Abaixo, um texto meu de 2013 (publicado nos «Cadernos Selvagens», Nº1)
«A Grande Ilusão»*
A Ilusão da Política
Num terreiro de santo, durante uma cerimónia de Candomblé, as pessoas
participantes assumem um comportamento em consonância com a situação. Todos os
gestos, danças, palavras, cânticos, estão fortemente ancorados numa tradição,
significam algo, são um rito, no sentido mais forte do termo. Os
intervenientes, no auge do rito, começam a estrebuchar e atingem um êxtase
«histérico», possuídos pela divindade invocada.
Para adeptos da religião
sincrética afro-americana, estes rituais são plenos de sentido, são o sentido
verdadeiro, revelado, de suas vidas. Elas recorrem ao pensamento mágico, o qual
funciona plenamente, na medida em que a sociedade o compartilha, dá um aval
permanente, possui uma «teoria do mundo» completa, auto-satisfatória,
auto-referente.
A nossa soberba, apenas, nos faz
desprezar estas formas de actuar em comunidade, como destituídas de
«racionalidade». O facto profundo, não pode, porém ser negado: as pessoas
dentro destas comunidades têm uma integração de sua individualidade, são seres
de uma «família espiritual», quer sejam ou não membros de uma mesma família
genética ou legal.
Começo por me referir a estas
comunidades e a estes rituais, com o propósito de fazer ressaltar que o
bem-pensante, supostamente «superior», «cheio de saber», de «cultura», ficou – porém
- muito longe da capacidade dos mais «primitivos» em integrar o indivíduo na
comunidade, tendo abafado os meios mais poderosos de identificação e de
expressão de identidades colectivas, construídas com base em tradições, usando
narrativas de origem, capazes de fornecer uma explicação globalmente
satisfatória do cosmos.
Chamar o candomblé para o início
do capítulo «A Ilusão da Política», pareceu-me lógico e luminoso: a política é
uma actividade integradora do indivíduo numa comunidade, assim como – a um
nível diferente, embora – a religião, os rituais e cerimónias do candomblé.
A «verdade» da política de
todos os seus actos, de toda a sua retórica, pode parecer racional e
transparente a quem nela participe por dentro; porém, não deixa de ser curiosa
e estranha para quem a observa do exterior. Este estranhamento do observador
externo, tal como perante o ritual de uma qualquer religião, mantém-se e até se
reforça, quando ele está sobejamente informado da teoria/teologia que enforma
os actos políticos.
Se tivesse
de explicar a situação a uma inteligência vinda do espaço exterior, diria que a
política é coisa inventada há alguns milhares de anos e actualizada sucessivas
vezes, como o meio habilidoso de subjugar pessoas, os súbditos ou cidadãos,
que têm de se adaptar a viver sob um soberano.
A
artimanha de dizer que o povo é «o soberano» já não engana ninguém, nem sequer
o mais ingénuo. Foi, porém, proclamando tal credo ou convicção e em nome do
povo «soberano» que se desfraldaram bandeiras revolucionárias, se fizeram e
aplicaram leis, mesmo as mais iníquas. Hoje, continua o lamentável espetáculo
da política, sem a mínima consideração pela cidadania.
Como se molda um cidadão para que ele,
subjugado não seja capaz de equacionar os seus verdadeiros interesses? Para
que não
comece a pensar pela sua própria cabeça?
Uma
panóplia considerável de meios tem vindo a ser desenvolvida: nas idades mais
precoces, a criança é confrontada com uma série de proibições, de interditos,
para os quais não existe qualquer «razão», senão a vontade dos adultos. No
sistema escolar, obrigam a criança a efectuar múltiplas tarefas, a decorar
coisas estúpidas e sem sentido, a papaguear as respostas que lhe ensinaram,
abafando qualquer curiosidade legítima em indagar como são realmente as coisas.
Dizem-lhe que tem de estudar isto e aquilo, para ser a melhor e mais competente,
não obstante nenhum dos educadores saber realmente justificar a bondade e
utilidade de tais saberes. Na realidade, é a própria autoridade, a submissão
ao poder que estão a inculcar-lhe desde tenra idade.
A
justificação de que os «bons» alunos sempre alcançam uma posição social
correspondente ao esforço e mérito da sua aprendizagem, é uma falácia
de todo o tamanho, mas repetida por todos, desde professores aos próprios pais,
quer acreditem ou não nela. Cedo a juventude se apercebe de que a riqueza e a origem
social são tão ou mais decisivos na ascensão profissional e social do que o
mero êxito académico. Mas, na grande maioria dos casos, permanecem incapazes de
contrapor outro modelo, outra forma de ver o mundo. Nem sequer têm outra noção
de justiça, pois a visão ideológica dominante – que nunca se afirma como tal, sempre
apresentada como «natural» - insinua-se a cada momento da sua vida.
A visão
que impregna tanto os discursos dos mais eruditos, como o quotidiano mais banal
é a de que apenas a organização hierárquica é racional e natural, de
que ela apenas corresponde a uma arrumação «justa» das pessoas, segundo o seu
mérito. É assim que se torna «natural» a visão meritocrática que lhe
está associada. Este mecanismo, de justificação circular, permite manter a ilusão
nas pessoas: - Os que obtiveram satisfação e sucesso na escala hierárquica,
julgam-se investidos de mérito, o qual terá sido – segundo eles - decisivo para
alcançarem a referida situação.
