quinta-feira, 6 de outubro de 2022

DIÁLOGO SOBRE O FENÓMENO HUMANO II

Um Paleoantropólogo e uma Geneticista dialogam sobre o que significa o humano. Falam das abordagens que têm ajudado a perceber melhor os fenómenos relacionados com a evolução e com o comportamento desta espécie de símios, que é a nossa .


P - Conforme prometido, aqui estamos para a continuação do diálogo anterior, tão rico e frutuoso, que encetámos na semana passada. Mas, se me permites, gostaria de abordar, enquanto questão prévia à da sexualidade humana, a questão do instinto, da forma como as espécies de símios antropoides conseguem enfrentar de forma flexível e adaptada os desafios no seu ambiente.

G- Sim, como geneticista, uma das coisas que me deixou sempre bastante frustrada, foi a ligeireza com que o mundo científico, sobretudo antes de ser conhecida a totalidade do genoma humano (no virar do milénio), atribuía «genes» para isto e para aquilo, com a maior desenvoltura, especialmente genes que tivessem que ver com o comportamento, com a inteligência, com a comunicação. Este tipo de «genética hipotética» era corrente em estudos genéticos incidindo sobre nossa espécie, sobretudo, mas também nas outras.

P- A projeção da nossa mentalidade no meta-modelo de como funciona o organismo, o cérebro, o genoma, etc. tem sido uma das maiores fontes de erro na interpretação dos seres vivos e, em especial, o comportamento humano. A atribuição da etiqueta «instinto» a sequências de gestos automáticas (ou tidas como tais), impediu o esclarecimento, até hoje, dos processos que determinam a instalação e reforço dessas tais sequências automáticas ou estereotipadas. Com efeito, demasiadas vezes, etólogos e psicólogos usaram a categoria do «instintivo» para qualquer comportamento que não tivesse sido «ensinado e aprendido». O relegar uma parte importante dos comportamentos animais para a categoria do instinto, era um modo de obviar o seu estudo sério, pois era postulada a transmissão hereditária desses comportamentos, através de «genes do comportamento». Estes postulados gratuitos e muito improváveis de «genes», aliás, não favoreceram o avanço da biologia do comportamento.

G- É verdade! Uma das descobertas mais inesperadas e «escandalosas» em genética, que decorreu da sequenciação completa do genoma humano, foi a constatação de que - no máximo! - existiriam cerca de 26 mil genes, na totalidade do genoma humano. Ora, isso era muitas ordens de grandeza menor do que as previsões dos cientistas, sobre o número total de «genes» que possuiria o genoma humano. Caso houvesse dezenas de milhões de genes, como muitos acreditavam na comunidade científica, não seria inconcebível que um certo número deles tivesse a função de codificar determinados traços de comportamento. O «instinto» seria meramente a expressão genética desses tais genes de comportamento. Isso era entendido dentro do determinismo biológico e bioquímico, apregoado pela quase totalidade dos cientistas em meados do século XX.

P- A palavra «instinto» é como aquela célebre frase da comédia de Molière, quando um médico explica ao seu paciente que a papoila dormideira (de onde se extrai o ópio) devia as suas propriedades, à misteriosa «virtude dormitiva»! O «instinto» não é mais que uma pseudoexplicação desse tipo. A dificuldade em compreender os fenómenos do comportamento coloca-se tanto em estudos incidindo sobre o Homem, como noutros animais.

G- Nós temos tendência a absolutizar o humano como algo radicalmente diferente doutros animais. Porém, em termos moleculares (construção das diversas moléculas biológicas) e mesmo celulares (a arquitetura das células, as estruturas celulares), muitas vezes não se pode distinguir o que provém dum humano, do que provém de outro mamífero. Não há diversidade verdadeira senão ao nível «superior» de organização, como sejam tecidos e órgãos. Aí sim, é possível distinguir o humano, pela anatomia e pela histologia. Não é realmente possível distinguir uma proteína humana da  doutros mamíferos, pela sua estrutura geral e mesmo pela sua função. Apenas podemos distingui-la pela sequência de aminoácidos, ligeiramente diferente no Homem em relação aos outros animais. Muitas vezes, essa diferença é irrelevante do ponto de vista funcional. A prova disso é que um gene de proteína pode ser inserido num cromossoma de outro ser vivo, obtendo-se a sua expressão correta, quer essa inserção seja num animal de experiência, quer num humano (para substituir um gene deficiente, em terapia genética): Em ambos os casos, o gene inserido desempenha na perfeição, o papel daquele que foi substituir.

P- Volto à questão que ficou em suspenso, do comportamento humano e da sexualidade, a comunidade científica, com especial relevo para os psicanalistas, mas com forte influência também nas outras disciplinas, decidiu transformar a questão da sexualidade humana, de um tabu, num assunto obsessivo e omnipresente. Isto não significa que os mitos envolvendo a sexualidade em si mesma tenham sido desfeitos. Penso que existe uma enorme confusão no espírito de muitas pessoas, que torna ainda mais complexo falar-se neste assunto, desde que se tenha a preocupação de honestidade e não se caia em demagogias.

G- Esta questão exerce sempre um grande fascínio, provavelmente porque, subjetivamente, sentimos que a nossa própria biologia e a nossa psique estão envolvidas. Mas, nesta como noutras questões que envolvem a biologia humana, a condição para se abordar cientificamente um problema é não o fazer com envolvimento dos nossos egos. Será possível com a sexualidade»? Será possível fazê-lo como descrevemos o aparelho circulatório, ou as funções hepáticas?

