quarta-feira, 16 de maio de 2018

CRÓNICA SINO-COREANA (POR EDUARDO BAPTISTA)

[adaptado de http://lusoasiatico.com ]
Um Tuga a vaguear pelo Oriente
Yanji: A cidade coreana da China
3 de Maio, 2018 by eddiesuam
Boa tarde lusitanos, espero que o tempo no nosso cantinho da Europa esteja cada vez mais próximo do verão! gostaria de partilhar convosco uma experiência numa cidade no Nordeste China que tive o privilégio de visitar durante cinco dias: Yanji, situada a 1.143 km a Nordeste de Pequim e a 11.000 km de Lisboa.
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Que pena não haver voo directo…

O primeiro fato essencial para poderem perceber o conteúdo presente: Yanji é a cidade principal da prefeitura autónoma de Yanbian, uma das nove que compõem a província de Jilin. De acordo com a Constituição da República Chinesa, este estatuto administrativo aplica-se a todos os territórios dentro das suas fronteiras, que contêm uma etnia minoritária com mais que 50% da população total, ou que se considere ser esse território a sua terra natal, definição por vezes sujeita a contestação. Os direitos conferidos pela Constituição a estas prefeituras autónomas podem ser resumidos da seguinte maneira: primeiro, o prefeito tem que ser da etnia minoritária titular. Segundo, uma série de direitos no âmbito da governação, incluindo a independência na administração das finanças, no planeamento económico e na organização da polícia local. Terceiro, subsídios financeiros e serviços médicos para a etnia minoritária titular. Finalmente, promoção da cultura e língua da etnia minoritária titular.
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Mapa da China inteira. Em cor de rosa, territórios normais.
Em amarelo, prefeituras autónomas das quais Yanbian é
uma delas, no topo do canto direito do mapa.


[... Desconto de tempo, se faz favor...] Minoria étnica? Mas então os chineses não são todos iguais? De olhos rasgados e pele amarela como os patinhos do parque?
- Eu, sendo um patinho amarelo coreano, também pensava o mesmo sobre os meus “primos”, até chegar à China e descobrir que neste país, além dos patinhos amarelos que constituem 92% da população chinesa, também há muitas outras espécies de patinhos de todas as cores, 56 para ser mais exacto. E podem imaginar a minha surpresa quando descobri que das 56 minorias oficiais e reconhecidas pelo estado Chinês, uma delas é a etnia coreana!
[...Outro desconto de tempo, se faz favor…] Calma aí, a Coreia não é aquele país ao pé da China que está dividido em dois, o norte tendo sido sempre liderado por três gordinhos todos eles chamados Kim, o sul pelo presidente da Samsung e a sua secretária? Mais ou menos. Então como pode haver uma etnia “coreana” na China?
- Muito simples. No fim do século 19, muitos coreanos deixaram as suas terras no norte da península coreana antes de haver duas Coreias, situação que só existe desde 1953, e imigraram para as províncias do nordeste da China como Jilin, Heilongjiang, e as outras terras do nordeste que faziam parte da dinastia Ming nessa altura, as conexões com a península coreana não eram poucas. A razão pelo êxodo foi os coreanos irem em busca de terras mais férteis depois de uma série de maus anos agrícolas. Trazendo métodos engenhosos e sofisticados de cultivo do arroz, desconhecidos na China, os imigrantes coreanos rapidamente foram bem acolhidos pelos sucessivos poderes políticos, incluindo o último governo imperial, a frágil república que lhe sucedeu, os invasores japoneses e, por fim, os dois grandes partidos que lutaram pelo controlo da China de 1928 até 1949: O Partido Comunista Chinês e o Partido Nacionalista Chinês, ou Kuomintang.
O nome chinês desta etnia é chaosienzu (鲜族), o nome coreano, josondjok (조선족) Ambas denominações utilizam o nome do reino coreano que cobria a península inteira, chaosien () ou joson (조선). Assim foi designada a minoria, quer antes de 1910, quando este reino se tornou numa província do império Japonês; quer depois de 1953, quando a Coreia, apenas oito anos depois ser libertada do controlo do império Japonês, foi dividida em duas, depois de uma guerra sangrenta que durou mais de 3 anos.
Estes detalhes tornam-se importantes, quando tentamos comparar esta etnia com os seus primos e primas na península. Os sul-coreanos não se designam a si próprios como josondjok. O termo Joson também deixou de ser utilizado, já que o nome oficial do Estado sul-coreano é Daehanminguk, ou “Estado do Grande Povo Han”. Contudo, quando passei quatro dias em Pyongyang, observei que os norte-coreanos usam Joson para referirem-se ao Estado norte coreano, e Namjoson, sul de Joson, para referirem-se à Coreia do Sul. Esta denominação tem como propósito ignorar a Coreia do Sul como Estado legítimo e independente, ignorar a existência da identidade dum povo designado por daehanminguk.
No meio de toda esta intriga histórica e semântica, é importante notar que a etnia coreana da China está numa posição especial entre as duas primas peninsulares. Por um lado, a pronúncia dos josondjok é muito mais parecida com a dos norte-coreanos. Por outro lado, os josondjok sempre gozaram do privilégio de poder arranjar trabalho na Coreia da Sul quando a necessidade, ou o desejo, surgissem. Tenho muito mais para vos contar sobre as relações entre estes três povos mas, antes disso, quero vos apresentar uma breve introdução de Yanji e do seu povo coreano usando fotografias, ilustrando o tema das duas culturas e do bilinguismo.

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À frente do único terminal do pequeno aeroporto de Yanji, constam dois letreiros– “Yanji”, escrito em coreano à esquerda, em chinês à direita– exibem a natureza bilingue desta cidade.

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Saindo pela porta do apartamento, só tive que andar dois metros para direita até me deparar com esta lavandaria. Mais interessante do que a palavra “lavandaria”, em chinês e coreano, coladas nas duas faces da porta, é a palavra em caracteres mais pequenos no painel de vidro à direita. “조선족”, lê-se josondjok, é o nome que os coreanos étnicos da China dão ao seu povo. Ao contrário de Seul, capital da Coreia do Sul onde os coreanos são a maioria e as comunidades imigrantes constituem uma fracção ínfima da população, Yanji é uma cidade pequena, onde os coreanos são minoria numerosa e, por consequência, a importância da “comunidade”, em vez do indivíduo, é muito mais visível.

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Cada vez mais fascinado pelos arredores, olhei para a esquerda: A loja pintada a laranja, “O Nosso Mercado” (우리마트) é uma cadeia que só vende produtos coreanos dispersa por muitas cidades em Jilin, que têm uma população coreana significativa. Este nome, “O Nosso Mercado” é uma demonstração subtil do orgulho que os josondjok sentem por serem coreanos.
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Tudo está escrito em coreano e chinês. O letreiro azul (백락문 노래방) é de um salão de karaoke. Em Yanji, tal como em Seul, parece que cada rua tem um salão de karaoke. O carácter coreano desta cidade torna-se cada vez mais palpável…

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Para nos tornarmos no povo nobre de Yanji, construamos uma cidade grandiosa e digna da China inteira.” Este cartaz, escrito em coreano e chinês, num painel de vidro duma paragem de autocarros no centro da cidade, é um bom exemplo da retórica demagógica do partido. Foi na primeira metade do século 20 que Yanji e o resto dos territórios habitados pelos coreanos adquiriu algum significado para o país inteiro. Trazendo eles sistemas de irrigação e conhecimentos muito sofisticados no cultivo do arroz, o governo e a burguesia do Nordeste (compostas quase somente pela etnia maioritária Han) começou a recorrer a todos os meios disponíveis, a partir do fim do século XIX, para atrair e empregar cada vez mais coreanos para os campos de arroz do Nordeste, que abasteciam o resto do País.
Para entender a importância dos coreanos desta região para o resto do país, basta citar estes dados: em 1934, apesar da população coreana do Nordeste constituir só 3.3% da população total desta região, 90.1% da produção total do arroz desta região vinha das mãos dos coreanos.

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Todas as cidades dentro prefeitura de Yanbian –Yanji, Tumen, Longjing– têm prédios assim: decorados com uma mulher vestida com o traje coreano tradicional (hanbok) e a tocar num tipo de tambor coreano, conhecido por eunggo.
 
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“Memorial da resistência anti japonesa organizada pelos prisioneiros da prisão de Yanji”, inscrição escrita em coreano e chinês. As identidades coreanas e chinesas de Yanji têm um ponto comum: a raiva contra o imperialismo japonês e um orgulho correspondente por aqueles que sacrificaram as suas vidas lutando.