- Os insatisfeitos,
os frustrados, estão convictos de que não se lhes fez justiça, de que não se
lhes reconheceu o verdadeiro mérito. Costumam refugiar-se na esperança numa «vingança»,
individual ou social (uma mudança de regime, uma revolução), segundo a qual, finalmente,
lhes será dado o devido mérito, enquanto os atuais privilegiados ficarão
relegados para o fundo da pirâmide social. Entre estes dois extremos, a maioria
acaba por se conformar, num grau maior ou menor. Os fracassos ou vitórias de
sua existência medíocre devem-se exclusivamente àquilo que fizeram ou deixaram
de fazer individualmente, com referência a uma escala convencional de
mérito social, segundo a qual têm «aquilo que merecem».
Ciência política?
Edward Bernays, autor do livro «Propaganda» (1928), está para a psicologia Public Relations (PR),
como seu tio Freud para a psicanálise. Bernays sabia que se podiam controlar as
«massas» de forma tão eficaz como os generais comandam as suas tropas. Não
apenas sabia isso, como forneceu «receitas» para fazê-lo eficazmente; a partir
de seus trabalhos, foram desenvolvidas as técnicas de sofisticado controlo social.
Não será por acaso que esta ciência aplicada - resultante, em grande
parte, da sua leitura redutora do freudismo - se revelou e teve um enorme
sucesso no momento de persuadir os
cidadãos dos EUA que o país devia entrar na Iº Guerra Mundial, embora inicialmente
o povo fosse maioritariamente contrário a isso. Tamanho sucesso fez com que a
«ciência» da propaganda fosse universalmente copiada, desde então, inclusive aplicada
por regimes com as ideologias políticas mais diversas, como o soviético, ou o
nazi. Segundo Goebbels, ministro de Hitler: «uma mentira repetida um milhar de vezes, passa a valer como verdade».
O combate ideológico-propagandístico foi de tal modo intenso e decisivo
entre as duas guerras, que o termo «propaganda», inicialmente neutro, começou
então a adquirir uma conotação
pejorativa. Ficou associado ao clima de instabilidade, de guerra civil,
que conduziu à IIª Guerra Mundial. Foi a partir desta data que a aplicação de
várias disciplinas científicas - da psicologia social à psicanálise, da
sociologia à estatística - deixou de se chamar «propaganda», tendo sido
rebatizada como «public relations»
ou PR. Tornou-se um instrumento indispensável aos governos, na medida em
que eles já não podiam contar
meramente com a força bruta e o medo, como forma exclusiva ou principal de
manutenção da ordem.
Desde então, as guerras são antecedidas e acompanhadas pela artilharia
pesada do condicionamento maciço, do terrorismo psicológico: «numa guerra, a primeira baixa é a verdade».
Isto ficou bem patente no condicionamento das massas levado a cabo pela casta
dirigente dos EUA, nas vésperas da guerra contra o Iraque em 2003. *
Mas a sua utilização não se limita a tais momentos; não é exclusiva de
prelúdios de guerras, nem de outros momentos de crise. Tem sido um instrumento
fundamental de dominação quotidiana; a aplicação dos princípios de Bernays está
totalmente banalizada, tendo
entrado nos costumes, não apenas da política, como de todas as atividades
económicas, com suas campanhas de «marketing» e de publicidade.
O condicionamento das massas recorre à panóplia
de técnicas da psicologia e dispõe de poderosíssimos meios, mediáticos,
financeiros e outros. Hoje, estamos a viver numa sociedade como a descrita por
Orwell no seu romance «1984», de ficção científica e sociológica.
O uso de técnicas de condicionamento tem vindo a
assumir um peso cada vez mais importante. O elemento psicológico tornou-se o
instrumento de controlo e domínio preferido. Os poderosos já não podem recorrer
ao controlo das pessoas, como no passado, simplesmente instilando medo físico, ameaça física direta e
brutal. O medo tem de ser difuso,
tanto mais aterrorizador quanto mais vago e nebuloso. Esse sentimento de insegurança é difundido de forma
subtil, sem que o cidadão se aperceba, condição sine qua non para que a manipulação surta efeito. Obviamente, esta
mudança – condicionamento das massas, em vez da força bruta - não foi obra de
mentes generosas, imbuídas de humanismo. Tornou-se inevitável, sendo mesmo exigida pelas mudanças nos próprios
processos de produção.
Hoje, vivemos na época da «sociedade – fábrica»
global: a sociedade, no seu conjunto,
realiza as infinitas tarefas da produção material e de serviços, num mundo
globalizado. O produtor desta era «tardo industrial» já não é o operário
taylorista do princípio do século XX, automatizado a uma monótona repetição de
tarefas e muito menos o operário-artesão, do século XIX, capaz de conceber,
moldar e aperfeiçoar um objeto, expressão de sua arte. O típico operário –
precarizado do século XXI nascente, é um indivíduo com vastos conhecimentos
generalistas (podendo ou não ter um curso universitário) e capaz de se adaptar, de se vergar melhor
dizendo, a quaisquer exigências patronais. Sempre disponível, sempre servidor
do processo produtivo, caracteriza-se pela total flexibilidade; ele tem de estar ao serviço quando e onde, for
necessário.
