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sábado, 15 de setembro de 2018

CRÓNICA DE PEQUIM: O IMITADOR VOCAL HAI YANG * - POR EDUARDO BAPTISTA


(*) traduzido do inglês : 
  
                     

                  


"Não importa o país para aonde eu vá, toda a gente aprecia a minha arte por uma simples razão: é um reflexo da natureza", observa o mestre de imitação Hai Yang, relinchando como um cavalo para ilustrar a universalidade de kouji, uma arte tradicional de imitação sonora.

O nativo de Henan, de 39 anos, teve um ano produtivo: em 2017, como membro da Sociedade Acrobática de Beijing, passou um mês nos Estados Unidos a atuar à frente de dezenas de milhares com o seu talento e sentido de humor. Após o seu regresso à China, Hai foi convidado a integrar a equipa de efeitos sonoros do “Wolf Warrior 2”, o filme chinês com o maior  sucesso de bilheteira de sempre. Para este filme de guerra, Hai Yang imitou explosões de mísseis, tanques barulhentos e outros sons muito para além do repertório tradicional desta arte antiga.

Aqui está uma amostra do repertório moderno de Hai:

                       

Os registos históricos mostram que kouji (口技), literalmente "acrobacia da boca", existe na China há mais de 2300 anos. Hai narra com entusiasmo a famosa história do primeiro-ministro do Estado de Qin, Mengchangjun, um estudante de Confúcio que viveu durante o Período dos Reinos Combatentes (475-221 AC).

Em 299 AC, Mengchangjun foi acusado de espiar no seu estado nativo de Qi e posto na prisão, juntamente como os seus servos. O ministro buscou a ajuda da concubina favorita do rei de Qin, Yan Fei, que, em troca, exigiu um casaco de pele de raposa branca que Mengchangjun já tinha oferecido ao rei. Preso num dilema, um servo jovem e leal, decidiu usar kouji. No meio da noite, depois de escapar da sua cela, chegou à porta dos aposentos do rei e começou a imitar o som de cães a latir, distraindo os guardas o tempo suficiente para que ele pudesse infiltrar-se no quarto do rei e roubar o casaco.
Mas, depois de fugirem das celas do palácio Qin, Mengchangjun e os seus servos deparam-se com um outro problema ao chegarem à fronteira Qin-Qi (na atual província de Shaanxi), bem guardada por uma base militar. Mas antes que as tropas do rei Qin alcançassem os fugitivos, o jovem servo de Mengchangjun imitou o cacarejar dum galo e todos os galos nos arredores seguiram. Os porteiros, não tendo nenhuma espécie de relógio, pensaram que a manhã estava quase a chegar, abriram o portão e deixaram Mengchangjun e os servos passar.

                       
  
Imitar a música deste tordo era uma das formas artísticas de representar beleza feminina na China antiga.

Durante a dinastia Song (960-1279), a arte de kouji recebeu patrocínio imperial. O chilrear dos pássaros era um som que os cortesãos gostavam particularmente (de acordo com Hai, o canto dos pássaros era uma das quatro metáforas naturais para a beleza feminina, junto com as flores, o salgueiro e a lua).
A capacidade dos artistas kouji de imitar este som deu-lhes um lugar permanente nas festas de banquetes do Estado. Composições feitas exclusivamente de sons de kouji, incluindo “O canto dos cem pássaros” (鸟鸣), eram especialmente populares devido à boa sorte simbolizada por 100 pássaros.

