SONHO 4: Salmo Primeiro, Coro de monges do
mosteiro de Optina (Rússia)
Eles aqueciam-se como podiam ao calor da
fogueira. Estavam no meio da estepe gelada. Outros fogos tremeluzentes se viam
por todo o horizonte. Irkutz estava a onze vestras. O acampamento fora ordenado
ao cair da noite. Em Setembro já mordia o frio do outono. De vez em quando, ao
longe, ouvia-se o tropel dos cascos da cavalaria, que passava perto do nosso
acampamento. Ouviam-se também vozes em surdina, dos soldados do regimento de
infantaria nº16, em torno da fogueira. Nunca mais se calavam; falavam de tudo e
de nada. Rompido de cansaço, acabei por adormecer. Um suave calor bafejava-me o
rosto.
Não sei se foi sonho ou foi realidade; não sei
se ela se deslocou por artes mágicas até ao acampamento ou se sempre lá
estivera:
- O que sei é que o seu rosto estava lá, no
meio dos meus companheiros de armas. Aquele rosto trigueiro e oval, com olhos
de faiança e cabelos de seda. Vestia com modéstia, mas o seu porte era de uma
princesa. Sua doçura e espontânea bonomia derretiam-nos a todos. Ninguém era
insensível à beleza, no meio de tanta fealdade.
Vi o seu vulto levantar-se da roda da fogueira,
com um movimento ondulante e flexível, erguendo-se no meio dos meus
companheiros. Logo começou a entoar uma prece. Ela dizia o verso e o coro de homens
respondia-lhe. As vozes entoavam os salmos num uníssono perfeito, tanto as dos
velhos e ressequidos sargentos, como as dos jovens quase imberbes.
Tal era a perfeição, que me pareceu um encanto;
era como se nada tivessem feito na vida, senão cantar a salmódia. Os versos
eram espaçados por pausas. Nestas, o crepitar do fogo fazia-se ouvir. Maria
estava no meio de todos nós, seus familiares, vizinhos, amigos.
Não havia ninguém que não conhecesse Maria; não
havia soldado que ela ignorasse, a todos cumprimentava pelo patrónimo. Numa
ocasião, vira como ela tratava de um ferido que tremia de febre - já nem
conseguia segurar a colher ou a malga.
Senti-me feliz como nunca, nessa noite! Sabia
que estava sob proteção dum anjo enviado pelo Senhor. Nem a morte eu temia!
Desde então, trilhei os caminhos da luz e da
bondade, seguindo a Palavra, que ressoava na voz do povo.
Se foi sonho ou realidade, não sei. Para mim, isso
é indiferente, pois a vida mudou-se totalmente a partir dessa noite.
Tive de sofrer muito; vi horrores, tive medo,
frio, fome, fui ferido, bati o dente de febre, corri como um coelho diante da
metralha. Esporei desesperadamente cavalos e cruzei ferro com inimigos ferozes,
tão desesperados como eu. Percorri milhares de vestras em países distantes, sob
climas tórridos ou gélidos. Sou o que sou, sem dúvida. Mas não tenho a
arrogância de me considerar mestre de meu destino. A minha vida foi igual à de
muitos homens, tão bons ou tão maus quanto eu. No entanto, sinto-me diferente. Tornei-me
outro, a partir da noite da visão acima descrita. A simples evocação dessa
noite, enche-me de suave júbilo. Iluminou vários momentos e episódios da minha
jornada.
Meu último desejo é somente que alguém
transcreva estas palavras. Ámen.
[Alexei transcreveu, 17 de Outubro, Ano da
Graça de 1842]
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