segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

BLACKMAIL

 Segundo o pensamento das elites de Washington, para que o império EUA mantenha a sua hegemonia, precisa de inviabilizar a subida de qualquer poderio rival que possa colocar em risco essa hegemonia. É esse o caso da Rússia e da China, segundo os imperialistas americanos. Simples e direto, este raciocínio é falso e especioso. É basicamente erróneo, porque nunca nenhum poder, por maior que fosse, foi detentor duma hegemonia em todo o planeta. Querer isso, é um sonho megalomaníaco, que apenas o Império Britânico, onde «o Sol nunca se punha», tentou (e falhou), durante um período relativamente curto, menos de um século. Os poderes europeus, na sua expansão imperialista e colonial, entraram numa rivalidade mais acesa no século XIX, ao ponto de desembocarem na Iª Guerra Mundial, em 1914.

O sonho imperial de hegemonia planetária está decisivamente posto em causa pela subida em potência da China e da Rússia, aliadas e em sintonia, para enfrentar os ataques raivosos dos governos de Washington e das «repúblicas das bananas», em que se transformaram os países europeus, mesmo os mais ricos e com passado «glorioso». 

Em termos económicos e no longo prazo, os dois gigantes do Continente Euroasiático e seus aliados, estão preparados para enfrentar as mais drásticas sanções que os EUA e o «Ocidente» se lembrem de lançar. De facto, as sanções atualmente em vigor, lançadas com pretextos falaciosos, apenas tiveram efeitos nefastos para as economias europeias. Estas, ficaram com menos mercados para aí colocarem os seus produtos, ficaram também com menos matérias-primas para suas indústrias e carentes de componentes de alta tecnologia, como os «microchips», fabricados quase exclusivamente na China e fornecendo a indústria automóvel e de eletrodomésticos. O embargo de produtos agrícolas à Rússia teve como resultado o desenvolvimento rápido da agricultura russa, fazendo dela um setor exportador, além de ter atingido a autossuficiência no setor alimentar. Pelo contrário, as proibições de exportação para a Rússia, liquidaram muitas pequenas e médias empresas agrícolas europeias. Tiveram especial dureza nos países da orla do Mediterrâneo (exportadores de fruta e legumes frescos).

A fabricada «ameaça de invasão» da Ucrânia pelo exército russo, já tratada por mim detalhadamente noutro artigo  deste blog, tem como única razão de ser, que os americanos temem - acima de tudo - a independência energética dos alemães. 

Com efeito, a Alemanha possui um nível científico e tecnológico muito elevado,  e conservou sua infraestrutura industrial, ao contrário doutros países europeus que a exportaram largamente para o Extremo-Oriente, em particular. Por estes motivos, a Alemanha será, provavelmente, o poder dominante no século XXI, na Europa. Ora, para o imperialismo dos EUA, isso não será nada favorável: Na Alemanha está estacionado (desde o fim da IIª Guerra Mundial) um exército de ocupação americano, essencial para o dispositivo hegemónico no coração da Europa. Mas, nenhuma potência de primeira grandeza ficará satisfeita de ter um corpo estranho permanentemente estacionado no seu território, com as consequências políticas, económicas e de autonomia que isso implica.

A questão do «Nord Stream 2» é - portanto - o fator que está por detrás de toda a histeria fabricada em torno do «perigo» russo, da sua preparação da invasão da Ucrânia, que nunca foi, nem será efetiva, como já demonstrei anteriormente.

O jogo dos EUA é, antes de mais, um jogo de pressão destinado aos «aliados/vassalos» europeus, em particular, sobre os alemães. Do ponto de vista económico, a Rússia está pouco interessada em vender o seu gás natural à Europa. Ela tem um mercado sempre aberto e voraz em recursos energéticos, na China. Ela não terá problemas em colocar aí o seu gás natural, caso os europeus não o comprem. Pelo contrário, estes têm tudo a perder: um abastecimento regular e garantido, com preços estáveis, resultantes de contratos a longo termo. 

Sem isso, será impossível a Europa cumprir a severa transição energética, que a si própria impôs. Não vou aqui discutir se foram sábias, ou não, as decisões políticas e económicas dos governos europeus. Apenas constato que a transição para uma energia menos poluente (eliminação do carvão como fonte de alimentação de centrais elétricas, entre outros objetivos), fica posta em causa, se a Europa não puder contar com o gás russo, no período de transição. 

A referida transição tornou-se mais difícil, pela decisão de desativar as centrais nucleares, um pouco por todo o lado, na Europa, mas em particular, na Alemanha. Foi uma decisão precipitada, motivada, não pela necessidade, mas pelas agendas eleitorais na Alemanha e em vários outros países. 