O processo produtivo, cada vez mais sofisticado,
exige uma cidadania instruída. Mas os oprimidos não podem tomar consciência plena
de sua opressão. Nasceria neles o desejo - e, portanto, potencialmente seriam
capazes - de se libertar do estado de
escravidão presente. Por isso, têm de ser constantemente seduzidos,
cooptados, sua vaidade tem de ser permanentemente alimentada. Assim,
generalizou-se a governação recorrendo à fabricação
do consenso, em paralelo com a expansão dum modelo de economia onde o
motor é o permanente desejo de consumir, a criação de necessidades artificiais.
Como seria
de esperar, surgem reações à imposição de uma falsa escolha entre um capitalismo de Estado, todo-poderoso e
garantindo proteção total ao sujeito, regime designado erroneamente por
«comunismo» ou «socialismo» e uma governação de facto submissa aos ditames das
grandes corporações multinacionais, seguindo uma teologia de mercado, o
neoliberalismo.
Existem muitas correntes, com génese e
desenvolvimento diversos, que procuram afastar-se das dicotomias abafantes da
guerra fria: a crítica radical da
«sociedade do espetáculo» (Guy Debord em França e outros no movimento
situacionista, que antecederam e «deram o tom» ao «Maio de 68»), a defesa dos consumidores e do ambiente,
com diversificada expressão cívica (movimentos de consumidores e ambientalistas),
o novo feminismo - não já
centrado na afirmação duma mera igualdade política (direito de voto, etc.) -
mas antes numa libertação da sexualidade e na igualdade de género. Talvez o que
une esses movimentos sociais tão diversos entre si é a afirmação da dimensão ética, sua desconfiança ou
mesmo rejeição, nalguns casos, da dimensão política, pelo menos da política
institucionalizada.
O crescimento dos movimentos sociais na multidão
tem sido contrariado por campanhas permanentes de calúnia, ocultação, deturpação
e recuperação. Veja-se o caso da criminalização
da dissidência, nomeadamente dos movimentos anarquistas e
altermundistas, no virar do milénio. Mas, quando apesar de tudo, numa fração do
público jovem se mantém ou mesmo cresce a simpatia por tais movimentos, as
campanhas publicitárias vão revestir-se
das aparências de «contestação» e «rebeldia». Tais campanhas vão revestir
o contorno exterior, o símbolo, para melhor se apossarem do potencial de «sonho
e rebeldia» que esses movimentos transportam, canalizando os desejos de saciar
a frustração através do consumo.
Não importa que se manipule um símbolo revolucionário, ou antissistema, mas que
esse símbolo se «venda bem» e - com ele- a imagem de marcas associadas à
simbologia. Isto tem sido patente na publicidade dirigida aos jovens, para
consumirem produtos que lhes são destinados. Estas operações mobilizam
exércitos de «criativos», «gráficos», «testadores», «vendedores», etc.
Mobilizam uma parte substancial dos lucros; a publicidade absorve uma parte
variável das despesas. Ela representa, em muitos casos, uma fatia tão ou mais
elevada que a produção em si do objeto (ou serviço) a vender. Os «gurus» do
marketing dedicam-se a transpor as
conclusões de estudos científicos para adequarem a estratégia das marcas, para melhor condicionar os
consumidores e/ou os votantes.
Face a esse aparelho e aos meios poderosos, quase
sem limites, de que dispõe será difícil, para não dizer impossível, conseguir-se
que a maioria das pessoas tome consciência plena da manipulação e, sobretudo,
que um número significativo delas se oponha de forma ativa às novas formas de
opressão. A solidez aparente do funcionamento
político-ideológico que se esconde sob as roupagens do marketing advém desta dificuldade do
desmascaramento numa larga escala, face à ubiquidade do condicionamento
coletivo.
Nas sociedades atuais, o controlo não implica supressão das pessoas contrárias ao
sistema; faz-se antes pela subtil
marginalização da dissidência, pela discriminação das obras
iconoclastas, pelo relegar as ideias originais para fora dos parâmetros do
sistema, pela omnipresença do
pensamento único na média. Trata-se de genocídio cultural permanente,
de atentado constante à inteligência das pessoas, dum empobrecimento cultural.
O preço pago pela sociedade é, além da continuidade e do reforço das práticas
de exploração e de alienação, a perda
de diversidade. Esta perda, analogamente as sistemas biológicos, tem
como efeito a fragilização, o empobrecimento permanente do ecossistema social.
As espécies que se extinguem, não são substituíveis em termos eficazes num
ecossistema natural empobrecido. Igualmente, os criadores, os inconformistas,
os visionários, são espécies sociais minoritárias, mas cuja função é essencial
para que as sociedades se transformem, se adaptem e modifiquem, numa palavra,
para a evolução social.
A
gestão pelo medo
Na
sociedade que se desenha no calor da mais recente crise, parece irremediável a
impossibilidade dum indivíduo isolado ou mesmo imerso em grandes «massas», de
fazer algo de concreto e eficaz pela eliminação do mal que o atormenta. Mesmo
quando o indivíduo está ciente de que na raiz de todos os males contemporâneos
se encontra o sistema capitalista de exploração, mesmo assim, não tem a lucidez
mental para procurar o que realmente tem de ser atacado para derrubar o gigante
que o atormenta. O indivíduo foi condicionado a pensar de modo não
problemático para o sistema. Assim, mesmo os indivíduos «antissistema»,
têm uma completa incapacidade de alterar o estado de coisas presente. Ao
existirem como uma curiosidade, um fenómeno, uma extravagância, eles funcionam
como validação
da «bondade» do sistema, pois a sua existência não é diretamente posta
em causa, nas sociedades ditas «ocidentais». Eles são reprimidos, mas não do
modo físico mais cru, mais óbvio. Podem negar-lhes – na prática- os meios de
subsistência, mas sem qualquer aparente perseguição, tudo na maior legalidade e
boa-consciência. Mesmo no país mais «democrático», eles permanecem largamente
ignorados pela média. Nesta, a representação do mundo transformou-se num
segundo mundo, o mundo «espetáculo» / «espelho» pelo qual a realidade tem de
passar para ser admitida como existente. A média provoca «a morte» de tudo o
que vier perturbar o pensamento único, sem ser necessário matar ou prender os potenciais
perturbadores. A reação violenta das pessoas comuns torna-se assim a revolta
que nunca atinge o grau suficiente para se transmutar em revolução.