Hai afirma que kouji alcançou tal nível de mestria nessa dinastia que o canto de certos mestres de kouji superava o pássaro que eles estavam imitando.
Um tal indivíduo, Zhang Kun Shan (张坤 ) conseguia fazer com que um tordo morresse de exaustação ao tentar cantar mais alto do que Zhang Kun Shan, ganhando-lhe a alcunha de Hua Mei Zhang (画眉 ), huamei sendo o nome chinês para a espécie de tordo que Zhang Kun Shan conseguia imitar. O próprio Hai lembra-se alegremente de exibir as suas habilidades à frente de tordos em gaiolas, deixando-os num estado de frenesim, e o seu dono algo chateado.
 Todos os chineses com educação básica têm algum conhecimento da arte, graças ao ensaio "Kouji", que faz parte do currículo do segundo ciclo. O texto, escrito pelo erudito Lin Si Huan ( ), descreve vividamente uma atuação teatral de kouji: O público senta-se à frente de uma tela, atrás
da qual o artista de kouji conta uma história com efeitos sonoros - cachorros latindo, um bébé horando, louça caindo - usando apenas a boca,
um bloco de madeira e um leque. O público preenche as lacunas com a sua imaginação.

                    
                  
                     A ilustração de “kouji” mostra como os sons
                    produzidos pelo artista kouji conseguem criar
                        imagens vívidas nas mentes do público.

 Ao contrário dos seus antecessores imperiais, Hai não foi preparado desde uma tenra idade para se tornar um mestre de kouji. Quando ele ainda era
criança, sentiu-se atraído pela imitação vocal puramente por diversão; a sua primeira imitação foi de um galo na sua aldeia. Ele ri-se ao descrever
o seu passatempo de imitar sotaques, como o do amolador, enganando os vizinhos que saíam de casa segurando dezenas de facas só para descobrir
que não havia ninguém na rua. Na escola, ele sentava-se ao lado da janela, ouvindo os sons de fora e imitando-os, hábito ao qual os seus professores não achavam piada nenhuma, especialmente quando se tratava da sirene de uma ambulância.
 Foi o programa de televisão, «Luo Sang Estuda Arte» (洛桑 ), que plantou as sementes do sonho que Hai perseguiria nos próximos 20 anos
da sua vida. Apresentado pelo virtuoso mestre kouji Luo Sang (洛桑) e pelo comediante Yin Bolin (尹博林), o programa forneceu uma plataforma nacional à arte de kouji. Transmitido desde 1993 até ao final de 1995, quando Luo Sang morreu num acidente de automóvel aos 27 anos, o programa fez Hai Yang aperceber-se que era possível fazer carreira de imitar sons, por mais que os seus professores dissessem que seu talento era inútil e infantil.
 “Quando vi pela primeira vez Luo Sang a fazer a sua imitação de trompete e trombone, não achei que os seus sons eram difíceis de produzir, nem
achava que meu nível estava abaixo do dele”, lembra Hai, que tinha 14 anos naquela altura.
Acreditando que a morte de Luo Sang tinha criado uma vaga para a sua subida ao palco, Hai começou a estudar o reportório de Luo Sang, na
esperança de eventualmente viajar para o norte, para Pequim, aí encontrar o ex-parceiro de Luo Sang, Bolin, e começar um novo show juntos. Na era pré-internet, porém, era mais fácil falar de tais planos do que os executar.

Foi no exército que Hai esteve próximo de se transformar num artista kouji a tempo inteiro.  Ele candidatou-se para a trupe de artes da sua região, mas ficou surpreendido ao não ter sido escolhido na primeira ronda de entrevistas.




Determinado, dirigiu-se sozinho ao prédio onde as selecções estavam a decorrer. Pondo-se à frente da porta da sala, surpreendeu os líderes da trupe lá dentro ao “tocar” a famosa banda sonora do filme de guerra francês “Adieu l'ami” (1968). Ele foi convidado imediatamente a juntar-se à trupe, recebendo ordens para fazer as malas e tratar das despedidas. Mas pouco depois de chegar à sua nova divisão, um jipe chegou e trouxe-o de volta para a sua antiga divisão. Nesse momento ele soube o motivo de ter sido deixado fora da lista de candidatos: o seu sargento estava tentando
impedi-lo de deixar sua divisão. Hai, como subordinado, não teve escolha senão aceitar.
Quatro anos depois, outra tentativa foi frustrada pela mesma cadeia militar de comando, e o desiludido Hai acabou por tornar-se um trabalhador de colarinho branco em Pequim.