Todos nós já sabemos que as energias eólica e solar não são operacionais, se não existir outra fonte de energia de produção constante, alimentando a rede elétrica. Por definição, nem as eólicas nem os painéis voltaicos, podem jamais ser fontes constantes. Também não existe qualquer processo pouco dispendioso de armazenar grande quantidade de energia duma fonte intermitente (como são as energias solar e eólica). Portanto, só a energia nuclear ou o gás natural poderiam fornecer a base de estabilidade para as redes de energia elétrica, aquando dos picos de consumo (ou quando é noite, ou quando não há vento).

A «solução» americana, de fornecer à Europa (no caso desta renunciar ao Nord Stream 2) gás de fracking, através da sua liquefação e envio em grandes navios-tanques, é uma «pseudo-solução». Envolve compressão, confinamento em tanques capazes de sustentar uma grande pressão, deslocação em navios-tanques, os quais têm de ter determinadas características. Todas as infraestruturas portuárias e todas as outras componentes do processo terão de ser construídas especificamente para este fim. O resultado é que a montagem do dispositivo  e a operação do mesmo, irão encarecer o produto. O envio de gás por gasoduto, é incomparavelmente mais barato e mais seguro. 

São dois, os motivos que levam os americanos a tentar impor aos europeus a renúncia ao «NS2» e ao gás russo: 

-Querem «desencravar» a indústria do fracking que está em crise: O preço do gás não cobre as despesas de exploração dessas empresas. Estas empresas que exploram o gás de xisto, fizeram empréstimos, sobre empréstimos que foram «segurados» pelos bancos. Estes, por sua vez, venderam esta dívida a clientes, tal como tinham feito com as hipotecas «subprime». A única maneira das empresas de fracking pagarem os empréstimos, é tornarem-se rentáveis, coisa que até agora não provaram sê-lo. Por razões ideológicas, não creio que o governo dos EUA vá subsidiar diretamente o setor do fracking.  Portanto, os vassalos europeus, quer gostem ou não, serão forçados a tornar viável este setor energético dos EUA, que é um enorme buraco, um péssimo investimento. 

- Querem partir a Europa em duas metades assimétricas; a metade que lhes é submissa, totalmente separada da Rússia europeia que é uma fatia muito grande da Europa. Lembremos que esta se estende do Atlântico aos Urais! A necessidade de terem a Rússia como inimiga é, sobretudo, a de terem na mão os seus aliados (súbditos) da Europa ocidental. Poucas pessoas sabem que a Rússia de hoje, apesar de ser um gigante, em termos de área, tem um PIB da mesma ordem de grandeza que uma Itália! Por isso, a estratégia americana é simples; trata-se de manter a tensão nas fronteiras europeias da Rússia, para que se eternize a NATO. Se esta se mantiver, a Europa continuará firmemente sob o controlo da «Nação indispensável» (Barack Obama dixit).

Não é nada difícil compreender - neste imbróglio relativo à «invasão» da Ucrânia - o seu papel de propaganda, de manobra de diversão: Trata-se de dissipar o efeito, nos aliados europeus da NATO, da posição russa de exigir uma negociação séria, para obter garantias sólidas quanto à sua segurança própria e dos seus vizinhos. Os europeus (de todas as nações) só teriam a ganhar com tal abertura de negociações diplomáticas, com vista à obtenção, para a Europa no seu todo, de garantias de estabilidade, tanto em termos militares, como políticos e económicos. Isso não poderá jamais agradar aos imperialistas americanos! 

Em primeiro lugar, ficaria claro que não é assunto deles, não têm legitimidade para se sentarem à mesa das negociações: não tem a ver com as fronteiras americanas, nem diz respeito às relações com os vizinhos dos EUA. Em segundo lugar, poderia desembocar na desativação da NATO, substituída por uma estrutura não-militar, mas diplomática. Essa estrutura iria debruçar-se sobre conflitos pendentes e sobre os futuros. Teria a função de encontrar vias para uma resolução pacífica, diplomática, dos mesmos. Talvez bastasse darem mais operacionalidade à OSCE.

Um «capo» da Máfia nunca vai aceitar que os seus «protegidos» se organizem fora da sua «proteção» (ou racket). Quanto tempo demorará a Europa a libertar-se deste «padrinho»? 

