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quinta-feira, 11 de abril de 2019

HOMO LUZONENSIS: O QUE NOS CONTA ESTA DESCOBERTA SOBRE NOSSO PASSADO

                



                       

Esta descoberta, agora anunciada, de Homo luzonensis, mas cujo sítio arqueológico vem sendo escavado desde há alguns anos, reforça o facto da arvore evolutiva do género Homo

             


ter uma estrutura arborescente, que nos foi ocultada pelo facto da espécie Homo sapiens (a nossa) ter invadido e dominado todos os habitats da Terra, tendo sido um factor decisivo na extinção doutras espécies concorrentes, do género Homo [H. neanderthaliensis, H. denisovans, H. floriesensis, H. luzoniensis (?)], que connosco coexistiram. 
Esta visão é reforçada com a descoberta numa gruta na ilha de Luzon, Filipinas. Esta descoberta vem no seguimento de outra, a de Homo floriesensis, em 2004, na Ilha das Flores (Indonésia). 
Um facto importante é o de que Homo erectus, cuja existência se estende por mais de um milhão de anos, saiu de África e dispersou-se pelo continente asiático, atingindo os arquipélagos do que são hoje a Indonésia e as Filipinas. Porém, esta dispersão geográfica e no tempo originou variantes e novas espécies que se especializaram em determinados ambientes. 
Não irei reproduzir aquilo que escrevi a propósito de Homo floriesensis. Mas é evidente que tanto a espécie alcunhada com o nome de «Hobbit», como esta de Luzon, só podem ter como ascendência o Homo erectus. Aliás, isto é reforçado pela existência de instrumentos de pedra e marcas de talhe em ossos de rinoceronte com 700 mil anos, encontrados não longe da gruta de Callao o local, nas Filipinas, onde foram descobertos os restos de Homo luzonensis.

Quanto ao «grande feito» de o género Homo ter alcançado ilhas hoje distantes, penso que existe uma certa exploração sensacionalista nas notícias:
- primeiro, porque nos longuíssimos intervalos de tempo da evolução do género Homo, existiram vários episódios em que os níveis dos oceanos foram muito mais baixos (lembremos o estreito de Behring e a língua de terra chamada Beríngia, de onde vieram os primeiros colonizadores do continente americano). Em certas épocas, a separação entre as ilhas britânicas e o continente europeu (as costas francesas de hoje) era tão pequena, que manadas a atravessavam e no seu encalço, iam bandos de humanos...

- e segundo, não é nada espantoso que estes hominídeos tenham fabricado jangadas ou canoas escavadas em troncos de grandes árvores: a indústria lítica é apenas a que subsiste, após muitas centenas de milhares de anos, mas sabemos - por outras culturas ditas da «idade da pedra» - que os artefactos de pedra eram sempre uma minoria. Calcula-se que as culturas do paleolítico tinham cerca de 80% de instrumentos em madeira, fibra vegetal ou peles e tendões animais ; por que motivo o Homo erectus, que fabricava instrumentos de pedra, não teria também artefactos em madeira? 

Não me parece razoável imaginar que um desenvolvimento separado, a partir de símios, viesse dar origem a seres com características típicas da linhagem humana. Antes favoreço a hipótese de que um longo isolamento - decorrente da transformação de penínsulas em ilhas  - tenha separado definitivamente as populações iniciais de Homo erectus presentes, quer na Ilha das Flores (Indonésia), quer na Ilha de Luzon (Filipinas). 
Se, de facto, existem sinais inequívocos de indústria lítica e de caça com 700 mil anos, é provável que a população desse tempo tenha evoluído em total isolamento até cerca de 50 mil anos, modificando-se para se adaptar às condições singulares do ambiente. 
É bem conhecida a tendência para o nanismo em muitas populações de mamíferos isoladas durante longos anos em ilhas. O mesmo aconteceu com as populações de H. erectus naquelas ilhas asiáticas. 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

H. ERECTUS durou mais que todas as outras espécies de Homo, nossa incluída

 Há cerca de 100.000 anos, a espécie Homo sapiens partilhou a Terra com - pelo menos - outras cinco espécies do género Homo.             

            

Os últimos Homo erectus terão vivido na ilha de Java, há apenas cerca de uma centena de milhar de anos. Esta datação foi efectuada em fósseis que já eram conhecidos, mas nos quais se conseguiu efectuar novas datações mais precisas, por métodos sofisticados.  A equipa da Universidade de Austin, Texas, que fez este estudo concluiu que os ossos fossilizados datam de 117.000 a 108.000 anos, segundo publicação na revista Nature.