Muito
sofrimento irá continuar do lado dos milhões, triturados pela recente crise, exatamente
como se fossem números, como se não fossem, afinal, humanos. A contradição
demasiado aparente é a de que a sociedade existe, funciona, se organiza, produz
graças a eles, mas não para eles. Vivemos neste estranho mundo, em que a perda de
milhares de postos de trabalho por dia não emociona dirigentes políticos e
empresariais, em que a humanidade do trabalho se perdeu completamente, se
tornou numa variável de ajustamento, apenas, uma «coisa», uma «mercadoria». A
crise contemporânea mostra como é bem real a afirmação de Marx segundo o qual
se dá, com o advento do capitalismo, a transformação do trabalho em mera
mercadoria.
Porém,
as teorias de vanguardas iluminadas para tomar o poder são meros «panos de
cena» que escondem dos incautos a enorme sede de poder de alguns, autodesignados
como «revolucionários». A negação «radical» de todo o sistema,
da sua política, suas instituições, seu funcionamento económico, apenas a um
nível discursivo, sem tirar consequências táticas e estratégicas, é uma tentação
de adolescente (mesmo quando os que a preconizam sejam velhos). A maturidade
revolucionária só pode surgir quando se tornar clara para todos a
necessidade de transformar o pensamento em ação e de fazer um retorno constante
da ação para o pensamento, ou seja a fertilização da teoria pela prática.
Mas esta visão falha nos líderes dos nossos dias. Pelo contrário, os que
deveriam ter esse papel, parecem deleitar-se com visões ideológicas
ultrapassadas da História e somente para sua autojustificação. Incapazes de visão
estratégica, ficam-se pelas generalidades ocas dos slogans e pelos «efeitos de
palco», numa tragicomédia grotesca.
Por que
razão não se constrói uma teoria revolucionária que seja
adequada ao tempo presente? Um caminho da emancipação verdadeira, não dum novo totalitarismo?
A razão
desta impossibilidade é simples de se compreender: É apenas possível «agarrar»
os problemas que temos ao alcance solucionar. Estes e somente estes. Os outros,
ou são ignorados, ou vistos de modo tão parcial, tão incipiente, que não
estamos em condição de os colocar em equação. Isto é válido em todos
os domínios, desde a ciência física, à sociologia. A realidade do mundo está
sempre muito para lá das teorias instituídas para explicação desta
mesma realidade. Há um lapso de tempo, geralmente longo,
entre o fenómeno histórico e a construção duma teoria satisfatória
para a sua interpretação.
Dois
efeitos se conjugam para tornar muito difícil a construção de teoria sobre
acontecimentos históricos. Tais efeitos são tanto mais intensos, quanto mais
próximo o nosso próprio tempo de vida for do tempo dos referidos acontecimentos:
O
«efeito retrospetivo»: as consequências dos acontecimentos que se
pretende analisar não eram nenhuma fatalidade para os contemporâneos dos
mesmos, que, na maior parte dos casos, nem de longe anteviram essas mesmas
consequências. Muitas vezes, pensa-se precisamente o contrário, o que é
absurdo, como se os contemporâneos devessem ter conhecimento do que seria a futura
«marcha da História». Pior ainda, atribui-se uma fatalidade ao desenrolar dos
acontecimentos, interpretando o que se passou num dado momento em função do que
ocorreu posteriormente, como se o futuro determinasse o passado.
O
«efeito subjetivo»: o ponto de vista pessoal do historiador é projetado
– de modo não consciente, muitas vezes - nos factos; seleciona o que acha
relevante, rejeita aquilo que vai contra as suas teses, enfatiza o que parece
corroborar as suas teorias, omite ou distorce até à caricatura pontos de vista
antagónicos aos dele. Transforma assim, de forma descarada ou subtil, a
História: deixa de ser uma procura desapaixonada, científica da verdade,
passa a ser narrativa ideológica, destinada a fornecer argumentos a favor
das suas ideias.
Ninguém consegue
manter uma total imunidade, face a estes dois escolhos recorrentes na atividade
de investigação em História. Um teórico que tenha enormes cuidados
metodológicos poderá – no melhor dos casos - fazer uma «teoria de revoluções
passadas». Porém, essa teoria não se deveria projetar para os dias de hoje, nem
para o futuro. Pois a realidade é que poderá guiar a teoria e não o inverso.
Verdade evidente, mas que merece ser enunciada, porque há muitas pessoas sérias
que «se esquecem» dela e pensam/agem como se tal não fosse assim!
Não
existe nenhuma fatalidade no devir histórico. O sonho de Laplace de ter
o futuro completamente conhecido pela descrição minuciosa de todas as massas e
forças do Universo é falso -até mesmo em teoria: o princípio de incerteza de
Heisenberg mostra a impossibilidade de tal ocorrer (quanto maior precisão
tivermos para medir a energia de um corpo, menor precisão obtemos na medição do
seu movimento e vice-versa).