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PS1: Veja o vídeo de entrevista de «Grayzone» AQUI

PS2: Artigo de Mike Whitney extremamente bem documentado e demonstrando o absurdo da política americana em relação à Rússia, agora e desde o fim da Guerra Fria: https://www.unz.com/mwhitney/moscow-to-washington-remove-the-nukes-on-our-doorstep-and-stop-the-eastward-push/

PS3: Hoje 02/02/2022, síntese magistral sobre a crise Rússia/ EUA/NATO/Ucrânia https://www.paulcraigroberts.org/2022/02/02/the-world-needs-a-russian-chinese-pax-romana/ 

PS4: Artigo «How NATO Empire-Building set stage crisis over Ukraine» está escrito na perspetiva do constitucionalismo e dos valores tradicionais da América. É uma crítica contundente da geopolítica e política externa levadas a cabo pelos EUA desde o colapso da URSS. https://www.zerohedge.com/geopolitical/how-nato-empire-building-set-stage-crisis-over-ukraine

PS5: Este artigo descreve o jogo geopolítico americano, ao longo dos anos, em relação ao gás natural russo, importado pela Europa desde os anos 60.  https://www.zerohedge.com/geopolitical/pipeline-politics-hits-multipolar-realities-nord-stream-2-ukraine-crisis

PS6: Maria Zakharova põe a claro a situação de vassalos dos países europeus da NATO, em particular da Alemanha, face aos EUA. O que também eu tinha escrito há um mês. Qualquer pessoa não-mentecapta sabe que é assim. https://www.rt.com/russia/548712-germany-occupied-us-nordstream-zakharova/

PS7: Mike Whitney  «In a world where Germany and Russia are friends and trading partners, there is no need for US military bases, no need for expensive US-made weapons and missile systems, and no need for NATO.» https://www.unz.com/mwhitney/the-crisis-in-ukraine-is-not-about-ukraine-its-about-germany/ 

PS8: Conforme o artigo de Pepe Escobar, a guerra da energia segue o seu caminho, conforme eu previra há mês e meio!

18 comentários:

Manuel Baptista disse...

O senil e demente, que ocupa o assento da nação mais agressiva do planeta, atira com divisões aero-transportadas para a fronteiro Ucraniana-Russa. Isto, provavelmente é o preparativo para uma «falsa bandeira».
Pois as coisas vão de mal a pior, para nós europeus... mesmo que a grande maioria não perceba o que a NATO está a tramar.

Manuel Baptista disse...

A propaganda anti-russa é apenas porcaria, não tem nada de válido ou digno: mas eles na media canina do império, atiram com essa propaganda, porque ela é a primeira salva, que antecede as dos canhões.
Miserável tempo o nosso: Somos reféns de loucos e assassinos em massa, que tomaram o controlo dos Estados no Ocidente!

Manuel Baptista disse...

Os neocons nos EUA e no Reino Unido estão empenhados numa «guerra informativa», ou seja, de propaganda. Mas isso está a criar muitos problemas aos próprios. Está a desagregar-se em termos de credibilidade (todos vêm que é bluff). O efeito é aumentar as distâncias entre membros da NATO. Exatamente o contrário do que pretendiam. Veja:
https://www.youtube.com/watch?v=iEIkiNgsa8Y

Manuel Baptista disse...

O'Relly aventa a hipótese de que a guerra de propaganda levada a cabo pela media do Ocidente e apoiada nas medidas e declarações provocatórias dos governos americano e britânico, tem como objetivo preparar a opinião pública dos países da NATO para um ataque de falsa bandeira, atribuído aos russos. A ler aqui:
https://off-guardian.org/2022/01/24/pandemic-narrative-over-false-flag-in-ukraine-next/

Manuel Baptista disse...

O teatro de retirar pessoal das embaixadas e consulados dos EUA e Reino Unido, foi resumido desta maneira por um ucraniano: «estarão mais seguros em Kiev, do que em Los Angeles.»

https://www.zerohedge.com/geopolitical/top-ukrainians-slam-us-state-department-chickening-out-kiev-say-americans-safer-kiev

Manuel Baptista disse...

Bill Blain sobre a importância do gás natural na transição energética:
https://www.zerohedge.com/geopolitical/militant-esg-has-become-biggest-threat-solving-climate-change-energy-transition

Manuel Baptista disse...

