a ser a forma preferida de acumulação de capital. Preferida, em relação às propriedades fundiária, imobiliária, ou industrial ... O próprio capital financeiro passou a controlar as outras formas de capital.
O trabalho assalariado, historicamente, veio substituir outras formas de exploração. Mas, anteriormente, as classes dominantes exploravam o trabalho do escravo e depois, do servo. Também, através de rendas, em produtos ou em dinheiro, beneficiavam dos frutos do trabalho do camponês, do artesão e do comerciante.
Dizer que a instauração do salariato foi um progresso, ou até, um passo para a emancipação do trabalho, é uma falácia: A relação salarial foi sempre fortemente assimétrica, até aos dias de hoje. Proporciona um controlo quase absoluto do trabalhador assalariado pelo empregador.
Se certas formas de exploração do trabalho se encontram hoje em declínio, suplantadas por outras, isto tem relação direta com mutações nos processos produtivos, e não com o suposto "fim" do sistema capitalista.

A derrocada do capitalismo pode advir de muitas maneiras, numa forma ou noutra de autodestruição: Por exemplo, pela externalização dos custos ambientais, causando irreversível degradação do ambiente em todo o planeta; pode resultar de uma guerra nuclear generalizada; pode advir de confrontos no seio das sociedades, sem que ocorra revolução: Uma série de revoltas, guerras civis, golpes de Estado, terminam, geralmente, em maior repressão pelas polícias e forças armadas e pela conversão das democracias formais em regimes autoritários.
Tudo isto tem possibilidade de ocorrer. Pode acontecer em várias combinações, ou em simultâneo. Mas, a «Grande Revolução», nos moldes em que os românticos revolucionários imaginam ... só acontecerá nas suas cabeças, impregnadas de narrativas fantasiadas do passado.

O capitalismo não está moribundo; porém está em crise. Reconhecer-se isto, não equivale a dizer que esta crise seja a derradeira. 
Uma característica do modo de produção capitalista, é de se autodestruir parcialmente e periodicamente para, num novo ciclo de crescimento, aproveitar as dinâmicas de reconstrução: Isto traduz-se por lucros, resultantes da intensificada exploração dos humanos e dos recursos naturais, por um lado; e por outro, por maior controlo exercido pela classe dirigente, sobre as restantes classes.

Qual é o país onde o capital está a fazer maiores lucros?
- Todos sabemos que é a China. O facto de uma casta controlar este país com mão-de-ferro, não significará que ela própria beneficia, direta e indiretamente, dos privilégios do poder? - Se assim não fosse, seria caso inédito em toda a História! - Não, o que acontece é que ela está adiantada, em relação às oligarquias do Ocidente, nomeadamente, nos métodos de controlo social.
A experiência em grande escala do COVID, serviu para o poder - na China e depois, no resto do mundo - testar sua capacidade em submeter as massas. 
Os processos de controlo social ultimamente postos em prática em países de "democracia liberal", foram copiados da China, onde já estavam sendo praticados.
Pode-se argumentar, sem sofisma, que a organização do capitalismo na China atingiu um nível superior de eficiência. Esta eficiência permitiu que haja uma real melhoria no nível de vida das massas laboriosas chinesas, não há dúvida sobre isso. 
De certa maneira, ocorreu algo semelhante nos EUA, durante a transição do séc. XIX para o séc. XX; e na Europa Ocidental, nos 30 anos após a IIª Guerra Mundial.
Observa-se hoje, na China, a vigorosa expressão da nova forma* de capitalismo: Nesta, a sociedade é dirigida por um coletivo autoritário, que decide sobre todos os domínios, desde os setores exportadores, até às indústrias de defesa. Quanto aos capitalistas, se eles quiserem prosperar, terão de obedecer às diretrizes estatais e receberão proteção e favorecimento Estado, controlado pela casta no poder. 
Na China de hoje, não apenas cerca de 800 milhões de pessoas saíram da pobreza absoluta; também se regista o maior crescimento em novos multimilionários, anualmente.
Curiosamente, a China começou a desenvolver-se, quando deixou de praticar a ortodoxia marxista-leninista (e maoista) e iniciou a construção dum capitalismo industrial, moderno e eficaz, com total pragmatismo. Aproveitou os capitais e o «know-how» das grandes firmas capitalistas ocidentais, que deslocaram para a China parte das suas instalações fabris. 
É escusado dizer, a China «comunista» soube tirar partido da mão-de-obra. Foi graças à sua elevada produtividade, que se acumulou uma imensa riqueza nas mãos dos dignitários do regime, dos grandes capitalistas seus protegidos e das empresas multinacionais.
Na China, a extração de lucro pelos capitalistas (nacionais ou estrangeiros) está garantida pelo aparelho administrativo e político do Estado. Por outro lado, a classe operária tem aceitado esta situação, pois seu bem-estar tem melhorado de ano para ano.
A força deste sistema produtivo, que não tem nada de socialismo, advém de fatores como a importação de capitais, o facto de ignorar o direito de patentes, na fase inicial da industrialização, a penetração nos mercados mundiais, graças a preços imbatíveis, os quais foram possíveis, tanto pelos baixos salários praticados, como pelo efeito de  escala. O tamanho do território chinês e da sua população, permitem produzir grandes quantidades de bens, com menor custo que noutros  países competidores.
Existem, porém, fragilidades: Se houver marasmo ou menor crescimento económico, é impossível satisfazer a expectativa da população em melhorar suas condições de vida. Por isso, os dirigentes chineses têm grande preocupação em manter satisfeita a sua classe operária.
O sistema dito "misto" chinês, é tão capitalista como o capitalismo histórico, ou seja, como o capitalismo industrial que se desenvolveu, dos meados do século XIX até princípios do Séc. XX, na Europa e na América do Norte, principalmente.
O regime chinês, não é análogo das «democracias liberais» do Ocidente.  Porém, não se pode classificar a China como "socialista", ou como em "transição para o socialismo". Entendo por «socialismo», a sociedade onde os meios de produção, o poder político e a organização da sociedade, em geral, estão sob o controlo da classe trabalhadora.