Os H. erectus surgiram em África há cerca de 1.9 milhões de anos. Estes homininos, que fabricavam instrumentos de pedra,  saíram deste continente e colonizaram a Ásia, atravessando línguas de terra que ligavam Java ao continente asiático, há cerca de 1.6 milhões de anos. Mais tarde, os níveis dos mares subiram e a população de Java ficou isolada numa ilha. Entretanto, no continente africano e na Ásia continental, os H. erectus extinguiram-se, há cerca de 500. 000 anos.

É pouco provável que H. erectus tenha sobrevivido por muito tempo em Java, para além dos 100.000 anos. Crê-se que, quando o homem moderno chegou, há pouco mais de 40.000 anos à ilha de Java, os seus primeiros habitantes já estivessem extintos há longo tempo. 
O H. erectus deixou porém uma impressionante herança. Muitos pensam que ele originou duas outras espécies, à medida que ocupava ilhas de arquipélagos da Ásia do Sudeste, como é o caso das espécies H. floresiensis, na ilha de Flores (Indonésia) e H. luzonensis, encontrado na ilha de Luzon, nas Filipinas. Até certo ponto, terá havido cruzamentos com Denisovanos, próximos parentes dos Neandertais. Por sua vez, os Denisovanos ter-se-ão cruzado com homens modernos, na Indonésia e na Nova Guiné, talvez há somente 30.000 anos. Por via indirecta, é possível que algum ADN de H. erectus tenha ido parar aos humanos do Sudoeste da Ásia actuais, pois estes possuem, além do ADN Neandertal e Denisovano, cerca de 1% de ADN que não provém destas duas espécies e do qual não se sabe a origem. Embora esta hipótese seja meramente especulativa de momento, o facto é que - há cerca de 100.000 anos atrás - co-existiram numerosas espécies do género Homo: Homo erectus, Homo sapiens, Homo neanderthalensis, Homo denisovans, Homo floresiensis, H. luzonensis. 
Os seus territórios podem ter estado muito separados nalguns casos mas noutros, houve coexistência, a qual terá sido pacífica, pois só neste caso se teriam proporcionado as condições de cruzamentos inter específicos, de que resultaram os segmentos de ADN transportados até hoje por largos sectores da humanidade...

As sucessivas descobertas e a revolução conceptual que elas desencadeiam, talvez sejam a mais importante mudança do nosso modo de ver a evolução da humanidade e, mesmo, da própria visão do ser humano. 
Em vez do modelo linear, temos um modelo arborescente, no qual apenas a nossa espécie terá sobrevivido, não sem se ter cruzado (por hibridizações interespecíficas) com outras. 
Transportamos um pouco dessa humanidade extinta no nosso ADN, o qual contribuiu para aquilo que somos hoje, enquanto espécie e enquanto indivíduos. 

Esta visão arborescente da nossa evolução deveria deixar-nos mais humildes. Devíamos deixar de nos ver como um «culminar» da evolução: o caso da nossa espécie ser única representante actual do género Homo, é um resultado fortuito, não tem nada de transcendente! 

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

DIÁLOGOS SOBRE O FENÓMENO HUMANO


 Publicamos aqui um primeiro diálogo entre um Paleoantropólogo e uma Geneticista. 

P - Este desafio de falar sobre o humano é tão arrojado e, ao mesmo tempo, inescapável para alguém com a minha profissão. Nas fronteiras do humano, estão interrogações filosóficas quer nós nos debrucemos sobre o passado (evolução humana), o presente (antropologia cultural) ou o futuro (prospetiva). Quanto à ciência genética, que também faz parte das ciências que a paleoantropologia utiliza, o que te parece ter sido mais relevante, no que ela trouxe ao debate constante sobre este tema?

G- Eu sei que o paradigma dominante é - não apenas na genética - de um certo determinismo. Isso traduz-se no imaginário popular, como alguém tendo herdado o gene W, terá uma expressão do gene correspondente. Isto não é válido, como sabemos e os cientistas com certeza todos sabem que isso não funciona exatamente assim mas, ao nível mais profundo, mais epistemológico, há uma crença arreigada na determinação dos genes. 