O determinismo
social é totalmente falso. O efeito conjugado das inúmeras ações
humanas é impossível de modelizar. Com efeito, para cada situação
histórica concreta seria necessário ter a capacidade medir e ponderar de forma
operacional as inúmeras forças e ações recíprocas que ocorrem e se refletem nos
vários níveis do real social.
A
tendência para uma narrativa teleológica é antiga, tem raízes
muito fundas, inscritas nos livros sagrados das religiões. No século XIX, foi
laicizada por Hegel e por Marx. Muitos contemporâneos copiaram
inconscientemente o modelo de «materialismo histórico» de Marx ou seja, vêm a História
como a realização de um devir necessário da humanidade.
Somente, a finalidade última deixou de ser a sociedade comunista; em vez desta,
Fukuyama, por exemplo, profetiza o «fim da História» ou seja uma democracia de
mercado, emanação última dum capitalismo aperfeiçoado, purificado.
As
teorias totalizantes que pretendem dar conta da História passada, presente e
futura, são meras construções ideológicas que apenas laicizam as narrativas
míticas das diversas religiões. São como as das religiões, mas sem deuses!
A ilusão económica
A natureza caótica da atividade
humana está sempre a ser reduzida pela pseudociência chamada «economia».
Trata-se de uma crença religiosa, propalada (acriticamente) pela média, pelos
políticos de todos os quadrantes e pela generalidade dos cidadãos.
A crítica da economia, ciência fictícia
que nos assola e ainda torna mais graves os desequilíbrios causados pelas
atividades humanas, tem sido feita por alguns, de forma completa e profunda,
não irei aqui retomar os seus argumentos.
Apenas vou referir o mito do PIB
(Produto Interno Bruto), suposto medir o conjunto da atividade económica dum
país, num ano. Muitas das decisões políticas, muitas avaliações ao nível dos
mercados, têm em conta esse valor. O que significa que lhe é atribuído um papel
de primeira importância monitorização da economia de um país.
Nesta contabilidade estão
inscritas como «positivas», atividades que muito justamente se considera que não
são produtivas, como sejam a recolha de impostos ou os pagamentos de
capitais e juros de empréstimos junto de entidades externas, mas cujo aumento
provoca um aumento correlativo do PIB.
Também são contabilizados e vão fazer
crescer o PIB, o fabrico de armas e munições ou até a sinistralidade
rodoviária, cujos efeitos são «benéficos» para esse «crescimento»: desde a
reparação automóvel à indústria da sucata, desde os serviços de urgência até aos
cuidados de saúde subsequentes e mesmo os serviços das agências funerárias,
resultantes da morte dos sinistrados! Claro que nem a guerra (destruição), nem a
preparação da mesma (acumulação de instrumentos de destruição) são atividades
que produzem real riqueza, em termos humanos. Igualmente, os
acidentes rodoviários são causadores de imenso sofrimento humano, além de uma perda
económica considerável. Quer a guerra, quer acidentes rodoviários, porém,
têm efeitos positivos no PIB.
É bastante trágico que não se
adote uma visão mais realista e sensata, tanto neste como em muitos outros
casos, tendo em conta que uma medição errada vai conduzir a diagnósticos falsos
e a medidas tragicamente inadequadas.
Certamente os monopolizadores do
discurso e do poder sabem isto muito bem. Mas, quer o governo, quer os grandes
detentores de riqueza, ao falarem «economês», estão essencialmente a produzir
um discurso para convencimento do cidadão/consumidor/votante. Este discurso
não tem da cientificidade, senão os adornos mais exteriores. Alguns cientistas
ou académicos põem o seu brilhantismo intelectual ao serviço dos poderes supra
citados para fazer passar como válida a pseudociência da economia, que
apenas é discurso de poder disfarçado. Num nível mais abaixo, numa
escala muito maior, um exército de «técnicos- formigas», seguindo os cânones da
ortodoxia, produz e interpreta constantemente gráficos e tabelas, para que as
restantes formigas sigam pelo carreiro, façam sempre aquilo que é suposto fazerem!
A realidade social de hoje é apenas
compreensível se tivermos presente o condicionamento maciço e universal. Ele assume
uma forma totalitária, não visível, mas dissimulada. Conseguiram inventar «feromonas»
perfeitas para o controlo do formigueiro humano.
Não deveríamos
nos surpreender pelo facto dos modelos económicos serem tão incapazes de fazer
previsões credíveis. Por muitas garantias que os economistas nos deem, de
relações do tipo causa e efeito, isso não passa de gabarolice. Estão
completamente destituídos de verdadeiros instrumentos de conhecimento, quando
traçam as suas curvas, onde os fatores humanos reais ficam de fora. Ninguém de
bom senso deveria se deixar guiar por modelos de previsões financeiras.
Isto porque quem os inventa, simplesmente, recorre às suas próprias previsões ou
intuições primeiro e constrói um modelo em seguida, para fazer coincidir tais
previsões com as realidades de hoje. Todos deveriam compreender a diferença
entre um modelo e a realidade: ninguém deveria estranhar que umas equações sejam
incapazes
de modelizar corretamente a evolução do comportamento das pessoas e dos
mercados. Muitas pessoas, mesmo com um grau notável de cultura científica,
deixam-se seduzir pela aparente cientificidade dos modelos em economia, não
questionando a metodologia que os subjaz. Perpetua-se assim o mito do
economista como uma espécie de sábio, de perito universal, um oráculo consultado
pelos poderosos, tanto no governo como nas empresas.