Anos mais tarde, Hai ouviu falar de um famoso mestre kouji que fazia parte da Sociedade Acrobática de Pequim, Niu Yuliang (牛玉亮). Através de uma combinação de favores e de sorte, Hai conseguiu acesso a um evento da Sociedade onde Niu estaria presente. Seis meses depois, ele tomou uma ausência injustificada do trabalho para poder assistir a um ensaio que contava com a presença do velho mestre, que já passava dos 70 anos. Hai Yang ofereceu-se para ajudar o mestre a caminhar e a descer e subir ao palco. Finalmente, aos 33 anos, Hai tornou-se aprendiz do velho mestre. Em 2014, Hai recebeu o título formal de "estudante" de Niu, entrando numa linhagem de artistas que perdura à mais que 2.000 anos.

Mais de 20 anos depois de ter visto pela primeira vez “Luo Sang Estuda Arte”, Hai começou a sua carreira como artista kouji.  O tour da Sociedade Acrobática pelos Estados Unidos levou kouji a lugares como o Kennedy Center, em Washington D.C., onde Hai, de 36 anos, foi um sucesso, atraindo fãs que o seguiam em todas as suas actuações na capital. Ele até recebeu elogios de Ivanka Trump, filha de Donald Trump, que nomeou a actuação de Hai como uma das suas favoritas da festa do Ano Novo Lunar organizada pela Embaixada chinesa em Washington. Enquanto trabalhava na pós-produção de “Wolf Warrior 2”, o desempenho de Hai recebeu orientação da maior especialista de efeitos sonoros da China, a amiga de Steven Spielberg, Wei Junhua.

                     
 Hai Yang (extrema direita), numa foto de grupo com Ivanka, a sua filha Arabella e outros dois artistas

Hai diz que tornar-se num mestre de kouji se baseia em 98% de esforço e 2% de sorte. Todos os dias Hai explora todos os movimentos possíveis da sua boca e garganta, todas as formas de inalação e exalação e todas as possíveis combinações de sons. O essencial é dominar todas as variações dum som: Hai demonstra as suas diferentes imitações de animais caninos, começando com o uivo dum lobo faminto, terminando com o ganir dum cachorrinho deprimido.

Audio - aqui:

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Hai está agora preparando-se para assumir as responsabilidades do seu mestre, que fará 80 anos no ano que vem. Isso envolve aprender certas composições clássicas, assim como encontrar novos sons que nunca tinham sido imitados antes, como o xun (), um antigo instrumento de sopro em forma de ovo, o bawu () instrumento tocado pelas minorias étnicas da província de Yunnan no sul da China e até mesmo o canto estridente da ópera pequinesa.

“A transmissão do kouji tem os seus limites, pois só pode ser transmitida oralmente”, observa Hai, resumindo o desenvolvimento da arte usando o ditado, 青黄不接 (“a safra antiga e a nova não se juntaram”). Hoje, há apenas um punhado de artistas kouji treinados na China e cultivar novos talentos não é fácil: ao contrário dos ginastas que atuam ao lado de Hai, os artistas kouji atingem o nível de artista muito mais tarde, e só alcançam o status de “mestres” após décadas de treino.

No entanto, Hai tem começado a treinar alguns alunos e a sua crença no valor intrínseco do kouji cresceu à medida que ele tem recebido mais acolhimento positivo de públicos estrangeiros.
  "Você não precisa falar uma palavra de chinês para desfrutar da minha arte,” diz Hai, imitando uma solene trombeta de um funeral militar.
“O Kouji não tem fronteiras, tudo o que desejo é continuar a mostrar esta arte ao mundo inteiro”, declara ele. Logo a seguir, exibe uma amostra da sua composição mais recente, terminando como a sirene de ambulância que o punha de castigo quando era criança.
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*Original em língua inglesa em: