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quarta-feira, 29 de outubro de 2025

PODER HIERÁRQUICO E BOM SENSO FUNDAMENTAL


 A humanidade tem progredido - sobretudo - em complexidade material, quer dizer, através de tecnologias cada vez mais sofisticadas. Porém, existe também a complexidade organizacional, que não é realmente explorada como deveria ser, apesar dos muitos críticos da «burocracia». 

É a complexidade organizacional que implica uma hierarquia das relações ou, pelo contrário, uma hierarquia das relações que implica uma complexidade organizacional? 

 -Esta questão deve ser desmembrada para se extrair daí uma nova maneira de ver o problema: 

-Muitas pessoas pensam a complexidade segundo níveis hierárquicos. Dirão que essa hierarquia é «natural», que ela é observada em todas as sociedades humanas e que se observa também na natureza, nas sociedades animais. 

Esta forma de encarar a complexidade não tem em conta que - por norma - as estruturas do mesmo nível de complexidade se organizam de forma «não-hierárquica»: uma colónia de seres unicelulares, é constituída por muitos  milhares ou milhões de indivíduos, cada um deles capaz de vida independente. Um tecido, num organismo animal ou vegetal, é formado por células idênticas na sua função, às quais se somam, frequentemente, células especializadas. No tecido animal ou vegetal, a função é desempenhada por este todo. De tal maneira esta função coletiva é de importância primordial, que existem em reserva células não-especializadas, embrionárias (células-tronco) que se poderão diferenciar e substituir as células danificadas, no conjunto das células tissulares.  

Portanto, contrariamente à visão estrictamente hierárquica, no nível  mais baixo de funcionamento dos sistemas complexos, devemos antes ver que tais seres complexos são organismos, isto é, uma federação de células, umas idênticas, outras  diferenciadas, mas todas desempenhando a(s) função(ões) conjuntamente.

E ao nível de conjuntos de indivíduos, ao nível das populações? 

- Embora uma versão ideológica, ultra-simplificada do darwinismo (a vulgata «neoliberal») nos tenha induzido a ver como predominantes as relações de competição entre os indivíduos, o facto é que a estabilidade dos grupos, das populações, depende da cooperação muito enraízada, ao ponto de se considerar que alguns dos comportamentos cooperativos observados são transmitidos pelos genes e não pela aprendizagem. 

Além das relações intra-específicas, existem muitas outras que se estabelecem de forma estável, ou transitória, entre seres de espécie diferente. As relações de simbiose potenciam as capacidades de seres de duas espécies diferentes, ao ponto da vida (ou a reprodução) dum dos simbiontes ser inviável, sem a colaboração do outro simbionte. Por exemplo, há espécies de plantas que têm uma anatomia da flor tal que apenas uma espécie de insecto consegue alcançar o néctar e carregar (ou descarregar) o pólen para fertilizar a planta; se desaparece o insecto, a planta rapidamente desaparece também, visto que não se pode mais reproduzir; se for a planta a desaparecer primeiro, a tal espécie de insecto desaparece logo de seguida visto que, não havendo a espécie vegetal, o insecto morre, não consegue adaptar-se instantaneamente a nenhuma outra espécie.

As interações entre plantas, animais e  microorganismos são de grande importância nos ecossistemas. Um ecossistema pode entrar em desequilibrio e acabar por ser destruído, apenas pela remoção de uma ou muito poucas de suas espécies. Com efeito, é o que se tem observado em situações onde a floresta (ecossistema complexo) é substituída por plantações; mesmo que permaneçam alguns restos da floresta original na periferia, ou «ilhéus» da mesma, no meio das terras cultivadas. Como tais restos de floresta deixaram de ter a sua capacidade auto-reprodutora, as diferentes espécies ou desaparecem ou diminuem rapidamente. Surgem então as espécies oportunistas, que tomam o lugar. Elas, muitas vezes, são pragas que fazem diminuir o rendimento das explorações.

Estes exemplos acima mostram como as relações naturais são de complexidade muito maior, do que imaginadas pelos humanos, ao longo da História. O ser humano tem sido frequentemente perturbador dos delicados equilíbrios naturais. Os cientistas do ambiente têm experimentado recuperar ecossistemas, devolvendo-os ao seu estado primitivo, em diversidade de espécies e em produtividade de biomassa. Infelizmente, têm tido muitos fracassos e poucos sucessos.