Leia Philip Giraldi (ex-membro da CIA) tem tudo a ver com o tema deste artigo:
https://www.unz.com/pgiraldi/is-washington-under-alien-control/

Manuel Baptista disse...

https://www.strategic-culture.org/news/2022/01/21/us-says-wants-peace-not-war-as-it-arms-ukraine-to-teeth/
É uma certeza absoluta que os EUA têm feito tudo para provocar uma guerra entre a Ucrânia e Rússia. É tão evidente, que mesmo os vassalos europeus mais bajuladores têm dificuldade em «vender» a narrativa da suposta «agressão russa» às suas populações.
Agora, era preciso haver muitos/as homens /mulheres em toda a Europa, para dizer não! não embarcamos nesta aventura belicista!

Manuel Baptista disse...

Democracia à americana:
Pelos vistos, os americanos consideram que sua "democraCIA", é exportável para o resto do mundo, sob a forma abreviada de ... "CIA"

Manuel Baptista disse...

A atitude corajosa e lúcida do Presidente da Croácia, dizendo que não aceita que nenhum soldado croata participe numa ofensiva da NATO nas fronteiras russas, vem colocar o devido contraste em relação aos belicistas, leia aqui as suas razões:
https://www.zerohedge.com/geopolitical/why-tiny-nato-country-went-rogue-trying-prevent-war-russia

Manuel Baptista disse...

Graças à diplomacia da Rússia e da França, um pouco de bom-senso começa a infiltrar-se na questão ucraniana. Ainda bem!
https://www.zerohedge.com/geopolitical/russia-ukraine-agree-uphold-donbas-ceasefire-normandy-format-talks

Manuel Baptista disse...

Os imperialistas nem sequer se escondem da chantagem que fazem com o Nord Stream 2:

«Despite the pipeline’s recent completion, the European Commission has delayed (indefinitely) the certification required in order for Russia to start pumping gas. Whether Moscow will go ahead and do it anyway remains up in the air.

What is clear is that US counter-strategy is a patchwork of threats, hysterics and racketeering. As Richard Morningstar, former US diplomat and founding director of the Atlantic Council’s Global Energy Centre, bluntly put it, “I think Nord Stream 2 is really a bad idea…If you want to kill the [US-based] LNG strategy go ahead with Nord Stream [2]”.»

retirado de: https://thesaker.is/the-other-side-of-the-story-russias-view-on-geopolitics-war-and-energy-racketeering/

Manuel Baptista disse...

Encerrados na sua «húbris», os que decidem em Washington, tomam a atitude mais provocatória possível face à proposta razoável de discussão sobre os conteúdos (ver artigo abaixo) sobre questões de segurança recíproca: https://www.unz.com/mwhitney/biden-spits-on-putins-request-for-security/
A conclusão é que a loucura está instalada nos círculos dirigentes imperialistas. Não apenas os russos são ameaçados pela chantagem: também nós, europeus de todas as nações.

Manuel Baptista disse...

Leia a análise de Paul Craig Roberts, sobre a rejeição por Washington de negociar as propostas apresentadas por Moscovo:
https://www.globalresearch.ca/washington-rejection-russia-security-proposal-bad-decision/5768316

Manuel Baptista disse...

Segundo Paul Craig Roberts a estratégia de desestabilização de Washington em relação à Rússia, utilizando a Ucrânia, falhou. Leia o seu artigo:
https://www.paulcraigroberts.org/2022/01/29/update-on-the-ukrainian-front/

Manuel Baptista disse...

Este importante economista Michael Hudson explica-nos que o objetivo dos imperialistas em isolar a Rússia e a China, é mais de manter o domínio sobre a Europa, de forma a que esta não possa se escapar do domínio dos EUA:
http://thesaker.is/americas-real-adversaries-are-its-european-and-other-allies-the-u-s-aim-is-to-keep-them-from-trading-with-china-and-russia/

Manuel Baptista disse...

http://www.informationclearinghouse.info/57001.htm
Segundo Scott Ritter, a NATO tornou-se não apenas obsoleta, como impotente em relação aos interesses dos seus membros europeus, só servindo como braço da hegemonia dos EUA.

Manuel Baptista disse...

https://consortiumnews.com/2022/06/15/the-hierarchy-of-tribalisms/

Um excelente artigo por Jonathan Cook, um jornalista britânico baseado em Nazaré da Palestina.
Ele primeiro explica, com base na sua experiência vivida de Israel-Palestina, a raiz profunda dos tribalismos, para desenvolver a visão dum tribalismo dominante, o ocidental, que atravessa não apenas fronteiras étnicas, como ideológicas. A santificação de si próprias das pessoas nos países ocidentais, os da tribo dominante, é escalpelizada. É a utilização desse tribalismo (inconsciente, muitas vezes) pelas oligarquias, que permite manipulações de massas como temos vindo a assistir em relação à situação da guerra na Ucrânia.