Há uma certa dificuldade em compreender como é que se construiu este mito do unicórnio. Este animal magnífico foi, desde a Grécia Antiga e em narrativas posteriores, descrito como possuindo muitas virtudes e qualidades benéficas. Isto contradiz a tendência claramente dominante do «bestiário mitológico». Dos dragões aos lobisomens, quase todos possuem propriedades inquietantes, aterradoras.
O unicórnio é um animal muito belo, geralmente parecido a um nobre cavalo, de cor branca, simbolizando a pureza. É dócil perante donzelas, para junto das quais se dirige respondendo, solícito, ao seu apelo. Personificação do bem, da nobreza, da coragem, é um dos animais mais representados na heráldica. Algumas vezes, está presente no interior do próprio escudo heráldico; noutras, fora dele, segurando estandartes, como em muitos brasões.
As propriedades do único corno do animal também eram maravilhosas: as taças dos reis e doutros personagens poderosos eram - às vezes - em chifre do unicórnio, considerado um antidoto eficaz contra venenos e infeções. Na «lógica por analogia», um fragmento do animal que simboliza a pureza, seria ele próprio, remédio ou preventivo eficaz contra substâncias impuras.
Mas, se o unicórnio é animal lendário, a sua marca distintiva, o "chifre" (na realidade, um dente), não é um objeto imaginário: Seu detentor, o narval, é uma espécie de baleia do Oceano Ártico. Nos machos, um dos dentes cresce desta maneira. Após a morte dos mamíferos marinhos, é natural que algumas presas (dentes muito modificados) se destaquem do esqueleto e vão dar às costas geladas que rodeiam o Oceano Ártico desde o extremo Norte da Rússia e Norte da Escandinávia, à Gronelândia e Leste do Canadá.
Para quem os recolhesse, tal poderia significar - senão o enriquecimento - pelo menos, um rendimento considerável. Depois, uma longa cadeia de intermediários encarregava-se de fazer chegar os espécimes raríssimos - com o seu preço decuplicado, pelo menos - a palácios reais e mansões de ricos comerciantes.
Os dentes de narval são representados em pinturas e frescos por artistas medievais, do renascimento e posteriores enquanto chifres de unicórnio. Algumas vezes, são montados em pedestais, como raridades preciosas.
O século XIX, apesar do seu cientismo e sua racionalidade, não esqueceu completamente o gentil unicórnio:
O professor Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudónimo Lewis Carroll, escreveu, em «Alice no País das Maravilhas», um diálogo entre um Unicórnio e Alice (1).
Carroll, professor de lógica matemática, inventa um diálogo pleno de humor. Estabelece a equivalência perfeita entre a «realidade de Alice» (personagem ficcional) e a «realidade do Unicórnio» (outro personagem ficcional). Esta equivalência é afirmada através de um truque, ou falácia: «se tu me reconheces como real, então eu também te reconheço» ou seja, mútuo reconhecimento como «critério de verdade», entre personagens ficcionais.
Neste diálogo, CC. L. Dodgson/ Lewis Carroll desfaz humoristicamente aquele género de falácia.
No século XXI, deu-se um novo sentido ao termo unicórnio, mas no vocabulário dos «traders».
Na gíria da finança, uma empresa «unicórnio» é aquela que rapidamente atinge um valor considerável em bolsa, com elevados lucros, sobretudo para os que primeiro nela apostaram. Infelizmente, o mais frequente, é que empresas «unicórnio» sejam uma autêntica fraude. Verificou-se a entrada em bolsa de empresas destituídas de receitas (2), antecedendo tanto a crise das «dot.com» do ano 2000, como o grande crash de 2008.
Hoje, classificar uma dada empresa como «unicórnio», pode ter conotação irónica, designando empresas lançadas com muita publicidade, mas sem substância, que atraem os investidores ávidos de lucros fáceis. As cotações destas empresas, inicialmente sobem muito depressa e logo também depressa descem, podendo mesmo ser varridas, num instante.
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1) DIÁLOGO : ALICE E O UNICÓRNIO (de «Alice no País das Maravilhas»):
‘What—is—this?’ he said at last.
‘This is a child!’ Haigha replied eagerly, coming in front of Alice to introduce her, and spreading out both his hands towards her in an Anglo-Saxon attitude. ‘We only found it to-day. It's as large as life, and twice as natural!’
‘I always thought they were fabulous monsters!’ said the Unicorn. ‘Is it alive?’
‘It can talk,’ said Haigha, solemnly.
The Unicorn looked dreamily at Alice, and said ‘Talk, child.’
Alice could not help her lips curling up into a smile as she began: ‘Do you know, I always thought Unicorns were fabulous monsters, too! I never saw one alive before!’
‘Well, now that we have seen each other,’ said the Unicorn, ‘if you'll believe in me, I'll believe in you. Is that a bargain?’
‘Yes, if you like,’ said Alice.