P- Sim, há a velha e falsa polémica de «genes» versus «cultura», mas que evidentemente não leva a nada pois as coisas não são separáveis. É exatamente como a história de «quem veio primeiro: A galinha, ou o ovo».

G. No campo da genética, costuma-se separar as especialidades moleculares (o estudo dos genes e suas sequências), da genética das populações (como evoluíram as populações, como é que tais ou tais genes e conjuntos de genes se segregaram ou reuniram nas populações, neste caso, populações humanas). Mas, a utilização massiva e mesmo corriqueira de indicadores genéticos (sequências) em populações passadas ou presentes, em muitos estudos, veio agora tornar muito fluida a fronteira do que seja do domínio da «genética  molecular» ou da «genética das populações».

P- No campo da antropologia, a herança de um neo-darwinismo dogmático - que não deve ser confundido com as precoces, mas valiosas, contribuições de Darwin  - contribuiu para uma visão linear da evolução humana, com a agravante de querer que os achados sucessivos se enquadrassem dentro da tal visão estreita de uma «evolução progressiva», tendente a «um tipo perfeito de humano, que seria o Homo sapiens». Dessa distorção resultaram muitos preconceitos, difíceis de eliminar. Por exemplo, a correlação estreita da inteligência com a capacidade craniana, mesmo  estimada na proporção do total da massa corporal. Verificou-se que H. luzonensis e H. floriesiensis tinham capacidade craniana muito menor que os vários exemplares (contemporâneos alguns) de H. erectus, encontrados em várias ilhas do Sudeste Asiático. Ambas as espécies (luzonensis e floresiensis) eram, não apenas fabricantes de instrumentos de pedra, como tinham habilidade de caçar animais perigosos e de porte muito maior; sinal seguro de certo grau de inteligência. Se a correlação entre a massa cerebral e inteligência fosse linear, estas espécies teriam apenas o intelecto de chimpanzés e as realizações destes símios, ou seja, seriam apenas capazes de usar instrumentos «ready made» (pronto a usar), paus e pedras que encontrassem.  

G- As descobertas da genética nos finais do século passado e no  século XXI também foram de molde a destruir algumas falsas verdades, como a universalidade da transmissão mendeliana dos carateres ou a possibilidade de transmissão hereditária de informação «material», por oposição a «cultural», por uma outra via, que não a do ADN. Isto torna caducos uma série de modelos e mesmo de teorias em genética, pois não se baseiam nesta «nova» genética, mas numa genética onde a transmissão dos carateres hereditários se faria estritamente segundo as leis mendelianas e estava exclusivamente codificada nos genes, formados por sequências de nucleótidos. Mas de facto conjugar as recentes descobertas ao nível molecular e celular, com os dados de observação das populações, é muito difícil. A teoria neodarwiniana dos anos 30-60 do século passado fez isso, na chamada «síntese neodarwiniana», porém este modelo ficou caduco, passados poucas décadas depois de ter triunfado. A partir da descoberta dos intrões (anos 1970-80) e  de um conjunto de descobertas que formam a base do que chamamos a epigenética, até então insuspeitadas. Mas, esta «síntese neodarwiniana» fascinou as mentes, ao ponto de muitos cientistas se «agarrarem» a ela, visto não existir nenhuma outra teoria global que a substitua.

P - O que acabas de relatar é muito interessante e tem analogias em vários ramos do saber. No domínio da paleoantropologia por exemplo, a tipificação de uma espécie, muitas vezes a partir de um número reduzido de fósseis, cria (mentalmente) uma categoria estanque. Ou seja, essa espécie (admitindo que fosse real) só podia ter evoluído transformando-se noutra, mais recente, ou extinguindo-se e deixando espaço para outra espécie ocupar o nicho ecológico, deixado vazio. Assim, a existência (constatada hoje, para além de qualquer dúvida, graças à genética molecular) de hibridações interespecíficas, em antecessores dos humanos, não era concebida ou era considerada heresia, pelos paleoantropólogos há 30 anos atrás. A revolução conceptual da descoberta de grandes pedaços do genoma neandertal e denisovano nas populações humanas atuais, ainda está por «digerir» inteiramente. É difícil, para alguém que sempre pensou a evolução enquanto sucessão de mutações, conducentes a uma melhor adaptação, formando espécies cada vez mais aperfeiçoadas, ser confrontado com o modelo oposto: Uma evolução ramificada, com múltiplas introgressões, na árvore evolutiva humana e pré-humana.

G- A imagem que nos fica na Paleoantropologia, na Genética e mesmo de outras ciências, é que a ideia do humano está datada. Nós construímos uma civilização com base num humanismo renascentista, o qual tinha toda a razão de existir, quando apareceu e nos séculos imediatos. Mas agora, embora não seja a «morte do Homem» é - parece-me - a morte da imagem que nós temos de nós próprios. Não achas que o vazio e a incerteza daí decorrente podem ser ocasião para se afirmarem ideologias tão absurdas e nefastas como o racismo, o eugenismo, etc.? O transumanismo é apontado, por alguns, como sendo o futuro mas creio que estamos perante a imposição autoritária, mais uma vez, dum modelo de poder sobre a humanidade. 

P- Sim, o desejo de poder é o que carateriza melhor as elites eugenistas (que continuam a existir) e que propagam, através dos seus meios consideráveis, a sua visão do mundo. Elas fazem-no em relação ao transumanismo, mas também em relação à Nova Ordem Mundial. Têm ideias malthusianas e nós todos sabemos como isso acaba. As visões de «fim do mundo» são propaladas por alguns, amplificadas e retomadas por pessoas que nem suspeitam como foram influenciadas. De facto, a humanidade no seu todo complexo, não é mais evoluída que outra espécie qualquer. Não faz sentido dizermos que somos mais evoluídos que os gorilas ou que os golfinhos. Porque as espécies de gorilas e de golfinhos que existem à face da Terra hoje, são as que subsistiram, depois de milhões de anos de evolução. Quer por acaso, quer por estarem melhor adaptadas ao seu ambiente, estas espécies nossas contemporâneas sobreviveram, outras desapareceram. A ideia de uma evolução «progressiva» embora muito atraente para o espírito está centrada na nossa existência, é o mito do antropocentrismo. Nós, subjetivamente, pensamos estar cá nesta Terra porque fomos os mais aptos, mais evoluídos que outros hominídeos. Mas, isso não se passa assim. Há muito de arbitrário, de caótico, na evolução das espécies e nós - humanos - somos apenas uma entre  milhões de outras espécies e os mecanismos que se aplicam a essas outras espécies, também se aplicam a nós. 

G- É difícil ao público, em geral, apreender que somos diferentes do que idealizamos, como autoimagem. Mesmo para os cientistas, custa a crer que sejamos uma espécie entre milhões. Esta ideia - por mais que seja aceite intelectualmente- esbarra com crenças profundas: A «natureza humana», a «essência de ser-se humano», tudo isso vai esbarrar com a biologia, porque esta não tem que assumir valores, esta limita-se a usar critérios (questionáveis e mutáveis) do que se considera humano ou não. Por exemplo, se nós tivermos um ADN dum fóssil com cerca de 200 mil anos, portanto contemporâneo de seres humanos " modernos mais antigos", visto que existiram H. sapiens em África nessa época, mas esse fóssil apresentar características humanas e outras não-humanas. Se esse ADN revelar que em termos de sequências «consensuais» com os genes humanos atuais, existe uma divergência importante, embora menor que em relação aos outros símios ... Como classificar esses fósseis? Estou a pensar em Homo naledi  

P- Sim, o problema que colocas, no fundo, envolve toda a problemática da classificação. Nós sabemos que a classificação começou a ser uniformizada, pela ciência, na época de Lineu. Nesse tempo, a Criação era vista como uma coisa estática, as espécies estavam definitivamente formadas e não se entrecruzavam no estado selvagem. Os poucos híbridos conhecidos eram entre animais domésticos. Por isso, o conceito de espécie surgiu como algo de «natural» quando, na verdade, era apenas uma construção arbitrária do intelecto. Toda a ciência biológica recorre a este conceito, mesmo quando ele é muito pouco apropriado, como em Bacteriologia, Virologia, ou Micologia...

G- Sim, a ciência está ligada a construções históricas de conceitos, não havendo possibilidade de transformar esses conceitos, senão através de múltiplas ruturas. Por exemplo o conceito de gene, que é tão recente afinal: Ele data do início do século XX, assim como a própria palavra «gene». Este conceito evoluiu de forma decisiva e hoje já não tem grande coisa que ver com a ideia de «gene», dos melhores e mais avançados geneticistas dos anos 1920... Penso que tanto o conceito de gene, como o de espécie perduram porém, porque têm algo de útil, por muitas exceções que possamos colocar às respetivas definições. O conceito de espécie, como sendo de indivíduos que se entrecruzam livremente no seu ambiente natural e dando descendência fértil, é posto em causa em múltiplos casos, no Reino dos Fungos, das Bactérias ... Mesmo nas Plantas superiores, o conceito não é pacífico, pois é tão frequente a fecundação cruzada (em ambiente natural) entre espécies aparentadas, dando híbridos viáveis e férteis. Isto é do conhecimento dos estudantes em Botânica. 