Mas, o desenvolvimento pujante da China, levou a que ela já seja hoje a maior potência económica. Sem dúvida que estes resultados se devem à política industrial, dirigida de forma inteligente pela elite do Estado, utilizando as potencialidades do imenso país e com seu povo, disciplinado  e diligente. 
Não sei se o socialismo virá para a China, na segunda metade do presente século. Mas, se assim for,  terá que ser um socialismo da abundância** e não da escassez. Este socialismo da escassez - repetidas vezes - teve resultados desastrosos em todo o mundo (incluindo na China da época de Mao). 
Entretanto, a China, apesar de todos os problemas internos por resolver e de todos os perigos globais, que a poderão ameaçar, está já em primeiro lugar, como potência económica mundial, se a avaliarmos em paridade de poder de compra, o que me parece a forma justa de comparar os desempenhos económicos entre países.   

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*A «fusão do Estado com as corporações», é a fórmula pela qual Mussolini definiu o fascismo. Também se aplica ao capitalismo de Estado, que surgiu nas democracias liberais após a IIª Guerra Mundial e aos capitalismos de Estado «comunistas», soviéticos ou de inspiração soviética.

**Um socialismo da abundância, não significa um esbanjar de recursos, nem um consumo desenfreado. Antes, que todas as pessoas têm um mínimo garantido, seja qual for o seu trabalho ou situação. Uma repartição equitativa dos bens sociais e de consumo será realizável no concreto.  Um fator importante para isso, será o constante melhoramento dos processos produtivos, o que irá libertar os humanos de grande parte das tarefas penosas e insalubres. Os robots serão utilizados para isso; não para potenciar os lucros e fazer pressão sobre o mercado de trabalho, como agora.




sexta-feira, 19 de junho de 2020

A HISTÓRIA RIMA OU ECOA?

                                 Mark Esper opposes the use of Insurrection Act


Diz-se da História, que não se repete, mas que rima. Mais do que rimar, parece-me que ecoa.

São ecos de um passado histórico, que se desenvolveu em determinadas circunstâncias e são estas que não se repetem. Não existem já as circunstâncias que originaram um determinado complexo de factos, que vieram a desencadear tal ou tal acontecimento histórico. 

Mas a história é feita por homens e mulheres, por seres de paixões, de razão e sentimento: as suas tomadas de decisão, abertas ou ocultas, têm uma lógica, mas não será uma lógica causal linear - as mais das vezes - será um enovelado de causas, difícil de destrinçar.

Tudo isto para dizer que a presente situação mundial se parece com certas outras épocas: podemos encontrar «ecos» desta, em várias situações da história do século XX. 