P- Colocas um problema metodológico sério. Pois nós temos emoções e estas, sendo recalcadas, não sabemos «a priori» quais sejam. Mas, é impossível avançar neste domínio, senão com o distanciamento que conseguimos em relação à descrição e funcionamento dos outros órgãos do corpo humano. Creio que um problema de fundo que tem surgido em muitas discussões sobre a sexualidade, é a permanente redução desta, ao prazer sexual. Esta questão tem «canibalizado» as discussões, sobretudo nas revistas populares e em shows televisivos. Esta questão, legitimamente, é objeto da curiosidade e interesse do público. Porém, as emoções e muitos aspetos típicos das situações amorosas, ficam na sombra.

G- Se nós somos condicionáveis, em termos gerais, isso deve-se às estruturas profundas, que existem em nós - provavelmente no cérebro, em primeiro lugar - que desencadeiam esse condicionamento. Ora, a publicidade usa e abusa de imagens subliminares (ou explícitas) que enviam mensagens imbuídas de conotação sexual. Se o faz, é porque o mecanismo funciona. Nós temos uma grande fragilidade a este respeito: Algumas atitudes e comportamentos, tal como o imaginário, direta ou indiretamente, têm relação com sexualidade. Mas, como em muitos casos de condicionamento, o que funciona mais eficazmente é o que não atinge o nível explícito, ou seja, fica ao nível subliminar. As estruturas psíquicas, a sua instalação e fixação no humano, não só antecedem a sociedade industrial, a televisão , etc.: formam parte do «fundo genético», anterior à emergência da própria espécie H. sapiens, ou mesmo, de seus antepassados mais longínquos.

P- Como noutros aspetos da biologia, aceito que os comportamentos se foram complexificando, foram sendo selecionados os indivíduos que tinham um conjunto de características hereditárias que favoreciam a maior flexibilidade ambiental. Explico-me: Há 7 milhões de anos, o ramo primitivo que foi dar os Chimpanzés modernos, o que foi dar os Bonobos modernos e o que foi dar o Homo sapiens moderno, separaram-se. A partir daí, há isolamento genético dessas três espécies de símios. A sua adaptação ao ambiente era fator decisivo para a sua sobrevivência: houve - constantemente - uma propagação diferencial dos genes mais adequados, pelas sucessivas gerações, em resultado da seleção natural. Mas, se virmos a distribuição ecológica atual dos Chimpanzés e dos seus antecessores, assim como a dos Bonobos, constatamos uma coisa: ela vai alargar-se ou estreitar-se consoante a progressão ou contração da floresta tropical-equatorial.
                                                                 Champanzé: Mãe e filho

                                           Bonobo: Mãe e filho

Já no caso das espécies da nossa linhagem, apesar de haver ramos colaterais, que acabaram como «becos sem saída», parece evidente que os mais bem sucedidos foram os que se conseguiram adaptar à Savana, a partir da sua adaptação prévia à Floresta tropical.
Parece-me errado, portanto, procurar a «síntese» entre o Chimpanzé e o Bonobo (atuais) como sendo a chave para as primeiras etapas da construção do humano. Sim, temos parentesco em comum; isso traduz-se por semelhanças tanto anatómicas como comportamentais, no sentido lato. Porém, a exploração eficiente do novo habitat, a Savana, implicou muitas adaptações correlativas e muitas diferenças em relação às espécies de símios que permaneceram no ambiente de Floresta. O andar ereto; a dieta mais especializada em gramíneas selvagens e em carcaças de animais (abandonadas pelos grandes carnívoros); as modificações metabólicas, conduzindo à utilização de energia disponível para o crescimento desproporcional do cérebro; o desenvolvimento de glândulas sudoríferas, a perda paralela de pelagem em grande parte do corpo, (possibilitando a caminhada debaixo de calor intenso, em longos percursos). Trata-se de muitas adaptações correlacionadas, cuja sequência cronológica ainda não está muito clara, sobretudo porque dizem respeito a partes moles, não fossilizáveis.
O andar ereto torna mais conspícuos os órgãos genitais (em ambos os sexos), assim como os seios das mulheres. O maior dimorfismo sexual em símios verifica-se nos gorilas, mas é bastante modesto na nossa espécie e em espécies que antecederam a nossa. Apesar das diferenças anatómicas, houve fósseis que foram considerados por engano (pelos traços anatómicos) como masculinos e se verificou serem femininos, e vice versa, quando se pôde extrair ADN e sequenciar os genes desses fósseis.

G- Aliás, em H. sapiens do Paleolítico, verificou-se que as mulheres tinham parte ativa em caçadas, por diversas evidências. Tal não deveria surpreender, em grupos pequenos, nómadas. Quando o número de adultos num grupo era baixo, não podia haver uma repartição exclusiva por sexos de muitas tarefas. Tal como a caça e colheita, muitas outras atividades devem ter sido partilhadas por ambos os sexos.
O que ocorreu foi uma projeção da imagem convencional do homem e da mulher, do fim do século XIX e princípios do século XX. Os arqueólogos que estudavam o «homem primitivo» admitiram, como dado imutável, o estatuto «inferior» da mulher. O preconceito impede de ver certas evidências, porque aquele que as vê, descarta automaticamente certas hipóteses. Pode até nem ser um processo consciente, nalguns casos.

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