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Esta tabela, faz parte de uma exposição permanente do museu municipal de Yanji, cita os  mártires josondjok que faleceram lutando pelo Exército Popular de Libertação, como indicado pelo título “Tabela mostrando os josondjok de Yanbian que se tornaram mártires revolucionários”  (边朝鲜族自治州革命烈士统一表)
A segunda coluna (县市) lista todas os condados da prefeitura de Yanbian.  Da terceira coluna até à última contabilizam o número de josondjok de cada condado que faleceram em cada guerra em que a China participou. Da terceira até a última célula da primeira linha, a listagem é o seguinte: Conflitos antes da resistência anti-Japonesa (抗日战争前), Resistência anti-Japonesa (抗日战争), Guerra Civil Chinesa (解放战争), Guerra Coreana (抗美援朝), Data de falecimento indefinida (时期不明), Mártires não identificados (无名烈士), Total ().
A pergunta que tem que ser feita é a seguinte: Dos 17735 josondjok que faleceram lutando pela sua pátria, quantos é que realmente consideravam a China, sua pátria? Nós sabemos que o Partido Comunista Chinês tem tido, desde os primeiros anos da sua existência, uma boa relação com os josondjok. Sabemos também que, por esta razão, houve muitos destes coreanos que se ofereceram para lutar contra os sul-coreanos e os seus aliados na Guerra Coreana.  É importante observar que, de todas as guerras listadas nesta tabela, aquela que teve maior número de falecidos é, por uma grande margem, a Guerra Coreana (1950-1953), com 7767 mortos.
Que teriam sentido os soldados josondjok ao voltar para a sua terra ancestral, não com o objetivo de habitar de novo nas terras que deixaram, mas sim para matar homens da mesma etnia que eles?

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Este museu, supervisionado pelo partido, ilustra a identidade mista de Yanbian como sendo harmoniosa. Ás representações teatrais da China Maoista segue-se uma actuação musical de “seoljanggu”, a dança de tambores qemblemática da cultura tradicional coreana.

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Olhando para estas crianças josondjok, de repente lembrei-me duma actuação parecida que vi durante a minha estadia em Pyongyang. No palácio das crianças, vestidas da mesma maneira que esta crianças josondjok, também actuaram em peças e danças que qualquer coreano, quer seja étnico, do Sul ou do Norte, imediatamente reconheceria. A cultura destes três povos, pertencentes a três países diferentes, é de facto a mesma; os objectivos políticos para qual ela é usada... é que variam.

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O título deste placart, posto no fim da exposição, é “Sonho Yanbian” (边梦想), uma alusão ao “Sonho Chinês”(中国梦) que Xi Jinping definiu como objectivo do seu mandato no final de 2012.
O texto declara o seguinte: “A missão e o destino de Yanbian estão dependentes da missão e do destino do país. Só através de desenvolvendo a nação é que Yanbian poderá usufruir de ainda mais desenvolvimento. Vamos esforçar-nos para que o Sonho de Yanbian, que abriu a porta da sabedoria, deu um salto no ar e abriu as asas, também ajude a realização do Sonho Chinês e a prosperidade do grande povo chinês.”  Esta retórica tem o propósito de relembrar aos visitantes desta exposição que, apesar desta etnia ter a sua própria cultura e língua, nada disto está em contradição com o suposto facto de que estes coreanos étnicos são, em primeiro lugar, cidadãos chineses e este país -a China - merece a sua lealdade absoluta.

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…e lealdade absoluta ao Partido Comunista Chinês. Lê-se, da terceira linha até à última linha do primeiro parágrafo: “…sem a liderança sábia do nosso partido, sem o sistema de prefeituras autónomas, é inegável que o sucesso de Yanbian não existiria de todo.”



CORRECÇÃO HISTÓRICA

Contudo, a realidade histórica é de facto outra: durante muito tempo, era a China inteira que estava dependente de Yanbian, com centenas milhões de Han dependentes de umas centenas de milhares de josondjok, que trouxeram sistemas de irrigação e conhecimentos muito sofisticados no cultivo do arroz, durante o século XIX, quando começaram a imigrar em massa para o Nordeste da China.
O governo e burguesia do nordeste (compostas quase somente pela etnia maoritária Han) começaram a tentar usar todos os meios disponíveis, a partir do fim do século XIX, para poderem empregar e atrair cada vez mais coreanos aos campos de arroz do Nordeste. Um destes métodos era a naturalização, oferta que a maioria dos coreanos recusou de início, suspeitando que ao aceitar a cidadania chinesa iriam ser obrigados a abdicar da língua e cultura coreanas. Mas depois da Coreia ter sido anexada pelo império Japonês em 1910, a oferta de naturalização tornou-se cada vez mais apetecível; era melhor do que ser expropriado pelos japoneses ou, ainda pior, ser recrutado à força para o exército imperial.
Em 1928, representantes da comunidade coreana no Nordeste viajaram para o Sul, para a cidade de Nanjing, onde assinaram um acordo com o governo chinês destinado a facilitar o processo de naturalização.
Este acordo foi um ponto-chave na transição neste povo do estatuto de “comunidade imigrante” para o de “etnia minoritária”.



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Os josondjok já não gozam do prestígio que detinham cem anos atrás. Enquanto cortava o cabelo, conversava com a cabeleireira, uma senhora chinesa Han, nascida em Yanji:

“Então qual é a sua impressão dos josondjok?” perguntei-lhe.

“São muito diferentes dos Han e há também uma grande diferença entre homens e mulheres josondjok.”

“Ai sim?”
“Sim, em geral, os homens josondjok são um pouco inúteis; não ajudam a esposa dentro de casa, muitas vezes ganham mal o pão e têm um mau feitio.”
“Mas há alguma razão para serem assim?”
“Acho que é a cultura deles. Antes, uma família típica josondjok funcionava assim: o homem ia para fora de casa ganhar dinheiro, enquanto a mulher ficava em casa a cuidar da família.”
“Mas, isso era assim em quase todos os países…afinal de contas, a maioria das mulheres Han chinesas tinha os pés atados até ao princípio do século XX…”
“Sim, mas nós nunca tivemos o costume de os homens e as mulheres de uma família comerem em mesas separadas, em vez de todos juntos, ao mesmo tempo.”
“Ah OK, isso é de fato muito diferente, não sabia que isso era um costume dos josondjok.”
“Sim, apesar desse costume já não existir, esse passado ainda sobrevive dentro da comunidade josondjok. Apesar dos homens josondjok serem muito incompetentes em geral, as suas mulheres são o contrário: ganham dinheiro, tratam das tarefas de casa, sozinhas!”
“Calma aí, os homens são incompetentes?”
Sim, sem dúvida, muitos não sabem ganhar ou desperdiçam dinheiro em investimentos estúpidos. Há tantos casos de homens josondjok que, depois de terem espatifado dinheiro de uma maneira ou outra, são abandonados pelas suas mulheres e depois entram numa depressão enorme!
“A sério? Nunca ouvi falar disso…”
“Juro que lhe estou a dizer a verdade. No outro dia, um homen josondjok de meia idade entrou no meu salão, parecia que tinha acabado de sair da cama. Logo que ele se sentou na cadeira onde você está sentado, um pivete de cerveja entrou-me pelo nariz acima. Perguntei-lhe quantas cervejas é que ele tinha bebido nesse dia, ele respondeu-me: “30 latas, já perdi a conta.” Digo-te já que foi um dos meus piores cortes de sempre, a cabeça dele não parava quieta e a cada dois minutos levantava-se para ir à casa de banho. Felizmente, depois de acabar o corte, ele foi-se embora sem sequer olhar para o espelho, de tão bêbado que ele estava.”
“Mas então, isto é mesmo um fenómeno geral? Tem a certeza de que não é um caso isolado?”
“Não, não, estou cá há mais que dez anos e tenho sempre ouvido estas histórias. Há tantos coitados como aquele meu cliente, que isto não pode ser coincidência. Muitos até morrem aos cinquenta anos, por causa da bebida.”
“Parece que não há nada de bom num homem josondjok.”
“Sim, de fato não há nada, mesmo!” ela riu-se, “por isso é que agora, quando um homem josondjok casa com uma mulher Han, toda gente abana a cabeça dizendo “isto vai acabar mal!” Mas, ao mesmo tempo, quando uma mulher josondjok casa com um homem Han, nós Han consideramos aquele homem um sortudo! As mulheres Han, como eu, não têm pachorra para tratar nossos maridos como pequenos réis, queremos é abrir um negócio e fazê-lo crescer” ela parou para pensar no que ia dizer a seguir: “talvez seja por isso que o meu filho ainda não tem um segundo pai…”
Não estava com muita vontade para começar a falar de assuntos privados, por isso decidi que era altura de me ir embora.



Fotografar apartamentos, ir a museus, ouvir as opiniões dos Han; recolhe-se muita informação sobre este povo e a sua cultura, mas tudo indicava que precisava de encontrar um josondjok disposto a falar comigo, o mais cedo possível. Graças à minha Mãe, podia usar a língua coreana como meio para poder ganhar a confiança de alguns josondjok simpáticos e dispostos a partilhar suas histórias comigo.
Saindo para o meio da rua, comecei a vaguear pelas ruas da cidade, na esperança de que o meu instinto me trouxesse ao encontro dos coreanos de Yanji.

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[2ª parte]


Yanji, parte 2: Mas afinal é coreano ou chinês?!