No contexto de crise profunda actual, vem-nos à memória aquilo que sabemos da grande depressão de 29-33 e das suas funestas consequências. Muitos pensadores consideram que existe uma ligação forte do presente, com certos aspectos daquela época. 

- Em 1929, a fase aguda iniciou-se com um «crash» na bolsa, depois disso houve uma falsa retoma. Seguiu-se uma crise de falências, com deflação, paralisia do tecido produtivo e do comércio, um retraimento do investimento, desemprego massivo. 

- Em 2020, houve uma enorme quebra das bolsas em Março, seguida por uma falsa subida em Junho.

- A «resposta» política de então foi, por um lado, a subida do nazismo ao poder, a Alemanha de Hitler e, por outro, o «New Deal» nos EUA, com Roosevelt, mas, sobretudo, a subida das tensões bélicas, das guerras «limitadas», do reactivar dos nacionalismos e o «balão de ensaio», a tragédia da guerra de Espanha, dita «civil», mas também e sobretudo banco de ensaio para as potências da altura fazerem guerra por procuração e experimentarem os armamentos novos em teatros de guerra reais.

- As oligarquias que dominam hoje, não estarão interessadas em um novo fascismo puro e duro, mas estão empenhadas em esvaziar as democracias liberais de todas as liberdades significativas. Por isso, esmagam as classes médias, um suporte fundamental esta democracia liberal. 
Estão a pensar num novo «New Deal», mas onde uma pequeníssima classe dos mais afortunados continuará usufruindo dos privilégios do poder. 
As tensões e guerras por procuração -nos dias de hoje -entre as principais potências, multiplicam-se. Vigora, há pelo menos 20 anos, desde a guerra da Ex-Jugoslávia, um estilo de guerra híbrida: os EUA e aliados por um lado, contra o «eixo Russo-Chinês» e aliados, por outro. 

- Nos anos 30 do século passado, um império em decadência (o britânico) tinha dificuldade em manter um semblante do extenso poderio que possuiu durante século e meio. Tinha um aliado-competidor, os EUA, a maior potência industrial mundial que recebera, ao longo da Primeira Guerra Mundial as encomendas e cobrou as dívidas -literalmente- a peso de ouro aos impérios coloniais britânico e francês. 

- Hoje em dia, o império em decadência é os EUA e o seu competidor, a China. Esta transformou-se no motor da produção industrial mundial. Tornou-se a nação com o maior comércio de exportação. Os dólares obtidos neste comércio mundial são, em grande parte, convertidos em ouro. A quantidade de ouro que acumulou a China, no Banco Central de Estado e nas mãos de particulares, seria de cerca de 20 mil toneladas, segundo opinião de muitos especialistas. 
O ouro -supostamente - 8 mil toneladas, armazenadas pelos EUA em Fort Knox, além de não ser sujeito a auditoria desde os anos 50, estaria implicado em operações obscuras e roubos, atribuídos aos clãs Bush e Clinton. 

Podia-se alongar o rol de casos e de circunstâncias presentes que evocam, ecoam, o que se passou entre as duas Guerras Mundiais do séc. XX. 
Porém, estou convencido que agora é muito diferente, a um nível mais profundo, porque - agora - o capitalismo atingiu o seu grau de expansão máxima. Antes, ele tinha os mercados coloniais ou neo-coloniais, para extrair as matérias-primas, os países pobres da periferia do capitalismo que estavam obrigados a comprar equipamentos, produtos de consumo corrente e mesmo alimentos, aos países dominantes.
Desde há mais de trinta anos, há praticamente uma estagnação da produção industrial no mundo ocidental, não apenas porque o capitalismo já não consegue expandir-se, como também porque não consegue extrair lucro suficiente da manufatura dos bens industriais.
A globalização foi uma fuga para a frente, para conseguir extrair mais alguma mais-valia, super-explorando a mão-de-obra do mundo em desenvolvimento.
Agora, a globalização está morta e não há qualquer possibilidade de ela reviver. O que se perfilha -no imediato - é um período muito duro para as classes laboriosas em todo o mundo, quer nos países «pobres», quer nos países ex-«ricos». 
Porém, a guerra generalizada não é uma saída real, pois a elite sabe que esta iria degenerar em guerra nuclear, onde só haveria vencidos, não haveria vencedores reais. 
Por isso, a oligarquia está a pôr em marcha uma sociedade de controlo total, servindo-se da pandemia viral, como pretexto para instalação dum estado de vigilância generalizado, dum controlo totalitário sobre os corpos (quem não ficar vacinado, não terá direito a quase nada), com suspensão de qualquer veleidade de ordem constitucional e de «Estado de Direito». Ela arroga-se, sob pretexto de «pandemia», acionar a bel prazer «estados de emergência ou de calamidade pública», ou outros eufemismos de lei marcial. 

