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sábado, 14 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] Salmo Primeiro



SONHO 4:               Salmo Primeiro, Coro de monges do mosteiro de Optina (Rússia)



Eles aqueciam-se como podiam ao calor da fogueira. Estavam no meio da estepe gelada. Outros fogos tremeluzentes se viam por todo o horizonte. Irkutz estava a onze vestras. O acampamento fora ordenado ao cair da noite. Em Setembro já mordia o frio do outono. De vez em quando, ao longe, ouvia-se o tropel dos cascos da cavalaria, que passava perto do nosso acampamento. Ouviam-se também vozes em surdina, dos soldados do regimento de infantaria nº16, em torno da fogueira. Nunca mais se calavam; falavam de tudo e de nada. Rompido de cansaço, acabei por adormecer. Um suave calor bafejava-me o rosto.
Não sei se foi sonho ou foi realidade; não sei se ela se deslocou por artes mágicas até ao acampamento ou se sempre lá estivera:
- O que sei é que o seu rosto estava lá, no meio dos meus companheiros de armas. Aquele rosto trigueiro e oval, com olhos de faiança e cabelos de seda. Vestia com modéstia, mas o seu porte era de uma princesa. Sua doçura e espontânea bonomia derretiam-nos a todos. Ninguém era insensível à beleza, no meio de tanta  fealdade.
Vi o seu vulto levantar-se da roda da fogueira, com um movimento ondulante e flexível, erguendo-se no meio dos meus companheiros. Logo começou a entoar uma prece. Ela dizia o verso e o coro de homens respondia-lhe. As vozes entoavam os salmos num uníssono perfeito, tanto as dos velhos e ressequidos sargentos, como as dos jovens quase imberbes.
Tal era a perfeição, que me pareceu um encanto; era como se nada tivessem feito na vida, senão cantar a salmódia. Os versos eram espaçados por pausas. Nestas, o crepitar do fogo fazia-se ouvir. Maria estava no meio de todos nós, seus familiares, vizinhos, amigos.
Não havia ninguém que não conhecesse Maria; não havia soldado que ela ignorasse, a todos cumprimentava pelo patrónimo. Numa ocasião, vira como ela tratava de um ferido que tremia de febre - já nem conseguia segurar a colher ou a malga.
Senti-me feliz como nunca, nessa noite! Sabia que estava sob proteção dum anjo enviado pelo Senhor. Nem a morte eu temia!
Desde então, trilhei os caminhos da luz e da bondade, seguindo a Palavra, que ressoava na voz do povo.
Se foi sonho ou realidade, não sei. Para mim, isso é indiferente, pois a vida mudou-se totalmente a partir dessa noite.
Tive de sofrer muito; vi horrores, tive medo, frio, fome, fui ferido, bati o dente de febre, corri como um coelho diante da metralha. Esporei desesperadamente cavalos e cruzei ferro com inimigos ferozes, tão desesperados como eu. Percorri milhares de vestras em países distantes, sob climas tórridos ou gélidos. Sou o que sou, sem dúvida. Mas não tenho a arrogância de me considerar mestre de meu destino. A minha vida foi igual à de muitos homens, tão bons ou tão maus quanto eu. No entanto, sinto-me diferente. Tornei-me outro, a partir da noite da visão acima descrita. A simples evocação dessa noite, enche-me de suave júbilo. Iluminou vários momentos e episódios da minha jornada.  
Meu último desejo é somente que alguém transcreva estas palavras. Ámen.

[Alexei transcreveu, 17 de Outubro, Ano da Graça de 1842]

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