May 7, 2018 by eddiesuam


[Bom dia amigos Portugueses, que belo dia em Pequim! Sentado numa varanda ao sol, preparando para vocês mais uma história, melhor que isto não há!
Na semana passada apresentei-vos Yanji, a sede da prefeitura de Yanbian, terra dos josondjok, cidadãos chineses mas que são etnicamente e, em diferentes graus, culturalmente coreanos. Peço perdão pela falta de fotografias no post desta semana; tirar fotografias a prédios e lojas é fácil, fotografar pessoas não tanto, especialmente numa cidade com poucos estrangeiros como Yanji. Mas como disse na semana passada, decidi muito cedo que precisava de falar com, pelo menos, alguns josondjok durante a minha estadia de 5 dias. Depois de cinco dias, pude trazer de volta para Pequim duas gravações de conversas que tive com dois tipos muito diferentes de josondjok. Até o dia em que voltar para a terra dos josondjok, espero que gostem destes diálogos, completamente verídicos e úteis para quem queira conhecer uma pequena parcela pouco conhecida desta grande multi-culturalidade chinesa.]

1: “Tu só tens que saber isto sobre o nosso povo: vivemos bem.”

Olhando à volta no restaurante, três senhores  josondjok  idosos chamaram a minha atenção. Apesar de terem acabado de comer há muito tempo, estavam a falar animadamente; pareciam ser o tipo de pessoas que aceitariam conversar com um estranho; pelo menos, valia a pena tentar. Levantei-me e dirigi-me calmamente à mesa deles, pensando em como me apresentar, na forma mais formal, em língua coreana: uma incógnita, dado que, até esse momento, o que pensava ser “coreano” era, na realidade, “sul-coreano.”
Aproximando-me da mesa deles, coloquei os braços e mãos ao longo do corpo, flecti as costas ligeiramente, fazendo uma vénia respeitosa aos senhores idosos, de acordo com a etiqueta coreana.
Ni Hao, peço desculpa por vos incomodar, sou um luso-coreano a estudar na –”
“– Coreia do Sul, que quer saber mais sobre como é que os coreanos de Yanbian vivem; certo?” disse um dos senhores, com um grande sorriso, como se ele estivesse habituado a esta cena. Puxando para fora a cadeira vazia ao lado dele, fez sinal com o queixo aos seus amigos, sentados do lado oposto da mesa, para me servir uma bebida. Eles não se mexeram, olhando para mim como se eu fosse um extraterrestre.
“A sério? Quer dizer, claro, agradeço muito a generosidade,” respondi, sentando-me rapidamente sem dizer aos meus hóspedes que eu era de fato um estudante de Beijing; talvez fingir que eu era de Seoul fosse uma boa ideia.
A mesa deles era relativamente pequena considerando o mar de pratos que eles tinham pedido. Alguns estavam meio-acabados, outros vazios e empilhados dentro de uma panela grande donde os senhores tinham comido um cozido de cão, uma especialidade da região. Uma dúzia de garrafas de doenjangsul –a bebida preferida dos coreanos de Yanji, um vinho feito à base de pasta de soja fermentada– decorava as bordas da mesa.

Antes que o ambiente se tornasse demasiado incómodo – os dois senhores à minha frente ainda não me tinham servido um copo – o senhor mais amigável ao meu lado levantou uma garrafa quase vazia e inclinou-a na minha direcção. Procurei em cima da mesa desarrumada, um copo vazio. Depois de uns dez segundos, encontrei um copo e, sem esquecer a etiqueta coreana, levantei-o apressadamente com a mão direita, com a esquerda a apoiar o pulso direito.
Os três senhores sorriram; parece que eles apreciavam a minha pose respeitosa, apesar de eu não entender porque é que o senhor ao meu lado continuava sem me servir um copo.
Apercebi-me porquê passados dois segundos. “Não se usa esse copo, rapaz…” suspirou o senhor amigável e os outros dois, de repente, começaram-se a rir. Não importa em que país, pegar num copo de chá para beber álcool, sem dúvida, justificava a troça!
Envergonhado, corrigi o meu erro, o mais rápido possível, corando enquanto demorava à procura dum copo limpo. De repente, o senhor à minha frente sacou dum copo por de trás da caixa de talheres. «Sacana, deves estar a gostar de ver-me fazer figura de parvo», pensei eu. Decidindo concentrar a minha energia no senhor brincalhão a meu lado, peguei no copo e levantei-o correctamente, baixando a cabeça para acentuar o respeito pela sua idade.
“Peço desculpa Senhor, talvez esteja um pouco nervoso,” disse eu, enquanto ele me servia.
Ele riu-se. “Nervoso, por quê? Nós somos todos do mesmo povo, relaaaaxa filho, não é preciso tanta cerimónia,” ele sorriu para os seus amigos, que pareciam estarem a divertir-se imensamente à minha custa.
“Então, o que é que gostavas de saber sobre nós?” perguntou ele, entregando-me uns pauzinhos. Não havia nada para comer; por isso, só mordisquei um osso.
“O meu tio, que é de Seul, disse-me que há muitos coreanos de Yanji, que vão para a Coreia do Sul para trabalhar. Porque será?”
“Bem, há muitas coisas que podemos fazer na nossa Coreia: viver, beber, trabalhar, fazer tudo como os sul-coreanos. Afinal, somos todos da mesma raça, todos do mesmo povo. Sim, somos iguais de facto…” a sua voz arrastava-se, parecia que ele estava a pesar cuidadosamente no que me devia dizer.
Percebia porquê. O meu tio também me contou que estes imigrantes josondjok são frequentemente tratados como cidadãos de segunda-classe pelos sul-coreanos, principalmente porque eles vêm para a Coreia do Sul fazer trabalhos que mais ninguém quer fazer, mas também porque a pronúncia deles é quase igual à dos norte-coreanos. Ele falou da “nossa Coreia”, deixando implícito que a etnia coreana se sobrepõe às fronteiras e diferenças culturais criadas por décadas de vivência em sociedades completamente diferentes.
“Então os senhores têm todos experiência de viverem na Coreia do Sul; certo?” eu perguntei, tentando quebrar o silêncio que se instalou.
O senhor brincalhão, agora tomando uma postura mais séria, levantou o dedo, indicando que estava pronto para falar outra vez.
“Só te digo isto, nós coreanos de Yanbian estamos bem aqui na China, até diria, melhor que os coreanos na Coreia do Sul,” declarou com confiança; “eu passei muito tempo lá a trabalhar, estes senhores nem uma vez lá foram,” continuou ele, aproveitando para responder à minha pergunta. Franzi a sobrancelha e acenei serenamente, exagerando o meu interesse para ver se ele continuaria a falar.
“Estamos todos reformados, mas a nossa pensão é a mesma que o nosso salário e mantém-se assim até morrermos. Pelo menos, não passamos a nossa velhice como tantos coitados na Coreia do Sul, nem dinheiro têm para comer porque o Estado não lhes dá nada. Neste sentido, o socialismo daqui realmente beneficia-nos muito, entendes?” os seus amigos murmuraram em sinal de acordo. Depois de mais uma ronda de doenjangsul, decidi que era altura de discutir um assunto mais delicado.
“Os josondjok que trabalham na Coreia do Sul ficam contentes por haver tantos coreanos à volta deles? Vocês aqui são uma etnia minoritária, afinal de contas…” lancei inocentemente, fingindo que não sabia nada sobre o assunto.
“Ah pois, isso não sei bem como explicar…A realidade é que eles…pensam que nós, o nosso povo…” a sua voz arrastou-se outra vez. Ele suspirou e baixou a cabeça, olhando para os pés contemplando enquanto os outros dois,  imóveis e de braços cruzados, observavam-no com concentração.
“Eles pensam que vocês não são verdadeiros coreanos? É isso?”
Ergueu a cabeça de repente. “Nós somos verdadeiros coreanos mas sabes, e não há outra maneira de dizê-lo, eles discriminam-nos! Os sul-coreanos todos pensam que nós somos aquele povo oriundo dum país sujo com excesso de população e de pobreza. Todos os josondjok na Coreia da Sul têm que lidar com este desprezo.”
“Ah…” fingi que as palavras deste senhor me tinham posto a pensar profundamente. Acariciei a pouca barba que tinha, contando cinco segundos até abrir a boca outra vez. Se eu não tivesse esta obsessão com o Oriente, de certeza que acabava nas novelas da TVI, pensei durante um momento de auto-contemplação genuína.
Cinco segundos passaram. “Então esse desprezo não tem nada a ver com o fato que haja tantos de vocês a virem para a Coreia do Sul, ao ponto de os sul-coreanos vos verem como competição?”
“Não, não, não, eles pensam que somos miseráveis, pobrezinhos!” Deu um grande gole e continuou a falar, olhos arregalados. “Mas digo-te já uma coisa, tudo isso é treta porque nós todos comprámos apartamentos, ganhamos tanto dinheiro, não somos pobres em nenhum sentido e por isso…não vejo razão…percebes o que eu te estou a dizer rapaz?” Respirou profundamente sem acabar o seu discurso, começando a massajar a testa: falar do passado parecia  cansá-lo.
Pareceu-me igualmente trágico e irónico que josondjok como estes se sentissem tão alienados nas terras dos seus antepassados. Contudo, não me surpreendia, pois lembrei-me do que a minha mãe, uma sul-coreana que vive em Portugal há quase 30 anos, me disse várias vezes: “Seul é o melhor lugar para tirar férias, o pior lugar no mundo para viver.”
Finalmente, ele ergueu a cabeça e virou-se para mim. “É assim; eu trabalhei na Coreia da Sul, conheço muitos outros que também foram para lá ganhar dinheiro. Depois do nosso regresso a Yanbian, todos nós temos meios para comprar, não arrendar, mas comprar um bom apartamento. Não há nem um de nós que não seja dono de alguma propriedade valiosa, por isso não percebo porque é que nós somos os tidos como os pobretanas!” Afirmou, num tom mais calmo, mas ainda magoado, esticando o braço para o meio da mesa, à procura duma garrafa que não estivesse vazia.
“Claro, não posso negar que nós, os josondjok, devemos muito à Coreia da Sul. Graças à Coreia do Sul, graças ao dinheiro que podemos ganhar na Coreia do Sul, gozamos todos de uma vida confortável aqui na China,” prosseguiu, atento ao fato de que eu, sendo um sul-coreano, talvez me sentisse ofendido ao ouvir a sua crítica.
Desejoso de ouvir mais sobre o que este Senhor pensava sobre o povo e a sociedade sul-coreanos, ignorei as suas tentativas de se mostrar diplomático.
“Pode-me dar um exemplo de como os sul-coreanos discriminam os josondjok?”
Ao ouvir a minha pergunta, ele pareceu hesitar, em seguida olhando para os seus dois amigos que continuavam a fitar-me de braços cruzados e expressão séria.
“Ah isso…bem, o que eu acabei de dizer, por exemplo. Nós ganhamos dinheiro, compramos apartamentos, vivemos bem, mas eles tratam-nos pior do que cães, às vezes, não nos vêem como parte da mesma raça. Para eles, nós somos estrangeiros; estrangeiros, vê lá tu!” ele abanou a cabeça, fazendo cara de enjoado. “Percebes o que eu estou a dizer?”
Apesar de ele ter evitado a minha pergunta, acenei a cabeça e não falei mais. Satisfeito por eu ter parado de fazer perguntas, sugeriu que bebêssemos mais uma rodada. Os outros dois não participaram, pareciam estar chateados comigo, talvez, aos olhos deles, eu fosse um sul-coreano xenófobo. Depois de pôr o copo vazio na mesa, eles começaram a tossir ruidosamente e a ajeitar os casacos que tinham vestidos; queriam que eu me fosse embora. Levantei-me rapidamente e fiz uma vénia a cada um, agradecendo por eles terem-me acolhido à sua mesa. No segundo em que virei costas, para regressar ao meu lugar, ouvi-os falar sussurrando, entre eles.
“Ei rapaz” chamou o Senhor simpático, em voz alta. Eu, que já tinha chegado ao lado oposto do restaurante, virei a cabeça, tal como outros clientes do restaurante, “quando voltares para a Coreia do Sul, qualquer seja o artigo ou reportagem que tu publiques, não te esqueças de lhes dizer isto: os coreanos de Yanbian vivem bem,” disse, num tom quase ameaçador. Os amigos dele acenaram com a cabeça, enquanto falava, mostrando que a mensagem também era a deles.
Fazendo vénia na sua direcção, voltei para o meu lugar e fingi estar a brincar com o meu telemóvel, esperando que os três se fossem embora. Eles pareciam relaxados e continuaram a falar sobre mim, como se eu não existisse, durante dez minutos. Estava demasiado longe para seguir-lhes o diálogo, mas ainda sentia o olhar penetrante do Senhor com os óculos de sol claros. Finalmente, eles levantaram-se, disseram à empregada que pagavam na próxima semana e assim se foram embora.
A partir do momento em que eu me apresentei como sul-coreano, eles três, josondjok, assumiram que tinha certos preconceitos em relação ao povo deles. O senhor tagarela adivinhou correctamente que eu estava em Yanbian à procura de coleccionar histórias para contar, não para fazer amizade com o povo deles. Mas, suspeito que ele se apercebeu que eu não era um jornalista sul-coreano, ou percebeu que eu tinha sido educado no Ocidente. De qualquer modo, pressionei o botão STOP do app gravador, que tinha ligado alguns segundos antes de me dirigir para a mesa deles. Feliz por ter recolhido informação valiosa sobre este povo fascinante, saí do restaurante e comecei a vaguear pelas ruas da cidade, fantasiando descobrir outras histórias para contar, aliciado pela beleza da imprevisibilidade.