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(2) Ou não produziam realmente qualquer produto ou serviço, ou - caso produzissem - eram cronicamente deficitárias. Apesar disso, puderam ser inscritas nas bolsas de ações!
Se todos podem ler sobre as motivações e o duplo sentido da canção escrita por Grace Slick , poucos irão até ao fim da toca do coelho, para aí encontrar o «outro lado do espelho».
Porque, hoje em dia, estamos num mundo invertido parecido com o «Do Outro Lado do Espelho», que Lewis Carroll genialmente descreveu neste segundo romance, na continuação de «Alice no País das Maravilhas».
Aquilo que me interessa mais nesta canção, não é a velada referência a «viagens» com alucinogénios, que marcaram os anos 60, em particular em San Francisco e na Califórnia, donde provêm os Jefferson Airplane. É outra coisa: Uma obra literária tem sempre significados múltiplos; estes evoluem consoante a época histórica. A característica típica das grandes obras da literatura, é serem sempre atuais.
Nesta reflexão, interessa-me, sobretudo, o facto de se abrirem as portas à imaginação.
Vou confessar-vos uma coisa: Não tive televisão em casa até os 14 anos. Antes desta idade, ia a casa de vizinhos ver televisão e deliciar-me com desenhos animados e séries de cowboys, que todas as ex-crianças da nossa geração (as crianças dos anos 50-60) conhecem.
Mas, hoje, considero-me com sorte porque, antes dos 14 anos - em vez de ter ficado somente a ver televisão - estive, muitas vezes, lendo histórias infantis, ou para «pessoas crescidas», mas adaptadas às crianças. Lembro-me de edições adaptadas e ilustradas da Bíblia, ou da Ilíada e Odisseia. Estas edições tinham uma larga parte de texto; as ilustrações pontuavam apenas os episódios. Não se tratava de «livros aos quadradinhos» ou «comics». Assim, as crianças tinham mesmo que ler por elas próprias ou, em alternativa, ouvir a história lida por algum adulto. Tanto num caso como noutro, tinham de exercitar a imaginação para reconstituir mentalmente o que era descrito por palavras.
Não creio que este tipo de relação com os livros para crianças, ou adaptados às crianças, esteja presente, ou desempenhe um papel relevante, no universo das crianças de hoje, independentemente do seu meio cultural e sócio- económico.
A necessidade de deixar a imaginação livre criar (ou recriar) os mundos de fantasia representa um importante papel dessas histórias, dos contos, das fábulas. Tal papel verificou-se desde os primórdios da humanidade, contando lendas e mitos da tribo em torno da fogueira. Nas diversas culturas passadas, as histórias que se perpetuavam por transmissão oral mantinham os grupos coesos pela partilha não só de contos fantásticos, como das narrativas da origem e as histórias do clã, da tribo ou nação. Mais tarde, foram elas transcritas e a tradição continuou mas, pela leitura do suporte escrito.
As bugigangas eletrónicas e internéticas são incapazes de substituir o livro de contos. A questão do suporte (o «medium») como ensinava Marshall MacLuhan, é de importância fundamental. O livro infantil, com imagens, mas onde a parte escrita obriga a uma reconstituição dos conteúdos na imaginação do leitor/auditor, não pode ser vertido noutro «medium», sem se perder algo.
Não sei o que possa fazer as vezes de estímulo das imaginações infantis de hoje. Porque os filmes e os vídeos capazes de encantar e entusiasmar os mais novos, são, muitas vezes, obras de arte, maravilhas técnicas e estéticas, capazes também de entusiasmar os adultos. Muito bem; mas onde está o espaço para a imaginação, o esforço individual da criança para recriar dentro da sua cabeça as cenas que lhes descrevem? Onde está a comunicação entre os adultos e as crianças, fator não menos importante que o despertar da curiosidade intelectual e imaginação? Com certeza que as crianças de hoje tenderão a reproduzir, quando elas próprias forem os pais e mães, os comportamentos dos adultos que as criaram. Eu noto uma frequente frieza das crianças atuais, um fechamento ao mundo, encerradas em mundos imaginários, mas constituídos por jogos e vídeos de histórias animadas. Os adultos que lhes oferecem estes brinquedos, querem o melhor para elas, querem que elas se divirtam e aprendam. Mas, eu digo-vos que um bom livro de histórias com algumas ilustrações, lido com irmãos e irmãs, ou com amigos e colegas, diante da lareira, nas férias de Natal, ou depois da sesta no Verão, é realmente muito melhor: reforça o desenvolvimento emocional, as capacidades de raciocínio e, sobretudo, a criatividade e imaginação. Evidentemente, não digo que estes jogos vídeo, ou vídeos de desenhos animados, devam ser proibidos ou restringidos. Isso, nunca resultaria senão em frustração e revolta! Mas, gostaria que os adultos tentassem entusiasmar sua descendência, através de leituras apropriadas, antes do adormecer. Nada mais agradável do que ter à cabeceira a Mãe ou o Pai a contar-lhe uma história, antes de adormecer.