            
Especialmente, irão recorrer a isso nos pontos do globo onde surjam grandes tensões, resultantes das condições criadas: restrições, brutal empobrecimento, perda das liberdades concretas. 

As grandes ruturas sociais já se estavam a desenvolver há décadas, tal como falhas tectónicas, onde vai aumentando a tensão, paulatinamente, apenas com uma pequena agitação, uma sacudidela pequena... de vez em quando. Mas, se crescem demasiado estas forças telúricas ao nível das falhas, dá-se um tremor de terra. Sabe-se que, quanto maior for a tensão acumulada, maior a violência do tremor de terra. 
Penso que a analogia sísmica é adequada, não porque a sociedade se mova por forças mecânicas, mas porque o grau de frustração decorrente duma opressão demasiado grande, provoca nas massas uma transformação:
- Elas deixam de ter confiança nos dirigentes habituais. Percebem que poderão sair da situação de aperto apenas por elas próprias. Sabem, confusamente, que a resolução dos problemas que as afligem não pode vir do alto. No final, vão agir e derrubar a ordem vigente, para construir a nova sociedade. 
Não estamos ainda neste ponto, mas a hipótese do despertar revolucionário não é de excluir. 
Os oligarcas tudo têm feito para desviar e enganar as pessoas revoltadas, que se atiram contra símbolos do poder (destroem estátuas de personagens históricas) ou pequenos comércios, de outras pessoas tão vítimas como elas. Não têm tido como alvo o próprio poder, os quartéis-generais da ordem que os oprime, os governos, os ministérios, as mega-corporações, os bancos, os bancos centrais e as instituições do globalismo... 

Neste caso, a História que se está desenrolando sob nosso olhar, rima ou ecoa a convulsões passadas. Espero que não continue assim. Pois isso significaria que, passado o tumulto da insurreição, o entusiasmo da revolução, volta tudo ao mesmo: apenas mudam as coisas, «na medida necessária para que fique tudo na mesma». 

Oxalá que desta vez, a História, ela não rime, nem ecoe... Pois, se tudo for diferente, significa que se está dando a verdadeira transformação da sociedade. 
Uma transformação profunda, que ocorre uma vez por milénio...

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

CHAVES PARA COMPREENDER A ESQUERDA CONTEMPORÂNEA

Como é que a esquerda Europeia Ocidental e Norte-Americana se transformou de uma força muito poderosa, capaz de influenciar as políticas dos respectivos estados, num patético e heterogéneo desfile de vaidades e poses, sem qualquer efeito, a não ser a sua auto-deslegitimação?