2: “Nunca fui e nunca irei para Coreia da Sul, aquele lugar não me diz nada.”


“Somos coreanos sem país,” disse Park Song-Nam, um josondjok que gere uma loja de produtos japoneses, a duas portas da casa onde eu estava a dormir.

Não tinha planeado entrar nesta loja, nem começar uma conversa com ele; até eu reparar que ele estava a ver «Running Man», o reality show coreano popular na Ásia toda. Ao contrário dos primeiros josondjok com que eu conversei, não precisei de me esforçar muito com o Senhor Park; rapidamente descobri que ele não tinha receio nenhum em falar sobre assuntos delicados com um sul-coreano.

“O que é quer dizer com isso? O vosso país não é a China?” perguntei-lhe.

“Oficialmente, sem dúvida que somos chineses primeiro, coreanos em segundo lugar. Mas apesar de termos vivido aqui há mais de sete gerações, nós nunca esquecemos onde estão as nossas raízes. A Península coreana, não a China, é a verdadeira terra dos josondjok.”

Esta perspectiva era diferente da que o partido comunista apresenta no museu municipal de Yanji.
“Então vocês dão-se bem com os chineses Han? Pergunto isto porque sei quão patrióticos os chineses Han conseguem ser, talvez eles não aceitassem bem que vocês fossem coreanos primeiro, chineses em segundo lugar.”

“Sim, antes a nossa identidade era causa para alguns problemas com os Han. Há vinte anos atrás, era comum haver porrada no centro da cidade entre grupos de Han e josondjok. Tudo começava quando um Han chamava um de nós gaoli bangzi; sabes o que isso quer dizer, certo?”

Sabia. Gaoli (丽)é o nome Chinês dado ao maior reino da história da Coreia, conhecido como Goguryeo (고구료) em coreano. Entre 37 BC e 668 AD, este reino cobria quase a península coreana inteira e uma parte do nordeste da China, incluindo Yanji. Lembro-me de que o meu tio mais velho me disse que muitos dos coreanos de Yanji consideravam a cidade como sendo coreana, pois foi parte deste antigo e poderoso império. Para os chineses, tal pretensão era ridícula por isso Gaoli neste caso tem a função de satirizar esta narrativa dos josondjok. Bangzi (棒子), significando “espiga de milho”, acentua o carácter sardónico deste insulto pois é uma referência satírica ao suposto hábito que os coreanos têm de comer espiga de milho todos os dias. Não me surpreende que tal insulto enfurecesse os josondjok.
“E agora? Já não há problemas entre os dois grupos?” prossegui.

“Melhorou muito, porrada já não se vê. No entanto, às vezes há um ambiente não muito amigável ou, pelo menos, constrangido.”

“Por exemplo...”

“Por exemplo, quando um Han só nos chama chaozu (朝族), em vez de dizer o nome  completo do nosso povo, chaosienzu (鲜族). Não sei como é que os jovens josondjok reagem, mas nós da geração acima, sempre corrigimos qualquer Han que nos abrevia desta maneira. Parece trivial, eu sei, mas talvez seja uma vingança pelos Han terem criado um insulto tão engenhoso como gaoli bangzi,” riu-se ele.

“Então e os Han não se chateiam quando vocês os corrigem?”

“Na maior parte das vezes, não. Para eles não lhes faz diferença, só nós, sendo orgulhosos de quem somos, é que damos importância a tais detalhes. Nós também baixamos a guarda depois de eles corrigirem a sua fala. Afinal de contas, muitos de nós temos clientes ou parceiros Han por isso não nos ajuda nem um pouco sermos assim tão picuinhas. Na realidade, prefiro muito mais os Han do que os sul-coreanos; sim, esses é que eu realmente não suporto.”

Achei estranho, pois ao ouvir o senhor Park a declarar que a península coreana, não a China, era a terra dos josondjok, assumi que que ele teria uma opinião muito mais positiva sobre a Coreia do Sul do que os senhores do restaurante.
“Não suporta… como assim? Pensava que os josondjok gostavam muito da Coreia do Sul e dos sul-coreanos em geral.”

“Já te disse que somos coreanos sem país, mas isso não quer dizer que a Coreia do Sul é a nossa terra. O nome do nosso povo, josondjok, vem do tempo quando a Coreia era Joson; não havia Coreia do Sul, a península não estava dividida, e os japoneses ainda não tinham saqueado o país.”

“Está bem, mas a verdade é que dezenas de milhares de josondjok continuam a imigrar para a Coreia do Sul todos os anos…”

“Lá por irmos lá ganhar dinheiro não quer dizer que temos reverência ou amor pela cultura deles. Eu sou um dos poucos daqui que nunca viveu lá, mas depois de observar as mudanças nas atitudes de velhos colegas e familiares que viveram em Seul ou Busan, vi que não tinha nada que me arrepender das minhas decisões.”