Os jogos de poder nas sociedades humanas são, por vezes, equiparados aos atos de predação de animais no estado selvagem. Este tipo de comparação não tem nada de científico;  mostra a ignorância de quem usa estes exemplos («o leão e a gazela», etc...). Com efeito, a predação é um processo complexo de interação entre a espécie-presa e a predadora. Os predadores têm tendência a atacar os mais fracos, devido à idade, a ferimentos ou doença. Este facto de predação preferencial, favorece as presas mais robustas, mais saudáveis, tendo portanto o efeito de apurar, constante e espontaneamente, suas capacidades físicas e - em especial - as suas capacidades em escapar aos predadores. O simétrico também é verdadeiro, pois as espécies-presa - ao serem difíceis da capturar - exercem uma pressão sobre a população dos predadores, seleccionando aqueles mais capazes de levar a cabo a caça.

Aliás, é bem conhecido e observado o comportamento de que os predadores não atacam suas presas, quando têm a barriga cheia. A predação natural, em circunstâncias não falseadas pela intervenção humana, parece-se mais com um «podar as hastes e ramos duma árvore». 

Embora estejam sempre a extinguir-se espécies, mesmo sem a intervenção direta ou indireta dos humanos, estas espécies são geralmente substituídas por outras, que aproveitam a oportunidade para se expandir ou diferenciar. O homem, pelo contrário, nos espaços que domina - ecossistema urbano, ecossistema agrícola - arrasa tudo o que não lhe convém e, muitas vezes, importa plantas e animais doutros ecossistemas, que podem ter efeitos devastadores nas floras e faunas autóctones (vejam-se os casos da colonização da Austrália e de muitas ilhas). 

A ideia bíblica da humanidade que recebeu este planeta de Deus, tendo que cumprir o seu dever de guardião das espécies, com prudência e respeito, foi completamente subvertida. A partir da era industrial, foi substituída pela depredação pura e simples, baseada na ideia de que a propriedade da terra seria um bem «absoluto» e que o seu proprietário podia fazer dela o que bem entendesse.

O estímulo para se ser «empreendedor» tem vigorado como parte da ideologia que minimiza ou anula as obrigações  do indivíduo para com a coletividade e isto, sem contrapeso. Com efeito, têm-se descurado os deveres públicos de ordenação, planificação e fiscalização (os quais, quando existem, muitas vezes são infestados por corrupção). Esta estranha «moda» tem como efeito difundir um ideal de triunfo do indivíduo sobre a sociedade e portanto,  de destruição da própria sociedade. 


RELACIONADO: Documentário sobre a  cooperação ao nível dos seres celulares há biliões de anos.


quarta-feira, 6 de setembro de 2023

O QUE É O ROMANTISMO?

Aqui, não vos irei falar sobre a infinidade de sentidos que é dada à expressão ou a forma como o público, em geral, avalia qualquer obra como sendo «romântica» ou não. Isso terá pouco interesse, se não se compreender previamente a existência de um movimento dentro da História, que é simultaneamente estético, político e filosófico.

É esse movimento romântico que me interessa: o que  foi assim designado por críticos contemporâneos ou posteriores, ao movimento sobre o qual escreveram.

Muito haveria a escrever sobre as componentes que o caracterizam - a estética, a política e a filosofia. Estão entrançadas de tal modo que, ao distingui-las, devemos ter em mente que isso se deve antes a conveniência na exposição, pois se misturarmos os aspetos, acabamos por não clarificar nada sobre as várias facetas do movimento.

A definição de romantismo poderia dá-la  sintetizando definições de dicionários; mas estou convicto que essas definições «congelam» ideias, causam a sua cristalização, tanto na mente de quem escreve como de que lê.

É inegável a ligação do romantismo com algumas ideias que «andavam no ar», nos finais do século XVIII: A ideologia liberal, na sua formulação primeira, a da Declaração de Independência dos Estados Unidos. A filosofia dialética de Hegel, a filosofia da Natureza de Goethe e de muitos mais. Nota-se a emancipação da Escolástica medieval. Embora o ser humano ainda seja colocado no centro da Criação, não é um «pedaço de argila moldado por Deus», antes o construtor de si próprio, da sua própria vida, do seu devir. Num tempo em que as estruturas do passado se desmoronam, a realeza absoluta, a Igreja da Inquisição, a família patriarcal, começo de emancipação da mulher (somente na aristocracia e na burguesia), tendência a acabar o regime de monopólio e privilégio das companhias de comércio, protegidas pelo poder real, levando à entrada de vários atores no mercado. Tudo isso, tinha relação com um dos pilares da nova visão do Homem enquanto indivíduo, um ser dotado de inteligência, sensibilidade e senso moral: ele não podia já ser tratado como mera criança, obrigado a aceitar como as únicas ideias «legítimas», as que lhe impunham os padres, os reis e os nobres. A descoberta doutros mundos, para além do Velho Mundo, da Europa, Ásia e África, implicava relativizar ou por francamente em causa «certezas» ensinadas e reproduzidas em austeros tratados, nas Universidades europeias. O saber deixou de estar limitado à elite universitária e eclesiástica, com a nova dimensão do saber técnico, o saber-fazer. Pense-se nos saberes associados à navegação: a geografia, a cartografia, as técnicas de construção de navios, a descoberta e descrição de novas espécies vegetais e animais, nos continentes explorados pelos europeus. Nos dois séculos anteriores ao século XIX, houve um constante alargar dos horizontes. Foi, propriamente, o início da revolução científica e técnica. Esta revolução não foi política, ou não teve como motivação substituir a ordem política vigente. Os reis e os poderosos encorajavam as expedições longínquas, acolhendo os novos dados científicos que delas resultavam, com a mesma abertura com que acolhiam novas trocas comerciais.