A Ilusão
Globalista
Por volta de 1998 o mundo mediático celebrava a vinda de um
novo milénio com otimismo. Todos -ou quase- cantavam laudas ao triunfo, sem
mácula, da «generosa e benevolente» democracia ocidental. Havia algumas
«arestas» a arredondar, porém, nomeadamente nos Balcãs. Com a nova doutrina da
intervenção humanitária, a força da NATO desencadeou a primeira guerra no solo
europeu desde 1945! Num crime de guerra perpetrado para «defender» os direitos
humanos, face a uns maus que -neste caso- eram as forças sérvias, numa guerra civil
contra um «exército de libertação» da Albânia Kosovar. Esses paladinos da
liberdade e dos direitos humanos, financiados, protegidos, treinados,
enquadrados pelo ocidente, não eram mais afinal que um grupo terrorista, usando
métodos odiosos, contra civis etnicamente sérvios, atribuindo depois as valas
comuns ao lado contrário. Não foram poucos os combatentes do UÇK que receberam
instrução e treino militar, no Afeganistão dos Taliban, com os quais
partilhavam a mesma ideologia “jihadista”. Mas nada disso importava, pois se
tratava de «salvar os pobres kosovares» indefesos perante os «selvagens
nacionalistas sérvios».
Vem isto a propósito da memória curtíssima das pessoas,
sujeitas a constantes lavagens ao cérebro. De tal maneira são eficazes, que boa
parte do público passou a considerar, não apenas aceitável moralmente como
até um «dever de civilização» as aventuras militares (elas sim, bárbaras e
genocidas), dos EUA e seus aliados da NATO e outros vassalos locais, numa
sucessão macabra: Jugoslávia, Somália, Afeganistão, Iraque, Iémen, Líbia, Síria
(e Irão ?).
O globalismo não é responsável diretamente pelos crimes
perpetrados pelos «grandes» deste mundo. Mas esta ideologia serve para lhes dar
cobertura, para tornar aceitável o inaceitável, junto duma opinião pública
cobarde, racista, saudosa da era colonial, nos países que foram grandes
potências nos dois séculos anteriores. É necessário que ela fique anestesiada,
passiva perante o horror. Ou que trema, diante de horrores falsos ou
verdadeiros, apresentados como vindos do inimigo, o tal que ninguém é capaz de
identificar: «o terrorismo»*.
Note-se que, durante muitos anos após o fim da segunda guerra
mundial, o horror dos campos de concentração e de todo o período nazi foi
ocultado das pessoas. Poucas pessoas souberam ou suspeitaram da escala e
extensão completa da máquina industrial de morte do nazismo, não
apenas no decurso da sua vigência, como mesmo alguns anos depois da
derrota do nazismo. Agora parece que há maior interesse em desenterrar
esse passado (já não tão) recente horripilante. Será para que as pessoas, por
ilógico que pareça, deixem de ver o que se passa agora como essencialmente
o mesmo, apesar de estar «diante dos seus olhos»? Há todo um processo
de negação ilusória, de denegação, em relação aos horrores
presentes, perpetrados pela ordem imperial global.
Há uns cerca de 50 anos, alguns intelectuais corajosos
souberam denunciar a barbárie, mostra-la sem disfarce: Simone Weil, Sartre,
Camus, Hannah Arendt, e outros… Nos dias de hoje, poucas vozes se levantam:
dois nomes de intelectuais norte americanos - Noam Chomsky e Naomi Klein-
vêm-me logo à cabeça, mas tenho dificuldade em encontrar nomes célebres, do
lado de cá do Atlântico: onde estão os intelectuais europeus de grande valor,
destemidos, corajosos, que recusam fazer a reverência ao poder, seja em que
circunstância for? Não são fáceis de identificar, embora existam. Isto deve-se,
não a serem de «fraca estatura intelectual», mas pela sua eficaz neutralização
(blackout mediático). Não é por acaso ou capricho que o complexo mediático
contemporâneo se encontra associado ao poder, mas porque partilha
o interesse básico em manter o «Status quo». Sabe fazê-lo em conivência total
com os poderosos, mas de forma camuflada, para iludir o
público incauto.
O espetáculo das grandes cimeiras, das conferências
internacionais, é apenas um «Theatrum Mundi», no qual os altermundistas representam
um «folclore» de dissidência, pelas manifestações que as acompanham e que «justificam»
a mobilização de forças de polícia armadas até aos dentes, numa exibição de
poder, de intimidação, que não deixa nenhuma dúvida sobre quem são os
«senhores» e os súbditos.
Uns, os «dirigentes», estão a representar a tragicomédia
grotesca do poder, em salões alcatifados, nos jantares com iguarias
requintadas, aperaltados em trajes de cerimónia, ou em roupa desportiva,
conforme a ocasião. Outros, «os populares», estão a ser reprimidos com bastões elétricos,
com a roupa encharcada por canhões de água, no meio de nuvens de gás-pimenta.
Obviamente, os primeiros não são os «representantes legítimos» dos segundos.
