Publicamos aqui um primeiro diálogo entre um Paleoantropólogo e uma Geneticista.
P - Este desafio de falar sobre o humano é tão arrojado e, ao mesmo tempo, inescapável para alguém com a minha profissão. Nas fronteiras do humano, estão interrogações filosóficas quer nós nos debrucemos sobre o passado (evolução humana), o presente (antropologia cultural) ou o futuro (prospetiva). Quanto à ciência genética, que também faz parte das ciências que a paleoantropologia utiliza, o que te parece ter sido mais relevante, no que ela trouxe ao debate constante sobre este tema?
G- Eu sei que o paradigma dominante é - não apenas na genética - de um certo determinismo. Isso traduz-se no imaginário popular, como alguém tendo herdado o gene W, terá uma expressão do gene correspondente. Isto não é válido, como sabemos e os cientistas com certeza todos sabem que isso não funciona exatamente assim mas, ao nível mais profundo, mais epistemológico, há uma crença arreigada na determinação dos genes.
P- Sim, há a velha e falsa polémica de «genes» versus «cultura», mas que evidentemente não leva a nada pois as coisas não são separáveis. É exatamente como a história de «quem veio primeiro: A galinha, ou o ovo».
G. No campo da genética, costuma-se separar as especialidades moleculares (o estudo dos genes e suas sequências), da genética das populações (como evoluíram as populações, como é que tais ou tais genes e conjuntos de genes se segregaram ou reuniram nas populações, neste caso, populações humanas). Mas, a utilização massiva e mesmo corriqueira de indicadores genéticos (sequências) em populações passadas ou presentes, em muitos estudos, veio agora tornar muito fluida a fronteira do que seja do domínio da «genética molecular» ou da «genética das populações».
P- No campo da antropologia, a herança de um neo-darwinismo dogmático - que não deve ser confundido com as precoces, mas valiosas, contribuições de Darwin - contribuiu para uma visão linear da evolução humana, com a agravante de querer que os achados sucessivos se enquadrassem dentro da tal visão estreita de uma «evolução progressiva», tendente a «um tipo perfeito de humano, que seria o Homo sapiens». Dessa distorção resultaram muitos preconceitos, difíceis de eliminar. Por exemplo, a correlação estreita da inteligência com a capacidade craniana, mesmo estimada na proporção do total da massa corporal. Verificou-se que H. luzonensis e H. floriesiensis tinham capacidade craniana muito menor que os vários exemplares (contemporâneos alguns) de H. erectus, encontrados em várias ilhas do Sudeste Asiático. Ambas as espécies (luzonensis e floresiensis) eram, não apenas fabricantes de instrumentos de pedra, como tinham habilidade de caçar animais perigosos e de porte muito maior; sinal seguro de certo grau de inteligência. Se a correlação entre a massa cerebral e inteligência fosse linear, estas espécies teriam apenas o intelecto de chimpanzés e as realizações destes símios, ou seja, seriam apenas capazes de usar instrumentos «ready made» (pronto a usar), paus e pedras que encontrassem.
G- As descobertas da genética nos finais do século passado e no século XXI também foram de molde a destruir algumas falsas verdades, como a universalidade da transmissão mendeliana dos carateres ou a possibilidade de transmissão hereditária de informação «material», por oposição a «cultural», por uma outra via, que não a do ADN. Isto torna caducos uma série de modelos e mesmo de teorias em genética, pois não se baseiam nesta «nova» genética, mas numa genética onde a transmissão dos carateres hereditários se faria estritamente segundo as leis mendelianas e estava exclusivamente codificada nos genes, formados por sequências de nucleótidos. Mas de facto conjugar as recentes descobertas ao nível molecular e celular, com os dados de observação das populações, é muito difícil. A teoria neodarwiniana dos anos 30-60 do século passado fez isso, na chamada «síntese neodarwiniana», porém este modelo ficou caduco, passados poucas décadas depois de ter triunfado. A partir da descoberta dos intrões (anos 1970-80) e de um conjunto de descobertas que formam a base do que chamamos a epigenética, até então insuspeitadas. Mas, esta «síntese neodarwiniana» fascinou as mentes, ao ponto de muitos cientistas se «agarrarem» a ela, visto não existir nenhuma outra teoria global que a substitua.