“Mudanças? Quais?”

“Tornam-se iguais aos sul-coreanos: mesquinhos, excessivamente competitivos, só pensam no dinheiro. Esse tipo de mentalidade vem da grande cidade, não tem nada que ver com o espírito de comunidade que costumava existir aqui em Yanbian entre o nosso povo. Toda a gente se ajudava mutuamente, não existia a desculpa de que… “estou demasiado ocupado com o trabalho”.

“Mas, se calhar, o problema é a vida na grande cidade em vez dos sul-coreanos, em si mesmos. Eu acho que em todos os países, há sempre essa diferença que você notou entre as pessoas dentro das grandes metrópoles e as das vilas ou aldeias.”

“Sim, sim, sem dúvida, mas continuo a achar insuportável a artificialidade de muitos sul-coreanos, especialmente na maneira como agem com pessoas desconhecidas ou superiores. Quando trabalhei nos Estados Unidos, estava numa companhia de exportação que empregava gente de todo o mundo, incluindo sul-coreanos. Eles foram a única má impressão que tive durante os cinco anos que estive lá; sempre a dar graxa aos superiores, a competirem com os outros sem necessidade, parece que cada um de nós era um inimigo. Se eles estivessem na tua equipa nunca poderias contar com eles para te fazer um favor ou dar uma ajudinha extra; não, era sempre, eu faço o meu papel, tu fazes o teu, deixa-me em paz e não me chateies,” disse com uma expressão de enfado, como se ele estivesse agora a lidar com um desses colegas.

“Ouvi dizer que há sul coreanos a trabalharem e a estudar aqui em Yanji; tem alguma impressão diferente sobre eles? Estão no vosso território, afinal de contas…” disse com um sorriso, na esperança de que a minha piada o descontraísse.

Ele riu-se. “Confesso que não tenho bem a certeza. A verdade é que nós, os josondjok, quase nunca interagimos com eles e eles também não se esforçam muito. Só para veres, uma cena muito comum nos melhores restaurantes da cidade é num lado ver-se um grande grupo de sul-coreanos, todos com roupa muito chique e aqueles penteados artificialmente encaracolados, e no lado oposto um grupo de josondjok, todos com o cabelo bem curto e roupa que estava na moda na era do Mao Zedong!”

“Mas tem que haver alguma espécie de interação, e de certeza que é diferente da que vocês têm com os Han, nem que seja só por falarem a mesma língua.”

“Nos anos 90, quando a economia da Coreia da Sul ainda estava milhas à frente da chinesa, nós coreanos de Yanji olhávamos para os sul-coreanas a fazerem negócio aqui como se fossem celebridades e eles também agiam como se tal fossem. Agora, com a subida da China, as coisas já não são assim; por isso, os sul-coreanos estão sempre muito caladinhos quando vêm para aqui fazer negócio,” observou com satisfação.
“Contudo, tal como com os Han, nada é perfeito. Ás vezes, quando um grupo de sul coreanos está todo animado a tagarelar a voz alta, um de nós tem que fazer assim,” ele pressionou o indicador de lado aos lábios, gesto universal do chiu, “relembrar-lhes que eles não estão em casa deles. Se eles nos ignorarem,” outra vez surgiu aquele sorriso de matreiro, “então talvez digamos um insulto ou dois, em coreano claro, assim eles percebem.”

“Sim, sem dúvida que tem piada, mas também devo dizer que acho estranho, haver tanta animosidade entre coreanos, nem que sejam de culturas e sociedades completamente diferentes.”

“Isso não nego, mas também é preciso lembrar que o tratamento que nós recebemos, quando estamos lá, é muito pior do que a maneira como tratamos os sul-coreanos aqui em Yanji.”

“Sim eu sei, uns senhores josondjok contaram-me muitas coisas ontem sobre como os sul-coreanos desprezam os josondjok por virem de um país supostamente “atrasado” ou “incivilizado”,” observei, esperando que o Senhor Park me desse mais detalhes sobre esta discriminação.

“Agora isso é talvez a coisa mais ridícula que eu já ouvi na minha vida. Eles é que são dum país supostamente “grande”* [*uma referência ao nome formal da Coreia do Sul, daehanminguk (대한민국), Grande Republica da Coreia] mas que, na realidade, é uma farsa. Sabes, eu odeio a maneira como a televisão sul-coreana fala sobre as comunidades de imigrantes coreanos; às vezes, como se nós todos não desejemos mais nada senão voltar para a “grande” terra ancestral que tivemos de tragicamente abandonar. Pensa bem, é simplesmente patético pensar que um país com uma área tão pequena se atreva chamar a si próprio “grande” escarneceu, falando num tom muito menos animado, mas imbuído de muito mais sarcasmo que o velhinho tagarela de ontem.

Decidi que era a altura perfeita para ampliar o tema de conversa. “Mas se você olhar para dentro de muitas dessas comunidades, a importância dada à cultura coreana parece ser muitas vezes sacrificada para o bem da integração da segunda geração de imigrantes. O mesmo aplica-se aos jovens josondjok de Yanji?”

O Senhor Park suspirou, “Infelizmente sim, tem sido cada vez mais óbvio nos últimos dez anos. É tudo por causa do gaokao [exame de entrada para as universidades chinesas]. Os jovens josondjok no último ano do liceu não recebem os mesmos privilégios que as etnias em outros territórios autónomos como Xinjiang e Tibet.”

“Privilégios? Desculpe, mas ainda não conheço a China muito bem…” oito meses na China e ainda não sei nada sobre um dos obstáculos mais importantes na vida de um chinês! Que parvo que eu sou, pensei para mim próprio.

O Senhor Park não parecia se importar. “Eu explico-te. O que acontece é que já há muitos anos que o governo chinês adiciona pontos ás notas de gaokao de todos os jovens de etnias minoritárias. Há duas razões pelas quais esta regra foi criada. Primeiro, estes jovens estão quase sempre localizados em áreas pouco desenvolvidas, por isso a qualidade ou rigor da educação é muito mais baixa do que em cidades como Pequim ou Shanghai. Segundo, estes jovens estão expostos a duas culturas, por isso é normal que eles tenham um nível de mandarim abaixo de muitos dos jovens Han.”

Ah sim, o problema clássico do bi-culturalismo. Ás vezes, fazer parte de dois sistemas culturais, linguísticos e institucionais é mais um fardo do que uma benesse.

“O problema é que no nosso caso, com todas as oportunidades que temos de imigrar para a Coreia do Sul e ganhar salários relativamente altos enquanto estamos lá e o fato de vivermos no Nordeste, o coração industrial do país inteiro, o governo chinês considera que nós somos muito mais privilegiados do que as minorias em zonas pouco desenvolvidas, como o Xinjiang ou o Tibet.”

“Mas ainda subsiste o problema da língua…” observei.

“Exato, mas o governo não dá muito valor a esse fator, pois para resolver este problema basta os pais porem os filhos e filhas em escolas Han, em vez de escolas josondjok. Por isso, enquanto um jovem Uyghur recebe 20-30 pontos bónus no gaokao, dependente do seu estatuto económico, um jovem josondjok só recebe 5 pontos, no máximo. Já ouvi muitos velhotes, amigos do meu pai, a dizerem que isto não é um problema, que "as nossas crianças são inteligentes, só precisam de 4 anos de educação em chinês para bater os Han no gaokao". Sim, sempre fomos orgulhosos em ser naturalmente bilingues, mas isso não obsta o facto de que 4 anos não é tempo suficiente. Se estivéssemos todos tão seguros sobre os benefícios de ter uma educação bilingue, então não haveria tantos pais josondjok a porem os seus filhos desde a primária no sistema educacional Han. Uma frase que eu tenho ouvido muito recentemente de muitos amigos meus é: “O coreano, é para falar dentro de casa e mais nada,” terminando o seu monólogo, ele levantou-se e começou a arrumar umas estantes. 

Parecia irritado, talvez ele fosse como o outro senhor tagarela: cansava-se ao falar de tudo o que está mal.

“Mas sabes,” prosseguiu, sem tirar os olhos das estantes, “é realmente muito triste. Apesar de ter pouco respeito pelos pais que ignoram a importância do filho ou filha terem uma educação coreana, sem dúvida que estudar chinês desde muito cedo ajuda muito a criança nos estudos. Conheci alguns jovens josondjok que entraram em universidades de prestígio, como Tsinghua e Beida [as duas melhores universidades da China, ambas localizadas em Pequim], durante festas organizadas pelos pais, desejosos de exibir os filhos perante a comunidade toda. É de aplaudir a nota que eles obtiveram no gaokao mas, eu pessoalmente, não conseguia tirar da cabeça um defeito deles; falavam coreano desajeitadamente, não lhes saía naturalmente. Mas claro, ninguém quer saber disso, porque entraram nestas grandiosas instituições.”

Senti-me culpado, apesar de saber que ele não se estava a referir a mim, indirectamente: com 22 anos, sou cidadão oficial da “grande” república da Coreia, mas o meu coreano é, sem dúvida, pior do que o dos josondjok de quem o senhor Park estava a falar. Mas tanto eu como os josondjok, não crescemos num ambiente onde a língua dominante era o coreano. 
Durante os primeiros 18 anos da minha vida, que passei em Portugal, não me lembro de ter ficado consciente da importância de aprender coreano. Só dei conta disso depois de me mudar para Pequim, depois de decidir que ia fazer vida aqui no Oriente.
Estava a gostar de falar com o Senhor Park. Tinha convicções fortes e era, acima de tudo, possuidor de um espírito muito crítico. Mas, uma coisa que eu não conseguia perceber era porque é que um josondjok tão crítico da sociedade sul-coreana estava a ver um programa televisivo tão tipicamente coreano como Running Man.
“Parece gostar deste programa, sei que é muito conhecido fora da Coreia do Sul…”

Olhou para o ecrã, algo surpreendido pela mudança de tema brusca. “Sim, vejo muita televisão sul-coreana, televisão chinesa é quase só propaganda, nada com que eu me possa entreter,” observou indiferente.

“Ah, então você também deve gostar das telenovelas coreanas! Qual é sua favorita?”

O Senhor Park riu-se. “Odeio novelas sul coreanas, acho-as um pouco artificiais, você não? Toda gente está sempre a lutar, a chorar, a fazer-se lamechas, é impossível levá-los a sério!” 

Isto era hilariante. Ouvir um coreano a criticar as telenovelas sul coreanas exactamente como muitos dos meus amigos Chineses em Pequim, pôs-me a questionar se o senhor Park não seria de facto mais chinês do que ele próprio pensava.
Lembrando-me de repente dum programa televisivo sul-coreano muito popular, decidi perguntar ao senhor Park o que ele achava.
“Então Caminhando Ao Teu Encontro? É aquele programa com refugiados norte-coreanos, jornalistas sul-coreanos, e celebridades…”

“Ai, isso é que não!” O Sr. Park abanou a cabeça enojado: “esse, eu detesto ainda mais.”

Eu também não aprecio. A primeira vez que ouvi falar deste programa, achei uma boa iniciativa; dar uma plataforma nacional aos refugiados norte-coreanos para partilharem as experiências e conhecimentos do seu país misterioso com um público simpático. Mas, depois de ver alguns episódios, rapidamente me apercebi que este programa, tal como os outros, estava mais preocupado em entreter o público. Passerelas com jovens norte-coreanas a desfilar, paródias do Kim Jong Un por comediantes sul-coreanos, demasiados efeitos audiovisuais adicionados na pós-produção e, de vez em quando, uma cena comovente em que um refugiado se desfaz em lágrimas ao narrar um episódio da sua longa saga no caminho para o Sul, fazendo o público estremecer e gemer…e corta, para o último intervalo comercial antes de um grupo de dançarinos sul-coreanos de hip hop executarem uma coreografia, inspirada no passo de ganso dos soldados norte-coreanos.
Em todo o caso estava interessado em ouvir a opinião do Senhor Park, “Alguma razão para tal ódio?” Tenho que confessar que estava a tentar picá-lo subtilmente.

“O quê? Mas... estás a brincar comigo, rapaz? Aquilo não é nada mais que chachada. Fingem promover a unificação, ao meterem uma câmara à frente da cara desses refugiados, mas isso só lhes traz problemas! É como se os produtores não soubessem que todos esses refugiados são vigiados pelo seu governo e que as famílias deles estão em perigo de vida; a única coisa que se devia fazer por eles é garantir-lhes um rendimento fixo e deixá-los em paz,” respondeu.

Parecia que a minha tática tinha resultado. “Estou a ver…a propósito, há refugiados norte-coreanos que se fazem passar por Yanji?” perguntei, pensando que nessa tarde tinha passado por uns veículos militares blindados nos arredores da cidade; estavam a fazer uma inspecção à procura de refugiados coreanos.

“Viste os veículos, não foi? Eu, por acaso, não compreendo porque é eles continuam a fazer inspecções aqui, há anos que não oiço falar de um norte-coreano tão burro que tentasse fugir do seu país para estas partes, não há nenhuma forma de transporte que não necessite de identificação: logo que eles entram na China, é muito difícil de saírem.  Todos eles sabem-no bem; por isso é que tentam apanhar um barco para a Tailândia o mais cedo possível.”

“Mas, os poucos que passaram por aqui? Os josondjok ajudam-nos?”

“Claro que temos pena deles, somos do mesmo povo afinal de contas, é difícil vê-los vestidos com trapos, esfomeados, implorando que nós os ajudemos. Infelizmente, não te posso mentir: tirando dar-lhes um pouco de comida e de dinheiro, não há muito que possamos fazer por eles, a lei ainda proíbe ajudar estes refugiados; por isso, acolhê-los ou levá-los a algum lado é perigosíssimo,” soltou um suspiro, “realmente, vivemos num mundo tão complicado.”

“Sim, isso acho que ninguém nega.”

“Fumas?” ele perguntou-me, vasculhando os seus bolsos à procura dum maço de cigarros pelo que parecia.

“Só se for o Senhor a oferecer,” respondi, com um sorriso. O tabaco nunca me viciou, mas admito nunca ter tido auto-disciplina para recusar um cigarro.

“Pois eu parei há mais de meio ano, depois de encontrar esta maquineta,” finalmente parando de vasculhar nos seus bolsos, tirou um cigarro electrónico de cor azul eléctrica, parecia ser um dos caros, “vou lá fora dar umas fumaças, vem comigo, que já é tarde.”

Ao sairmos, deparei com pequenos fogueiras  ao longo do cruzamento à frente da loja. Era 4 de Abril, O Dia da Limpeza dos Túmulos, ou Qingmingjie (清明) quando mais de mil milhões de chineses Han veneram seus antepassados. Cada fogueira tinha à sua volta um ou dois adultos, de cócoras, a mexer no fogo com um ramo de árvore, e algumas crianças a correrem em busca de mais cartão fino dourado, conhecido como jinzhi (), ou papel joss, em Inglês, para queimar. Observámos o cerimonial em silêncio, respirando o ar gélido da meia-noite.

“Então que planeia fazer no futuro, Senhor Park?” perguntei-lhe, desejoso de conhecer melhor a pessoa por detrás do porta-voz dos josondjok, que ele tinha sido durante as duas horas passadas.

“Bem, os dois filhos já foram para a universidade e, por isso, responsabilidades não tenho muitas, tirando cuidar de meus pais. Espero poder imigrar com eles e a minha esposa no futuro próximo,” inalou calmamente, olhos alerta, mas imóveis. 

“A China já não lhe agrada?”

“Estou farto, para ser honesto. Não sei se reparaste, mas aqui está tudo muito fechado, tudo muito controlado. A cultura que temos aqui neste país não é aberta ao que é estrangeiro; todas as etnias, Han ou não, estão na defensiva, querem proteger ou expandir os seus interesses, em vez de criar verdadeiros compromissos com vizinhos de raízes diferentes.”

O meu cérebro reagiu em sobressalto ao processar tal declaração. Certamente, o Senhor Park estava errado neste sentido. Na Universidade de Pequim não se fala em mais nada senão na abertura da China ao estrangeiro, de quão bela é a globalização, da infusão de outras culturas trazidas pela população cada vez maior de estudantes internacionais.
Tretas, na realidade; tudo retórica política sem manifestação prática alguma. Este dono de loja, numa cidade pouco conhecida do Nordeste China, compreendia muito melor que nós, estudantes privilegiados da capital. 
A multi-culturalidade da China não é harmoniosa; é - de facto - contraditória. Só um josondjok como o Senhor Park, bem ciente de como os coreanos se maltratavam uns aos outros, podia compreender isto.

“Presumo que não tenha a Coreia do Sul como destino; certo?”

“Certo. Nunca fui e nunca irei para Coreia da Sul, aquele lugar não me diz nada.”

“Então e os Estados Unidos?”

“Vivi lá e gostei. Mas acho que gostaria de experimentar um país novo; a Europa parece ter muita escolha.”

“Olhe, se quiser venha para Portugal. Ponho-o em contacto com uma coreana que também não gosta demasiado dos sul-coreanos: a minha Mãe!” brinquei. 

O Senhor Park começou a rir-se e a tossir ao mesmo tempo, o fumo a sair-lhe em jacto pelas narinas. Aproximei-me dele e dei-lhe umas palmadas nas costas.

Depois dele se recompor, decidi que era uma boa altura para me despedir. Agradeci-lhe a sua disponibilidade e desejei-lhe o maior sucesso para seus planos de mudar-se para a Europa. Esperei até que entrasse na loja, antes de virar  costas e caminhar de volta para meu quarto.
Mas, após uns passos, ouvi a voz do Senhor Park a chamar-me.
“Suam,” virei a cabeça, vi que ele tinha voltado a sair: “tem cuidado quando estiveres a meter conversa com pessoas daqui. Nem toda gente fala como eu e nem toda gente gosta de pessoas que falam como tu,” lançou, em seguida, sorrindo amavelmente antes de reentrar na sua loja.
Fiz uma vénia de agradecimento, acenei-lhe com a mão, e voltei para o meu quarto.
Infelizmente, por mais sábio que fosse o Senhor Park, o seu aviso já me tinha saído pelo outro ouvido na manhã seguinte.
Estava à porta da Academia Socialista de Educação Musical de Yanbian, uma escola gerida por norte-coreanos enviados de Pyongyang. Sim, sabia que tinha que ter cuidado. Mas também sabia que não havia nada a temer, só estava à procura de conversa, afinal de contas.


[PARTE 3: VER AQUI ]

OUVE A MAGIA DE GRAVAÇÕES ANTIGAS...

Hoje, descobrimos duas interpretações fantásticas, resgatadas do esquecimento graças à magia do digital.

Oiçam a celebérrima Vocalise de Rachmaninov, na voz de Anna Moffo em 1964, uma interpretação inesquecível... (e já tenho ouvido outras, de grande qualidade!). 

A seguir, oiçam a interpretação de Lev Oborin da «Canção de Outono» de Tchaikovsky gravada em 1971. 
Não é possível objectivamente dizer se esta versão é melhor que todas as outras, ou não. Como o gosto é subjectivo, é sem dúvida a interpretação que eu escolho, entre todas as que conheço!





terça-feira, 15 de maio de 2018

ALERTAR PARA O PERIGO IMINENTE, SEM ALARMISMO

Como explicar as coisas aos meus leitores sem parecer alarmista? 
- O problema é real; o de uma opinião pública adormecida, que se deixa conduzir onde a elite financeira quiser, sem «tugir nem mugir»... 
- Se eu disser em público que estamos à beira de uma implosão do sistema financeiro, muito mais grave do que o colapso de 2008, muitos virarão a cara em denegação e continuarão preguiçosamente a manter-se iludidos nas suas rotinas do quotidiano. Até que...
- Para este «crash» não será possível convocar forças conjugadas dos bancos centrais, como foi o caso da última vez, pois o próprio cerne da crise reside nas políticas desses mesmos bancos centrais, nos últimos oito anos, pelo menos. 

Não irei aqui retomar os argumentos extensivamente, como tenho feito em várias páginas deste blog, ao longo dos anos. 
Basta dizer que a dívida (a dos estados, mas também das empresas e dos particulares) está a tornar-se incomportável. Por mais que os governos manipulem estatísticas, dando falsos sinais positivos, nomeadamente, duma inflação muito moderada ou baixa, ou de um mercado de emprego em recuperação, tendo reabsorvido grande parte do desemprego gerado aquando da última grande crise... a verdade vem ao de cima! É que os mercados da dívida (os bonds do tesouro EUA e outros instrumentos) são um barómetro sensível, capaz de detectar as alterações do clima económico. Isto, apesar da supressão sistemática dos juros, praticada pelos próprios bancos centrais, com a conivência dos respectivos governos (dos EUA, do Japão, da UE, e de muitos outros países ocidentais). Esta supressão consiste em comprar somas colossais de dívida, que surge no mercado, mantendo deste modo os juros historicamente baixos (a média histórica é 6-7% e eles têm estado abaixo de 3%, nas principais economias ocidentais). Isto tem resultado, até certo ponto; é fundamental para que continuem os governos a pedir emprestado a baixo juro, alimentando os défices públicos, «fazendo rolar» as dívidas próximas de serem vencidas, com novos empréstimos para cobrir os anteriores.  Assim, os EUA tornaram-se devedores de cerca de 21 triliões dólares, sendo isto uma soma astronómica e sempre crescente. Especialistas financeiros estimaram que, ao ritmo actual, a dívida americana sobe de 52 mil dólares por segundo, o que corresponde a mais do que um trabalhador da classe média americana consegue auferir de salário, num ano. 

Agora, um dirigente dum grande «hedge fund» (fundos gestores de grandes carteiras de capitais financeiros), Bill Gross, vem dizer publicamente que o nível de juros dos «bonds» do Tesouro americano se aproxima do ponto crítico, daquele ponto em que o orçamento de Estado, obtido à base dos impostos, já não poderá suportar o pagamento dos juros, sem graves perturbações. 

                          Resultado de imagem para Bill Gross 












   O resultado disto é previsível*: a utilização (o saque) da segurança social para colmatar o défice, agravamento de impostos, privatização acelerada de serviços públicos (para obter dinheiro, não para aliviar supostos «pesos» burocráticos, pois os compradores irão apenas apostar nos sectores e empresas estatais que já sejam rentáveis). 
A tais manobras, completamente insuficientes, embora geradoras de maior conflitualidade social, irá somar-se a única receita que bancos centrais e governos são capazes de levar a cabo: O aumento da impressão monetária, mais dívida para «tapar» os buracos da dívida existente! É pior que «tapar o Sol com uma peneira», é o meio de desencadear uma hiper-inflação, incontrolável, com toda a miséria e revolta que acarreta. Mas não sabem agir de outro modo, têm de continuar a ficção, dê lá por onde der, só tendo esperança de que quando a grande crise estoirar, eles possam esconder as suas responsabilidades de crimes económicos persistentes  despudorados. 
Se as principais vítimas das suas manobras não suspeitarem de nada, eles esperam conseguir manter-se no comando, «pilotando» a reestruturação do sistema monetário mundial (o famoso «reset»). 
Mas se, porventura, houver coragem da parte de pessoas cultas e bem informadas, não apenas nos negócios, como da comunicação social e de toda a sociedade civil, estes criminosos serão desmascarados e colocados - por longos anos, espero - nos «bancos que merecem», os bancos das prisões... 
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*infelizmente as economias europeias estão na mesma rota e os dirigentes dos governos e do BCE aplicarão com toda a probabilidade as mesmíssimas receitas que seus congéneres dos EUA

segunda-feira, 14 de maio de 2018

DESVENDADA A CAUSA PROVÁVEL DO DECLÍNIO MUNDIAL DE ANFÍBIOS










http://science.sciencemag.org/content/360/6389/621.full

Aqui há alguns anos, começou a constatar-se um declínio brusco e inexplicável dos batráquios (rãs, sapos, salamandras...), pondo em risco mesmo aquelas espécies dos ambientes pouco ou nada poluídos. 
Isto alimentou muita especulação de que estariam a ser vítimas de efeitos globais, como a perda de espessura  na camada do ozono, protectora da penetração dos raios ultra-violeta na alta atmosfera. Havendo uma maior penetração de raios ultra-violetas, alguns organismos - especulava-se - eram mais susceptíveis a mutações nefastas e acabavam por entrar em declínio e mesmo em extinção. 
Assim nos foi apresentada a «explicação» para o fenómeno. Não se inibiram de dar outras causas: o «aquecimento global» nomeadamente, entre outras causas, era peremptoriamente afirmado, mais para satisfazer uma agenda política (globalista) do que para defesa dos ecossistemas. 
Desde muito cedo, os biólogos e ecologistas (científicos) avaliavam os efeitos devastadores do comércio a longa distância de animais vivos, ou de plantas vivas, verificando que muitas catástrofes ecológicas tinham sido desencadeadas pela introdução das espécies em habitats completamente diferentes dos de sua origem. 
Também sabiam que as espécies introduzidas eram frequentes portadoras de parasitas (protozoários, fungos, bactérias ou vírus), capazes de exterminar populações inteiras doutras espécies aparentadas e, por vezes até, bastante distantes do ponto de vista genético. 
Algumas doenças com origem em animais selvagens são transmissíveis aos humanos, mas estas são raras, pois acabam por ser sujeitas a um controlo mais apertado.  
As doenças infecciosas globalizadas estão na raiz do declínio populacional em várias espécies, ao nível mundial, mas a sua origem permanece frequentes vezes ignorada.
Os autores de um artigo agora publicado usaram uma sequenciação de todo o genoma de um fungo (Batrachochytrium dendrobatidis), considerado o provável causador do declínio das populações de batráquios ao nível mundial. 
Conseguiram localizar a origem da pan-infecção na variedade da península coreana, BdASIA-1. Com efeito, esta exibe os marcadores genéticos de uma população ancestral, a partir da qual se disseminaram as variedades aparentadas, causando a pan-zoonose. Segundo os mesmos autores, a emergência deste fungo patogénico ocorreu no início do século XX, coincidindo com a expansão global do comércio de batráquios e tal transmissão intercontinental continua a ocorrer. 
Estas variedades de fungos, patogénicos de anfíbios, têm origem no Leste da Ásia, que é a zona onde esta espécie apresenta maior biodiversidade, sendo daí que provêm as variedades parasitas ao nível mundial.

domingo, 13 de maio de 2018

A LOUCURA DE ACUMULAR MAIS DÍVIDA PARA RESOLVER UM PROBLEMA DE DÍVIDA

Os bancos centrais do mundo Ocidental apenas sabem uma coisa: produzir dinheiro, inflacionando a quantidade em circulação das suas respectivas moedas. Não importa que o referido dinheiro não corresponda a uma expansão dos negócios, da riqueza produzida. Apenas querem que as pessoas tenham a ilusão de receber «mais» de salário ou de pensão, por forma a induzir um comportamento gastador e fazendo arrancar uma economia exausta.
Porém, o «remédio» apenas agrava a doença, não cura nada! Os índices de crescimento económico do mundo ocidental indicam que, em termos reais, ou seja, com criação verdadeira de riqueza através de bens e de serviços, esta «recuperação» desde o grande abalo de 2007/2008, apenas se pode caracterizar como um crescimento anémico.
O crescimento vigoroso deu-se apenas em sectores onde impera a especulação: o imobiliário e a bolsa. O que significa que a injecção contínua de somas astronómicas nos sistemas bancários pelos bancos centrais tem apenas perpetuado uma inflação nesses sectores, mas não em sectores chave da economia, os sectores de bens e serviços. Caso a inflação de fizesse sentir nestes últimos, isso seria acompanhado por aumento de salários e pensões, um aumento que não tem existido, antes pelo contrário. 
A economia do mundo Ocidental está em estagnação nos sectores produtivos e  em inflação nos sectores financeiros; a «estagflação» que reúne «o pior dos dois mundos».

Com o andar das coisas, o que vai acontecer inevitavelmente é um «crach», porque os juros tendem a subir: já as obrigações do Tesouro, as «treasuries» a 10 anos dos EUA atingiram um valor de 3% e muitos especialistas calculam que os aumentos da taxa de juro de referência da FED - programados para este ano - vão impulsionar os juros para níveis de 4% ou mais. 
Nesta situação, os que pediram emprestado para comprar acções perderão dinheiro. Vai deixar de existir «combustível» para sustentar a subida das bolsas. As bolsas subiram muito nestes últimos tempos devido aos «buy-backs», efectuados pelas grandes companhias cotadas em bolsa, comprando acções delas próprias, usando empréstimos a juro barato.
O estado da economia real não é famoso, mas o efeito «euforizante» das subidas das bolsas tem mascarado, até agora, o panorama verdadeiro. Quando as bolsas começarem a sofrer grandes quebras, o estado real das economias, em particular nos EUA e Europa, vai tornar-se totalmente patente, mesmo aos olhos das pessoas anestesiadas pela media, ela própria possuída pelos grandes grupos económicos. 

                                 

A possibilidade de uma hiper-inflação aumenta, à medida que o tempo passa; muitos analistas pensam que as elites globalistas estão a tentar provocar uma quebra controlada, para poderem impor a reestruturação do sistema financeiro mundial e de cada economia nacional, de acordo com os seus interesses. 
Penso que esta fase é particularmente perigosa, pois não hesitarão, como no passado, em desencadear (ou reactivar) guerras para distrair a atenção das massas. Poderão culpar o inimigo pelos males da economia, não ficando vistas - elas, as oligarquias - como as verdadeiras causadoras (e aproveitadoras) de toda esta instabilidade económica...
Ao nível individual é necessário as pessoas terem algum dinheiro em notas fora do banco (um mínimo de duas vezes as despesas mensais habituais); reforçar a dispensa com diversos tipos de mantimentos não perecíveis (legumes secos, arroz, conservas diversas) , que permitam aguentar uma fase de grande escassez por desorganização dos mercados; moedas de prata e ouro para preservar a riqueza em períodos de inflação e que permitem efectuar transacções, mesmo quando a confiança na moeda-papel desaparece por completo... 

As pessoas devem entender aquilo que tentam ocultar da sua vista, têm de perceber os jogos dos poderes globalistas. 
Os grandes bancos, grandes corporações e os seus lacaios, quer nos governos, quer em instituições internacionais (na ONU, no FMI, etc.) vão fazer tudo para que as massas fiquem convencidas que o colapso é devido às manigâncias de governos «inimigos» (Rússia, China...) e irão suprimir as mais elementares liberdades e garantias em nome da «segurança», sempre com o argumento de «preservar» o modo de vida ocidental, a democracia, etc.
Cabe às pessoas possuidoras de bom-senso e de coragem desvendar aos outros (familiares, amigos, colegas...) a realidade do que se está passando; creio ser esta a resposta prática mais eficaz; quem fica desmascarado, perde a possibilidade de prosseguir com os seus jogos perversos...eles (os globalistas) têm tido o jogo facilitado pela enorme ignorância do público.

sábado, 12 de maio de 2018

MAIO DE 68... HÁ ALGUMA COISA A COMEMORAR??

Estava eu na minha adolescência quando as imagens e palavras confusas do Maio-Junho de 68 vieram agitar a mente deste jovem burguês imberbe e afrancesado (no Lycée Français de Lisbonne), mas sem ter qualquer perspectiva do que realmente estava em jogo. Tinha esperança que uma revolução europeia varresse o continente, mas temia um endurecimento do regime fascista português, então encetando a transição «pós-cadeira partida de Salazar», ou seja, do salazarismo mais «moderado» de Caetano. Era «moderado» entre aspas, ou seja, para não embaraçar demasiado os seus verdadeiros donos: a grande banca e indústria, as grandes corporações internacionais e os governos da NATO, seus garantes e protectores. 

No plano dos princípios, nada de muito perene restou: basta ver a deriva direitista de cerca de 90% dos protagonistas de então, quer na França, quer noutros países. 
Em Portugal, os mais vocais «herdeiros» de 68 foram os chamados esquerdistas, nomeadamente marxistas-leninistas, tendo os grupos que se reivindicaram do maoismo um protagonismo particular. Porém, apesar de alguns indefectíveis dessa época, a imensa maioria tornou-se o mais reaccionária ou burguesa que se possa imaginar. Digo isto com pesar, pois muitos eram meus conhecidos; muitos, pois foram meus colegas na faculdade (entrei em 1973 em Medicina, para pouco depois me transferir para a Faculdade de Ciências, um «bastião» dos esquerdistas maoistas).

                          Resultado de imagem para gauchisme mai 68

No plano das experiências auto-gestoras das lutas, talvez haja algo a aprender, mas não dos que se auto-proclamavam «revolucionários». 
A classe operária de então, consciente da fraqueza do poder da burguesia, devido às revoltas estudantis, pôs-se em luta nas fábricas, dando origem a muitas greves-ocupação, formas revolucionárias de combate anti-capitalista e que assustaram verdadeiramente o patronato e o governo, na França e noutros países. 
Em Portugal e Espanha, houve movimentações estudantis, acompanhadas de repressão, mas a classe operária de Portugal continuou largamente ignorante de tudo, salvo a que participou directamente nas grandes greves em França, nos meses de Maio-Junho. É dessas pessoas humildes que porventura estiveram envolvidas nos acontecimentos do Maio revolucionário, que valeria a pena ouvir os relatos... Muitos portugueses emigrantes dessa altura, estarão vivos, com cerca de setenta e tal anos...

O Maio de 68 não foi uma revolução, foi uma «válvula de escape», aproveitada pelas forças operárias (verdadeiras, as organizadas nos sindicatos). 
Foi também um grande susto para a burguesia e para os seus suportes políticos/ideológicos, que souberam no imediato  e na época seguinte, disfarçar-se de «revolucionários» para fazerem passar a sociedade de consumo de massas, o hedonismo, o egoísmo, como a «realização» das aspirações revolucionárias do Maio de 68: assim, de uma penada, desviavam e anestesiavam jovens ingénuos e desejosos de um caminho revolucionário «criativo», enquanto impunham discretamente na sociedade contemporânea a sua hegemonia ideológica, a sua ditadura «soft» (sempre convertível em «hard», quando as circunstâncias exigiam). 

Pode-se dizer que o Maio-Junho de 68 foi uma revolução que ficou a meio... porém, todas as revoluções que ficam a meio... regridem: ou são completamente derrotadas e afogadas no sangue ou, muitas vezes, os regimes supostamente herdeiros do movimento revolucionário tornam-se mais opressores do que o regime pré-revolucionário... 

sexta-feira, 11 de maio de 2018

AI, QUEM ME DERA...

(Vinicius de Moraes/ Toquinho)  cantado por CLARA NUNES

 

Ai, quem me dera terminasse a espera

Retornasse o canto simples e sem fim
E ouvindo o canto se chorasse tanto
Que do mundo o pranto se estancasse enfim

Ai, quem me dera ver morrer a fera      

Ver nascer o anjo, ver brotar a flor
Ai, quem me dera uma manhã feliz
Ai, quem me dera uma estação de amor


Ah, se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem casais


Ai, quem me dera ao som de madrigais
Ver todo mundo para sempre afim
E a liberdade nunca ser demais
E não haver mais solidão ruim


Ai, quem me dera ouvir o nunca-mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E, finda a espera, ouvir na primavera
Alguém chamar por mim

Uma das mais belas poesias/canções da autoria de Vinicius de Moraes, com música de Toquinho.

A aparente espontaneidade da letra, evolui rapidamente para um registo onírico e utópico, muito ao jeito de toda a geração de sessenta, a geração do amor e da revolução. 
Mas a beleza lírica do comentário da flauta envolve a melodia simples numa aura de encantamento. 
Para mim, isto é musica clássica / popular brasileira. 
O lirismo e a energia interior da voz de Clara Nunes, são o modo adequado, e o bom gosto, de cantar este trecho. A alma não se diz, nem se escreve; emana como uma melodia, como uma voz quente e vibrante de quem sente o que está cantando.