Porém, de que legitimidade se reclamam? Eles são apenas os mandatários das grandes
corporações, da grande finança e sabem-no bem. Em nenhuma circunstância
se esquecem do seu papel, pois a sua ascensão à elite e manutenção nesta mesma,
depende inteiramente da sua fidelidade canina. Dizem-se representantes dos
votantes ordeiros das nações que os elegeram. Isso não é problema para «os
senhores», pois esses tais votantes ordeiros ficam quietinhos diante dos seus
televisores a ver o grande espetáculo da política. Ou seja, os representados
não se atreverão nunca ou sonharão jamais pedir contas e esclarecimento cabal
do que fizeram os seus representantes!
Mas este
espetáculo político das grandes cimeiras (G7,G8, G20, ONU, NATO, UE, FMI, OMC,
etc.) não pode durar muito, para não enfastiar o «eleitor médio»! Então, é
preciso alguma diversão: o «desporto», outro monstruoso circo planetário, é
servido copiosamente. Torna-se mesmo o causador de ruína dos países que
albergam estes eventos: veja-se o que aconteceu à Grécia após as olimpíadas
de Atenas de 2004, a Portugal após o Euro 2004 e o que
está a acontecer, nestes dias (escrevo em 22/06/2013), no Brasil, que se prepara para o
Mundial de futebol.
Os poderes
dizem sempre, mentindo, que o evento se paga a si próprio com as receitas do
turismo, as royalties das transmissões, as somas pagas pelos patrocinadores e
grandes empresas, as promoções, etc. Porém, o que acontece fatalmente é que são
os contribuintes desses países a ter de pagar a fatura, sem qualquer benefício
de longo prazo (Os estádios construídos em Portugal para o Euro 2004, não servem para nada, dão prejuízo, ao ponto de as câmaras já pensarem implodi-los para ao menos dar finalidade útil a estes espaços!).
Se eu pudesse
renascer daqui a 500 anos, admitindo que a civilização humana tivesse sobrevivido,
não ficava admirado se os humanos dessa época futura olhassem estes últimos 20
anos (1993-2013) como início duma nova «idade das trevas».
A ideologia
globalista (com retórica de esquerda ou de direita, tanto faz), tem legitimado
esta descida aos infernos, sempre em nome de valores «humanistas», de
religiões, etc. com um desprezo absoluto pelos humanos reais, contrariando a
essência de toda e qualquer espiritualidade da qual se reclamem, seja ela de
tradição cristã, muçulmana, budista, etc…
Tem de se reconhecer que os «reflexos identitários», as
derivas xenófobas, são a outra face da deriva «globalista»: a
outra face, não a alternativa. Podem
ambas coexistir e é fatal que coexistam, pois estamos num jogo circular, onde a
imensa maioria é composta por figurantes inconscientes, manipulados, alguns
porém com a aparência de serem «ativos», pois estão imbuídos das certezas
fanáticas dos «crentes».
A origem da ideologia globalista deve ser procurada
nas Luzes, na filosofia do Iluminismo. Pode ser considerada como uma das suas
filhas prediletas. A sua irmã gémea, o «progressismo», muito em voga no século
XIX e mesmo numa boa parte do século XX, está aparentemente a sofrer um grande
revés. Porém, genericamente, tanto o progressismo, como o humanitarismo, ou
ainda o internacionalismo, são nomes sinónimos do globalismo. Note-se que esta
ideologia foi muito naturalmente assumida e revindicada quer pelo capitalista,
quer pelo anticapitalista. Prova, a meu ver, da sua tendência totalizante, com
muito natural deslize para justificar ideologias diversas, incluindo as
totalitárias.
O nascimento e crescimento da ONU e das entidades
supranacionais ou internacionais (a NATO, o extinto «Pacto de Varsóvia», a CEE,
depois EU, a NAFTA, a OUA, a OCDE, ASEAN, etc.) ao longo da segunda metade do
século passado, foi acompanhado pela sua tendência para se imiscuírem em
assuntos internos dos diversos países. Revestindo-se de uma falaciosa
legitimidade, chegam ao ponto de arrogar-se o direito de intervenção armada,
bombardeando e destruindo com o propósito explícito de derrubar o poder vigente
nesses países. Estas intervenções catastróficas e criminosas são invariavelmente
«justificadas» com a defesa dos valores humanitários, da liberdade, da
democracia, etc.
A ideia estúpida e criminosa de que os valores
«progressistas» ou «democráticos» têm de ser impostos pela força aos povos
que não se sentem nada inclinados a venerá-los, tem sido a responsável pela
justificação de crimes hediondos, que não podem senão desencantar qualquer
pessoa que assuma realmente os valores do Iluminismo, de
Voltaire, Rousseau, Locke, Franklin, etc…
A Ilusão da Comunicação
Global
Na incapacidade (criada e
nutrida) de intervenção cidadã por parte do «indivíduo comum»,
desviado por «n» fatores para coisas completamente acessórias e irrelevantes,
uma das maiores ilusões é a dele poder influenciar destinos coletivos, dos
países e mesmo do Mundo, através das redes eletrónicas de comunicação global.
Esta inflação do ego é mantida e acarinhada pelos mentores da casta política,
qual clero moderno, cultivando a versão atualizada da ilusão
universalista, que tão bem serve a causa da globalização.
Voltaire dizia: «Il faut
bien cultiver notre jardin» (É preciso cultivar bem o nosso jardim).
Neste lema encontra-se o
fundamento dum posicionamento cada vez mais fértil. Com efeito, muitas vezes, é
quando 99,999% das pessoas desprezam uma ideia, um objeto, um saber, etc., que
isso tem maior valor real e merece ser acarinhado.