P- Muitas polémicas em paleontologia e em paleo-antrolopogia estão centradas em torno das definições dos termos, em torno de semântica. Ás vezes, parecem-me mais a afirmação de egos, do que  debate científico. Poucas pessoas têm a noção de que os cientistas são gente comum, com sentimentos comuns, com reações comuns. Alguns elementos destacam-se, como em todas as profissões, pela sua criatividade, originalidade, etc. Mas, por vezes , fico com a sensação de que os próprios cientistas de colocam numa «casta» à parte, nada interessada em dar publicidade às suas teorias e descobertas, para além do círculo restrito dos seus pares. Mas, este comportamento elitista está a mudar, devido à enorme quantidade de jovens cientistas, de todos os cantos do mundo, que investigam e que são o motor real da investigação. Sem eles, a ciência seria morta, seria uma «seita» esotérica, sem qualquer relação com a realidade do mundo. 

G- Sim, a educação científica progrediu muito, em termos de quantidade e de qualidade. Mas, ainda tem de percorrer um vasto percurso. Eu penso que ainda poderá ser alcançado outro patamar, porque a ciência não é esotérica, é a forma de conhecimento que deveria ser a mais aberta, por definição. Vejo também uma crescente participação de mulheres em todos os ramos da investigação o que, não apenas reflete sua igualdade, em termos intelectuais, mas também a imagem que as jovens têm delas próprias.

P- Bom tema para a próxima troca entre nós, G: A problemática da ciência e a sexualidade humana! Até breve!

G- Gostei muito desta primeira conversa. Estou de acordo em pegar no tema que propuseste. Até breve!

 


quinta-feira, 24 de junho de 2021

EVOLUÇÃO HUMANA ARBORESCENTE

Nos anos 70, em que estudei biologia na faculdade, a visão clássica da evolução humana era de um percurso linear, com a linhagem evolutiva que iria dar origem à nossa espécie, emergindo de um tronco comum ancestral. 

                  

         https://observador.pt/2015/09/10/descoberto-primo-misterioso-da-raca-humana-na-africa-do-sul/

Ao longo desse percurso evolutivo linear, as fronteiras entre as diferentes espécies do género Homo eram pouco nítidas, mas a possibilidade de ter havido uma sobreposição era descartada, como sendo resultante do muito pouco que sabíamos na altura. Este estado de coisas, podemos agora dizê-lo, era devido a uma influência ideológica na Ciência da Evolução. A linearidade mais era uma construção académica, do que um facto de observação. Mas, isso satisfazia a mente humana. Pelo menos da maioria, que gosta de imaginar processos lineares, gosta de fronteiras bem delineadas e de mecanismos que se coadunem com categorias estanques. Esta maneira de ver o humano, o seu evoluir, o ser biológico, foi completamente subvertida em menos de meio-século.

Não apenas as espécies de homininos não se revelaram conjuntos genéticos fechados, estanques, como sua progressão também não obedeceu a um modelo linear, mas arborescente.

                             Four ancient human skulls (H. erectus, H. heidelbergensis, H. neanderthalensis, H. sapiens) on a black background.

 

Figura: 

Quatro das sete espécies humanas que viveram em África e na Eurásia ao mesmo tempo há centenas de milhares de anos (H. erectusH. heidelbergensisH. neanderthalensis, H. sapiens) © The Trustees of the Natural History Museum, London

O nosso conhecimento sobre as espécies antepassadas de Homo sapiens e sobre os Homo sapiens mais antigos sofreu uma aceleração e uma transformação radical com a técnica de isolamento, purificação e sequenciação de genomas em ossadas quase completamente fossilizadas. 