P - O que acabas de relatar é muito interessante e tem analogias em vários ramos do saber. No domínio da paleoantropologia por exemplo, a tipificação de uma espécie, muitas vezes a partir de um número reduzido de fósseis, cria (mentalmente) uma categoria estanque. Ou seja, essa espécie (admitindo que fosse real) só podia ter evoluído transformando-se noutra, mais recente, ou extinguindo-se e deixando espaço para outra espécie ocupar o nicho ecológico, deixado vazio. Assim, a existência (constatada hoje, para além de qualquer dúvida, graças à genética molecular) de hibridações interespecíficas, em antecessores dos humanos, não era concebida ou era considerada heresia, pelos paleoantropólogos há 30 anos atrás. A revolução conceptual da descoberta de grandes pedaços do genoma neandertal e denisovano nas populações humanas atuais, ainda está por «digerir» inteiramente. É difícil, para alguém que sempre pensou a evolução enquanto sucessão de mutações, conducentes a uma melhor adaptação, formando espécies cada vez mais aperfeiçoadas, ser confrontado com o modelo oposto: Uma evolução ramificada, com múltiplas introgressões, na árvore evolutiva humana e pré-humana.
G- A imagem que nos fica na Paleoantropologia, na Genética e mesmo de outras ciências, é que a ideia do humano está datada. Nós construímos uma civilização com base num humanismo renascentista, o qual tinha toda a razão de existir, quando apareceu e nos séculos imediatos. Mas agora, embora não seja a «morte do Homem» é - parece-me - a morte da imagem que nós temos de nós próprios. Não achas que o vazio e a incerteza daí decorrente podem ser ocasião para se afirmarem ideologias tão absurdas e nefastas como o racismo, o eugenismo, etc.? O transumanismo é apontado, por alguns, como sendo o futuro mas creio que estamos perante a imposição autoritária, mais uma vez, dum modelo de poder sobre a humanidade.
P- Sim, o desejo de poder é o que carateriza melhor as elites eugenistas (que continuam a existir) e que propagam, através dos seus meios consideráveis, a sua visão do mundo. Elas fazem-no em relação ao transumanismo, mas também em relação à Nova Ordem Mundial. Têm ideias malthusianas e nós todos sabemos como isso acaba. As visões de «fim do mundo» são propaladas por alguns, amplificadas e retomadas por pessoas que nem suspeitam como foram influenciadas. De facto, a humanidade no seu todo complexo, não é mais evoluída que outra espécie qualquer. Não faz sentido dizermos que somos mais evoluídos que os gorilas ou que os golfinhos. Porque as espécies de gorilas e de golfinhos que existem à face da Terra hoje, são as que subsistiram, depois de milhões de anos de evolução. Quer por acaso, quer por estarem melhor adaptadas ao seu ambiente, estas espécies nossas contemporâneas sobreviveram, outras desapareceram. A ideia de uma evolução «progressiva» embora muito atraente para o espírito está centrada na nossa existência, é o mito do antropocentrismo. Nós, subjetivamente, pensamos estar cá nesta Terra porque fomos os mais aptos, mais evoluídos que outros hominídeos. Mas, isso não se passa assim. Há muito de arbitrário, de caótico, na evolução das espécies e nós - humanos - somos apenas uma entre milhões de outras espécies e os mecanismos que se aplicam a essas outras espécies, também se aplicam a nós.