Seguindo este princípio, a
comunicação direta e pessoal surge de novo como a verdadeira riqueza da
comunicação humana, permitindo autenticidade e requinte, valores que não se
baseiam no quantitativo, mas no qualitativo: é rico, aquele que sabe - em
si mesmo e no seu entorno - encontrar a beleza e o prazer e deles disfrutar. É
pobre aquele que precisa sempre de mais e mais para saciar a sua gula de
sensações e de poder, num afã de consumo.
A sociedade atual, como se
pode verificar a todo o momento, é feita de pessoas pobres, mas empobrecidas
pela sua estupidez.
Reflexão sobre
pensamento-ação
A máxima de Voltaire «É
preciso cultivar bem o seu jardim» parece-me ser cada vez mais atual. Ela vem
contradizer muitos dos escritos, inclusive dele, de pendor universalista,
característicos do iluminismo. Sabemos que aí reside boa parte da raiz
filosófica do internacionalismo ou globalismo atuais.
Ele reconheceu - e bem, a
meu ver- que tinha errado, que o importante era fazer-se bem aquilo que estava ao
nosso alcance transformar.
No fundo, isto não é muito
diferente do princípio de ação direta: Está nas nossas mãos fazer
algo; então, vamos fazê-lo diretamente, sem pedir intervenção dum
intermediário, dum representante, dum eleito, para agir em nosso nome. O
representante acaba por distorcer ou mesmo anular a nossa vontade, pela lógica
inerente à natureza representativa, não por maldade ou perversidade da
sua personalidade.
O princípio do localismo
(“cultivar o nosso jardim”) parece-me confluir harmoniosamente com o princípio
da ação
direta. Ambos são complementares e definidores de uma ética da
ação.
Quando na esfera pública
(ou política), somos colocados perante o dilema seguinte:
A) Não podemos ter uma
atitude constante de abstenção, de alheamento, pois há coisas muito importantes
em jogo;
B) Ao agirmos, sabemos que
irão surgir muitos parâmetros escondidos que apenas a ação faz revelar. A
consequência dos nossos atos é sempre algo distante da nossa intenção primeira,
por vezes até, exatamente oposta ao que foi desejado por nós.
Sempre tal dilema
acontecerá, num grau maior ou menor, ao agirmos na complexidade do social. Porém,
na esfera privada ou semi-pública, podemos intervir com maior autocontrolo,
autodeterminação: mais vale focalizar o nosso esforço naquilo que realmente se
pode influenciar. Agir no seio da família, do círculo de amigos, no emprego, na
vizinhança etc., deve ser mais eficaz, por princípio e
portanto preferido, em relação a uma intervenção política no sentido
convencional. Uma ação é eficaz, na medida em que transforma efetivamente;
mas a intervenção política típica ocorre ao nível do discurso, do simbólico,
não se traduz em mudança real.
O recentramento não se deve colocar apenas no agir, mas também no
pensar. Devemos repensar as relações entre pessoas (e agir sobre o nosso modo
de intervir na esfera interpessoal).
O mesmo se aplica em
relação a nós próprios. Como nos situamos relativamente a uma série de
conceitos, de princípios ou de ideias? Muitos foram-nos inoculados: a moral é
sempre um efeito do social sobre o individual.
Este recentramento que proponho tem como consequência desejável -
perante pirâmides de conceitos e pré-conceitos que nos atulham a mente- o varrer
de tudo o que seja falsa consciência (alienação) para se chegar
ao núcleo da nossa reflexão-ação.
A nossa intervenção
esclarecida e controlada será tanto mais poderosa quanto for coerente
com o mencionado núcleo de reflexão-ação. Isto, obviamente, sem
esquecer que a realidade - tanto exterior, como também interna, a psique - nos
irá colocar incontáveis obstáculos.
No momento em que a
sociedade se esgota com falsas lutas, apenas apoiadas nos
egoísmos, mesmo e quando invoca uma vontade coletiva, que se deve fazer?
Pelo que me toca, tenho
tentado não intervir, pois me iria apenas confrontar com vaidades diversas.
Isso seria esgotante e não traria nenhum resultado positivo.
Não desisti realmente de
ter intervenção social; mas procuro determinar onde essa ação social possa
eficazmente desenrolar-se.
Embora tenha muitas dúvidas
sobre intervenções políticas, existem – felizmente - outras esferas fecundas de
ação social. Tenho vindo a cultivar o jardim dos vários saberes e saber-fazer,
ao longo da vida: pedagogia, biologia, arte. Isto acaba por ter um reflexo na
sociedade, se houver qualidade nos seus «frutos e flores» e pelo efeito de emulação,
de exemplo, num círculo mais próximo de amizades.
Não é uma postura de fechamento,
de indiferença face aos outros. Pelo contrário, pois trata de fazer o melhor
possível, neste mundo, com a plena noção da realidade, com a consciência de
como os entornos naturais e sociais são complexos e a nossa ação limitadíssima.
Este «jardim» ganha em ser
cultivado em interação com os outros: pensemos na troca de boas
sementes, ou de informações sobre as boas práticas de cultivo.
De que serve um belo
jardim, se é somente para dele se ficar prisioneiro? Deve ser um local de
fruição e partilha com os outros.
Devemos cultivar o nosso
jardim e convidar os outros, para aí connosco passear e cultivá-lo.
* Manuel Banet Baptista (2013)