Foi assim nascendo a ideia do ser humano enquanto indivíduo. Não que dantes não existisse uma tal noção. Mas, de uma forma ou doutra, ela esteve subordinada ao coletivo: o povo, a pátria, a pertença ao reino, à zona geográfica, à profissão (as corporações de ofícios). O homem do século XVIII/XIX ainda continua conectado a essas realidades, que moldam o seu destino. Mas, aquilo que muda, é a ênfase: o essencial, já não é a proveniência do indivíduo, a sua classe de origem ou a sua pertença a tal ou tal reino.

Na música, no teatro, na pintura e escultura, as sociedades aceitam o cosmopolitismo dos artistas e até o encorajam. Por exemplo, a corte do rei D. João V de Portugal, que beneficiou das muitas riquezas das colónias, em particular do Brasil, estava repleta de estrangeiros, músicos, artistas plásticos, cientistas, etc. na sua maioria, italianos.

A ênfase tornou-se mais política, a partir da Revolução Francesa. O cidadão, era aquele individuo que aderia ao projeto revolucionário. Assim, houve deputados polacos, irlandeses e alemães à Convenção da França revolucionária. Eram homens que se tinham identificado com a causa revolucionária; eram legitimamente membros deste corpo representativo. Note-se que, mais tarde, esta noção política de cidadania foi instrumentalizada por Napoleão: Em todas as suas campanhas militares utilizou estrangeiros (regimentos de irlandeses, de polacos, de suíços, de alemães), completamente subordinados ao poder imperial. 

Na literatura, a grande revolução foi o dar-se primazia ao indivíduo, através da exposição dos sentimentos: Rousseau (Confessions), Goethe (Werther) etc. 
Na música, o cânon clássico representado por Haydn e outros músicos, foi destronado a favor do romantismo nascente, correspondente ao movimento literário «Sturm und Drang» (Tempestade e Ímpeto).  
A crítica foi muito negativa, na estreia da  3ª Sinfonia de Beethoven.  Porém, a nova estética acabou por triunfar. Os músicos românticos, após a morte de Beethoven, foram célebres: Mendelssohn, Schubert, Liszt, Chopin, Berlioz, etc. A estes, seguiu-se uma segunda e uma terceira vaga. Na época do romantismo ascendente não são produzidas peças «delico-doces», associadas pelo público à expressão música romântica. A ideia do romantismo como música «lamecha» e com falta de imaginação, tem origem na utilização de fórmulas, por pessoas sem talento, mas que se atreviam a compor.
A música e a poesia romântica vão de par com uma sensibilidade emancipatória, envolvendo as determinantes nacionais e sociais.
 
Os heróis românticos não dependiam senão do seu destino. O seu devir era moldado por suas características psicológicas; pela sua capacidade em amar, o seu sentido do dever, a sua determinação. Também existe a imagem estereotipada do herói/heroína que sucumbe ao destino trágico: Eles lutam até ao limite de suas forças. São vencidos, mas não resignados. 
Mesmo a vertente «negra» do romantismo (ver poema de Baudelaire, abaixo*),  não implica uma renúncia ao bem ou ao que há de saudável nos humanos e na sociedade. Se Baudelaire adota, nalguns poemas, uma pose «decadentista» ou mesmo «satânica», isso deve-se, sobretudo, à sua condição pessoal: ele sofre, mas não aceita esse sofrimento com resignação. A revolta é percetível, em muitos dos seus poemas.

                       Foto de Charles Baudelaire, por Nadar

*
Charles BAUDELAIRE
1821 - 1867

Épigraphe pour un livre condamné

Lecteur paisible et bucolique,
Sobre et naïf homme de bien,
Jette ce livre saturnien,
Orgiaque et mélancolique.

Si tu n'as fait ta rhétorique
Chez Satan, le rusé doyen,
Jette ! tu n'y comprendrais rien,
Ou tu me croirais hystérique.

Mais si, sans se laisser charmer,
Ton oeil sait plonger dans les gouffres,
Lis-moi, pour apprendre à m'aimer ;

Ame curieuse qui souffres
Et vas cherchant ton paradis,
Plains-moi !... sinon, je te maudis !