G- É difícil ao público, em geral, apreender que somos diferentes do que idealizamos, como autoimagem. Mesmo para os cientistas, custa a crer que sejamos uma espécie entre milhões. Esta ideia - por mais que seja aceite intelectualmente- esbarra com crenças profundas: A «natureza humana», a «essência de ser-se humano», tudo isso vai esbarrar com a biologia, porque esta não tem que assumir valores, esta limita-se a usar critérios (questionáveis e mutáveis) do que se considera humano ou não. Por exemplo, se nós tivermos um ADN dum fóssil com cerca de 200 mil anos, portanto contemporâneo de seres humanos " modernos mais antigos", visto que existiram H. sapiens em África nessa época, mas esse fóssil apresentar características humanas e outras não-humanas. Se esse ADN revelar que em termos de sequências «consensuais» com os genes humanos atuais, existe uma divergência importante, embora menor que em relação aos outros símios ... Como classificar esses fósseis? Estou a pensar em Homo naledi
P- Sim, o problema que colocas, no fundo, envolve toda a problemática da classificação. Nós sabemos que a classificação começou a ser uniformizada, pela ciência, na época de Lineu. Nesse tempo, a Criação era vista como uma coisa estática, as espécies estavam definitivamente formadas e não se entrecruzavam no estado selvagem. Os poucos híbridos conhecidos eram entre animais domésticos. Por isso, o conceito de espécie surgiu como algo de «natural» quando, na verdade, era apenas uma construção arbitrária do intelecto. Toda a ciência biológica recorre a este conceito, mesmo quando ele é muito pouco apropriado, como em Bacteriologia, Virologia, ou Micologia...
G- Sim, a ciência está ligada a construções históricas de conceitos, não havendo possibilidade de transformar esses conceitos, senão através de múltiplas ruturas. Por exemplo o conceito de gene, que é tão recente afinal: Ele data do início do século XX, assim como a própria palavra «gene». Este conceito evoluiu de forma decisiva e hoje já não tem grande coisa que ver com a ideia de «gene», dos melhores e mais avançados geneticistas dos anos 1920... Penso que tanto o conceito de gene, como o de espécie perduram porém, porque têm algo de útil, por muitas exceções que possamos colocar às respetivas definições. O conceito de espécie, como sendo de indivíduos que se entrecruzam livremente no seu ambiente natural e dando descendência fértil, é posto em causa em múltiplos casos, no Reino dos Fungos, das Bactérias ... Mesmo nas Plantas superiores, o conceito não é pacífico, pois é tão frequente a fecundação cruzada (em ambiente natural) entre espécies aparentadas, dando híbridos viáveis e férteis. Isto é do conhecimento dos estudantes em Botânica.
P- Muitas polémicas em paleontologia e em paleo-antrolopogia estão centradas em torno das definições dos termos, em torno de semântica. Ás vezes, parecem-me mais a afirmação de egos, do que debate científico. Poucas pessoas têm a noção de que os cientistas são gente comum, com sentimentos comuns, com reações comuns. Alguns elementos destacam-se, como em todas as profissões, pela sua criatividade, originalidade, etc. Mas, por vezes , fico com a sensação de que os próprios cientistas de colocam numa «casta» à parte, nada interessada em dar publicidade às suas teorias e descobertas, para além do círculo restrito dos seus pares. Mas, este comportamento elitista está a mudar, devido à enorme quantidade de jovens cientistas, de todos os cantos do mundo, que investigam e que são o motor real da investigação. Sem eles, a ciência seria morta, seria uma «seita» esotérica, sem qualquer relação com a realidade do mundo.
G- Sim, a educação científica progrediu muito, em termos de quantidade e de qualidade. Mas, ainda tem de percorrer um vasto percurso. Eu penso que ainda poderá ser alcançado outro patamar, porque a ciência não é esotérica, é a forma de conhecimento que deveria ser a mais aberta, por definição. Vejo também uma crescente participação de mulheres em todos os ramos da investigação o que, não apenas reflete sua igualdade, em termos intelectuais, mas também a imagem que as jovens têm delas próprias.
P- Bom tema para a próxima troca entre nós, G: A problemática da ciência e a sexualidade humana! Até breve!
G- Gostei muito desta primeira conversa. Estou de acordo em pegar no tema que propuseste. Até breve!