A esquerda, a partir da viragem do século XIX para o século XX, passou a ter - em vários países dominantes - uma importante representação parlamentar. 
Foi a partir dessa investida nos parlamentos, que ela se pensou como agente de transformação social, política, económica e institucional a partir de cima, já não a  partir de baixo, pela revolução social, a última das revoluções. 
Esta transformação paulatina, progressiva, segundo os ideólogos da esquerda reformista, seria a melhor solução, evitando as destruições e os rios de sangue (muito do qual, de proletários), que, inevitavelmente, acompanhariam uma revolução violenta. 
O oportunismo dos reformistas cedo se fez sentir, com uma política de jogos tácticos, ora distanciando-se do poder apodado de conservador e incentivando movimentos reivindicativos, ora fazendo causa comum com esse mesmo poder, para obter benesses, partilha de lugares no aparelho de Estado e outras vantagens. 
O objectivo máximo, mesmo permanecendo nos textos dos programas partidários, tinha deixado de ser a abolição do regime do capital, mas passou a ser conquistar o poder e retribuir com lugares de prestígio, poder e dinheiro, as figuras do topo destes partidos.
No entanto, pela mesma altura, entre 1900 e 1914, o movimento operário cresceu em força, tendo-se organizado em sindicatos, os quais proclamavam a abolição da sociedade dividida em classes como objectivo último (Congresso de Amiens da CGT francesa) e definiam um campo, a luta de classes, como sendo unificador do proletariado, independentemente das preferências ideológicas, filosóficas, políticas. 
Assim, tornou-se possível construir um sindicalismo revolucionário, o qual tinha como instrumento supremo a greve geral revolucionária, como via para a transformação numa sociedade regida pelos princípios socialistas ou comunistas (quase sinónimos, nesta época). 
O grande recuo operou-se com o eclodir da 1ª Guerra Mundial. Nesta, os grupos parlamentares socialistas das várias potências, aceitaram votar a favor da mobilização geral e apoiar o «esforço de guerra», numa reviravolta completa e clara traição às suas posições da véspera e aos proclamados princípios. 
Ao sair da tragédia da 1ª guerra mundial, a classe trabalhadora dos países industrialmente avançados, sentindo-se traída pelos mesmos partidos socialistas reformistas que se arvoravam em condutores das massas, adoptou uma postura radical, mas maioritariamente autoritária e não libertária. 
Assim, floresceram os partidos epígonos dos bolcheviques da Rússia. Este partido tomou o poder na Rússia devido a condições muito específicas: nomeadamente, o estado de desespero dos proletários deste país face a uma guerra sem fim à vista. 
O partido bolchevique, uma dissidência do partido socialdemocrata, tinha sido influenciado pelas teorias de Blanqui, revolucionário francês que preconizava que um pequeno grupo decidido devia se organizar clandestinamente e derrubar o governo pelas armas, instalando uma ditadura «proletária». 
Foi isto exactamente que Lenine e seus seguidores fizeram na revolução de Outubro de 1917. 
No final da 1ª guerra mundial, eclodiram em Budapeste, Munique e Berlim, movimentos insurreccionais. Mas foram logo esmagados violentamente pelas forças da burguesia, mostrando aos seguidores de Lenine e Trotsky que uma revolução mundial não era para amanhã.
A onda de simpatia pela revolução de Outubro de 1917 permitiu, porém, construir a Internacional Comunista, havendo - a partir daí - uma apropriação do termo «comunista» pela tendência mais autoritária e golpista dentro do movimento operário internacional. 
O comunismo ou socialismo (não autoritários) tinham sido, desde a 1ª Internacional, o fundamento ideológico/teórico de organizações que se agrupavam sob a bandeira vermelha. Os libertários ou anarquistas que nela participavam, nos meados do século XIX, designavam-se socialistas ou comunistas libertários.
   
Seria muito longo e inadequado para um artigo de blog, descrever todo o trajecto das diversas forças de esquerda, quer das ditas reformistas, quer das revolucionárias, em todo o século vinte. 
Encorajo o leitor a fazê-lo por si próprio, para poder compreender o mundo de hoje, nestes cem anos passados sobre a Revolução de Outubro de 1917. O ideal será recorrer a uma grande diversidade de fontes de informação; destas, deverá preferir os documentos originais às interpretações escritas pelos autores, cujo ponto de vista influenciará a maneira como descrevem acontecimentos históricos, mesmo no melhor dos casos.

O que queria enfatizar é a relação umbilical da esquerda com a classe trabalhadora, com o operariado, com o sindicalismo de classe, na primeira metade do século XX. Isto é aplicável, quer às componentes autoritárias ou libertárias, quer defensoras de práticas reformistas ou revolucionárias. 

A partir do fim dos anos 60, o elo de classe começou a enfraquecer, até se tornar meramente histórico. 
Passou-se progressivamente para um tipo de política estruturada em torno de «causas» - ou seja - de questões de identidade. 
Estas questões não estavam ausentes dos debates e lutas da primeira metade do século XX; porém, eram vistas de maneira diferente. Consideravam-se relacionadas com o exercício do poder pela classe dominante, o qual impunha desigualdades, discriminações, para melhor exercer o seu domínio. Estas, iriam ser abolidas aquando do triunfo da sociedade igualitária, sem exploradores. 

Porém, a partir dos final dos anos 60 e sobretudo, nas últimas décadas do século XX, esta visão foi posta de lado, tendo sido aceite - no seio do povo de esquerda - que as pessoas oprimidas tinham o direito/dever de se auto-organizarem em grupos de afinidade para combater determinados aspectos das sociedades hierárquicas, opressivas. 
Quanto ao chamado «socialismo real», no bloco soviético/países de Leste (e mesmo descontando a monstruosidade do período estalinista), para a maioria da esquerda do Ocidente era visível que não teria proporcionado, nesses países, uma real evolução das mentalidades. 
Os regimes que se auto-definiam como «socialistas» não o eram na verdade, eram regimes com uma estrutura burocrática, capitalista de Estado. A não identificação das classes trabalhadoras desses países com o poder vigente, é que foi o factor decisivo da sua queda, embora haja provas de que houve, por parte de serviços e agências do Ocidente, um apoio ativo a movimentos de contestação e de dissidência, como não seria de espantar, no contexto da Guerra Fria.

As pessoas no Ocidente - dos anos 1990 até recentemente - têm vindo a esquecer o valor da ação coletiva, de fazer causa comum, tendo predominado frequentemente uma postura de extremo individualismo. 
O individualismo, em si mesmo, não será mau, na medida em que permite um distanciamento crítico da pessoa e portanto, embora não conduza a um comprometimento com lutas coletivas, pode - ainda assim - trazer um certo contributo crítico. 
Porém, o individualismo egoísta ou egolâtrico, esse não traz nada, pois se conforma com as coisas tal como elas são, conforma-se e satisfaz-se num hedonismo (satisfação imediata, sendo a única finalidade de viver), que lhe é apresentado como a coisa mais original, mas rebelde, etc, que possa o indíviduo atomizado realizar. 
O carneirismo não é incompatível com este individualismo. Pelo contrário, é o resultado da sociedade massificada por um lado, mas atomizada, por outro. 

O conceito de esquerda tem evoluído ao longo das épocas históricas, mas hoje em dia significa - em geral - uma tendência que preconiza a saída do capitalismo. O que difere entre correntes e faz com que - na prática - seja muito difícil de as conciliar é a enorme diversidade de pontos de vista sobre os caminhos para se alcançar a nova sociedade, não-capitalista. 

Estou convencido que a automatação cada vez mais intensa, mesmo em países de mão-de-obra barata como a India ou a China, vai obrigar a re-equacionar definitivamente os conceitos.
Tipicamente, os proletários são vistos somente como aqueles que são mantidos à margem e não podem usufruir dos efeitos das transformações tecnológicas, cujo trabalho só lhes permite sobreviver. 
Porém, uma enorme massa vive e trabalha em condições de servidão, alternando períodos de trabalho e de desemprego, com impossibilidade de sair desse regime... O «precariato», constitui cerca de 80% dos jovens de 30 ou menos anos, nos países do Ocidente. 
Estes servos têm, frequentemente, formação académica mais elevada do que a necessária para o trabalho que executam. Tipicamente, possuem um curso superior, quando apenas uma formação básica seria largamente suficiente para a natureza das tarefas que desempenham. 
Talvez seja esta a maior contradição, que tornará inevitável  uma explosão social, à qual as velhas receitas não se aplicam, obrigando por isso a uma mudança profunda. A contradição entre o saber e o fazer é uma contradição social, mas tem sido ocultada pela ideologia do «sucesso» e da «meritocracia». Segundo esta, as pessoas são as únicas responsáveis de seus sucessos, como dos seus fracassos. 

Tal como existe, a sociedade atual - seja nos países ditos «desenvolvidos», seja nos países em «desenvolvimento» - está a caminhar para um novo feudalismo. 
Este extremar da distribuição da riqueza e as assimetrias de poder que gera, fazem com que os muito ricos dominem, não só como detentores do capital, também graças a dispositivos tecnológicos que lhes permitem um controlo das mentes, que envolvem o sistema educativo, os mass media, a cultura de massas ... 
Porém, os excluídos desse poder material, podem aceder ao conhecimento e isso é uma base para outro poder, o qual poderá desembocar na formação de comunas livres, ou algo deste género, como tem sido repetidamente tentado, em pequena escala.

A transformação social vai acontecer, independentemente dos esquemas ideológicos de uns ou de outros. Pode-se ter um desejo de que esta transformação traga maior emancipação individual e colectiva, maior igualdade de oportunidades, maior fraternidade. Mas pode muito bem ser substancialmente diferente do que se deseja. Nada está escrito, nada está determinado.
Constato que a teoria, principalmente em relação aos movimentos sociais, só pode ser construída a posteriori, depois das transformações terem ocorrido. Porém, os ideólogos têm a pretensão de «saber qual o futuro e como se vai lá chegar»! 
Esta visão da sociedade terá de mudar. Esperemos que não haja tanta ingenuidade em relação aos «salvadores do mundo».