                                             
Foi assim que se descobriu com espanto (cerca de 2010) uma nova espécie humana (contemporânea de H. sapiens e a H. neanderthalensis), Homo denisovans, presente na gruta de Denisova (daí o seu nome) na Sibéria. Talvez tão espantoso como isso, foi o facto dos cientistas terem chegado a essa conclusão, não pelos atributos anatómicos dos restos fossilizados, mas pela sequência do genoma extraído do osso de um dedo. 
Mais tarde, verificou-se que existia uma percentagem da ordem de 2-4% do ADN dessa espécie no genoma de populações contemporâneas, na Ásia do sudeste em particular. 

Mas, estas espécies humanas - Homo neanderthalensis e Homo denisovans - coexistiram, no tempo e no espaço com a nossa espécie (Homo sapiens). Houve fluxo de genes entre elas e temos a prova disso nos genomas atuais da humanidade contemporânea. 

Entretanto, ainda há muito por descobrir: «Sequências mistério» estão presentes em vastas populações africanas subsaarianas. Espera-se, um dia, obter ADN de um fóssil que corresponda às referidas «sequências mistério». 

Outra impressionante e recente descoberta foi a de Homo naledi, um hominino que viveu até há cerca de 300 mil anos, ou seja, contemporaneamente aos Homo sapiens mais antigos, que têm essa mesma idade. H. naledi contradiz muitas ideias-feitas: se não tivesse havido, no local da sua descoberta, um manancial de ossos fossilizados juntos e que permitem uma reconstituição particularmente precisa, teria sido possível imaginar que os ossos cranianos fossem atribuídos ao género Homo, enquanto os ossos não-cranianos seriam compatíveis com o género Australopithecus.

Descobriram-se, entretanto, duas outras espécies na zona do sudeste asiático, H. floresciensis na Ilha das Flores, hoje na Indonésia [ver reconstituição, abaixo]

                

... e H. luzonensis (na Ilha de Luzon, hoje nas Filipinas). Ambas as espécies apresentam características distantes do «tronco principal» do género Homo. Além disso, o isolamento originou formas de tamanho reduzido. Este fenómeno é típico de espécies insulares e foi observado em muitas outras espécies.  Os processos de especiação na linhagem humana não diferem, nos mecanismos e nos resultados, do que se tem observado noutras linhagens de vertebrados. 

Temos de reconhecer que as novas evidências mostram uma evolução radiante (ou seja, arbustiva e não linear) com períodos de intensa produção de novidades, seguidos de períodos em que espécies do mesmo género vão evoluindo em paralelo, porém, com esporádico entrecruzamento (introgressão) entre espécies próximas parentes. Com efeito, são conhecidos híbridos de Homo sapiens e H. neanderthalensis; de H. sapiens e H. denisovans; e de H. denisovans e H. neanderthalensis. 

A evolução humana, afinal, tal como noutros grupos de espécies animais, parece enquadrar-se melhor no modelo de «equilíbrios pontuados» de Niles Eldredge e  Stephen Jay Gould, ou seja, de longos períodos estacionários, pontuados por períodos de mudança acelerada, com a formação rápida de novas espécies.



Darwin fez descer o Homo sapiens do «pedestal», mas um mecanismo de autoilusão teimava em ver a evolução humana como um processo «gradual» e «singular», culminando na espécie única, que habita hoje o planeta. Porém, a evolução humana não se coaduna com um modelo gradual. Quanto ao facto - na atualidade - de apenas existir uma espécie do género Homo, não tem nada de extraordinário: há uma quantidade de outras espécies vivas, que são as únicas representantes atuais de géneros que já possuíram muitas outras espécies.

Nós, humanos de hoje, somos a espécie única, sobrevivente do género Homo, mas afinal como um «mosaico», como o resultado de várias espécies que conviveram e se entrecruzaram, no passado. Carregamos, no íntimo do nosso genoma, o testemunho dessas outras espécies extintas, com as quais nos cruzámos. Essas sequências genéticas fazem parte do património genético da nossa espécie. Foram salvaguardadas pela evolução, devido a terem valor adaptativo, como o gene conferindo a capacidade de viver a grandes altitudes (genes denisovanos em populações tibetanas), ou os genes da imunidade celular (genes neandertais presentes em europeus e asiáticos).

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PS1: Já depois de ter publicado este artigo, li a notícia da descoberta em Israel de uma nova espécie humana, anterior e contemporânea de neandertais. Esta notícia vai ser tema de um artigo neste blog, proximamente.

PS2: Um crânio em ótimo estado de conservação proveniente do norte da China foi revelado recentemente. Especula-se que poderá ser uma nova espécie do género Homo ou pertencer à espécie H. denisovans.