From Comment section in https://www.moonofalabama.org/2024/03/deterrence-by-savagery.html#more

The savagery is a losing card. By playing it the US and the West are undercutting every ideological, normative and institutional modality of legitimacy and influence. It is a sign that they couldn't even win militarily, as Hamas, Ansarallah and Hezbollah have won by surviving and waging strategies of denial and guerilla warfare. Israeli objectives have not been realized, and the US looks more isolated and extreme than ever. It won't be forgotten and there are now alternatives.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

CRÓNICA SINO-COREANA - PARTE III (EDUARDO BAPTISTA)

     
Na semana passada, explor​á​mos questões​ relativas ao​ povo Joseonjok de Yanji, com foco especial na relação que eles têm com a Coreia do Sul e com a China. Esta semana, desviamos o nosso olhar das duas grandes etnias da cidade de Yanji, coreana e ​h​an, para podermos concentrar-nos numa comunidade de imigrantes muito especial: os norte-coreanos de Yanji. Sim, para quem não saiba, há muitos norte-coreanos, vivendo tranquilamente fora das fronteiras do regime totalitário.

                            

Pessoalmente, acho irónico que só depois dos 20 anos é que tenha começado a aperceber-me como a Coreia do Norte é incorrectamente caracterizada por muita da média ​a​mericana, o que naturalmente influencia a média ​p​ortuguesa.
Antes, eu também fazia parte da distribuição de informação falsa ou exagerada sobre este regime. Ansioso ​por​ impressionar compatriotas portugueses, que nunca tinham conhecido um luso-coreano, muitas conversas decorriam desta maneira:
"Ah, não és chinês? Então esses olhos em bico vêm donde?" pergunta um bacano qualquer à frente do Bar 148, fornecedor das cervejas de meio-litro mais baratas do Bairro Alto. O tom dele é simpático, revela ignorância e ingenuidade, mas não tem conotação racista.
"É porque a minha mãe é coreana..."
"Do norte ou do sul?" responde ele com um sorriso malandro.
Eu respondo-lhe com outro sorriso, ainda maior. Tendo ouvido esta pergunta tantas vezes, a minha resposta já estava bem ensaiada; era uma que dava para puxar mais conversa.
"Mas estás maluco ou quê? Os do norte não podem sair do país, nem para viajar, quanto mais para emigrar."
"A sério? Mas então o que é que acontece se um deles tentar sair dali?" pergunta o meu ouvinte de boca aberta.
"Quase de certeza, vai ser apanhado, arrastado de volta para a Coreia do Norte, torturado e finalmente fuzilado. Ás vezes a sua família recebe o mesmo castigo!"
"É pá, isso nem a PIDE faria!"
E assim ​prosseguia​ a conversa, uma exageração após outra, até eu finalmente ​decidir alcançar os meus amigos que, entretanto se tinham distanciado,​ fartos da minha ​tagarelice​.
Proceder por generalizações, a torto e a direito,​ é marca da estupidez, enquanto a nuance é indício de maturidade e reflexão​. ​Espero ​afastar-me da primeira e aproximar-me da segunda​; ​espero que a história verídica de hoje vos motive​ a pesquisar mais acerca da Coreia da Norte, ​a ​questionar as narrativas da televisão … até mesmo​ a passar uma semana em Pyongyang. Tendo eu​ feito esta mesma viagem, garanto-vos que ela é perfeitamente segura, o passaporte português é visto lá com bons olhos.
                 

Em Yanji, o Hotel Ryugyong (류경호텔​   ​/ 柳京) não se esconde num qualquer beco. Não há nenhuma palavra-passe para entrar, ​ ​nem se vêm guardas armados​. Parece ​orgulhoso da sua identidade norte-coreana. ​ "Pyongyang" (평양/平) encontra-se​ em letras​ perfeitamente ​visíveis​ no letreiro.
Ao aproximar-me da porta giratória do hotel vejo, através do vidro, uma moça jovem a sorrir-me. Contente com esta recepção inicial, entro pela porta. A minha amigável anfitriã​, vestida de trajes tradicionais (​hanbok), cumprimenta-me​ em coreano e ​conduz-me​ para o segundo andar, onde se encontra o restaurante. A clientela parece ser composta quase inteiramente por norte-coreanos, nota-se apenas ​um casal chinês, uns turistas ​como eu.
A moça transfere-me para uma camareira alta, de olhar frio, que​ me​ ​conduz a uma mesa, rodeada por mesas onde estão instalados clientes norte-coreanos. Pergunto-lhe em coreano que especialidades me recomenda. Sem parecer preocupada, ou surpreendida com a minha pronúncia sul-coreana, responde-me: «massa de Pyongyang, tortilha​ coreana, carne de pato grelhada». Decidi-me pela opção mais barata e enquanto esperava, fui ouvindo os diálogos à minha volta, na minha língua materna: … Negócios com chineses e com josondjok, queixas sobre colegas, viagens de regresso a Pyongyang.
Estes norte-coreanos de Yanji parecem ter desprezo pelos​ chineses e falta de confiança no povo que partilha a mesma língua. Recordo ter ouvido uma conversa, aproximadamente assim​:
'Então, já fechaste o negócio com aquela companhia de Tumen (uma cidade que faz fronteira com a Coreia do Norte, a 50km de Yanji)?’ perguntou uma voz rouca, algo enfadada.
'Não sei o que está a acontecer, irmão, mas aqueles ​djosonjok ​[nome dado aos cidadãos chineses de etnia coreana] estão a demorar anos a finalizar o contrato...' respondeu de forma educada​ a​ outra voz, mais nervosa.
'É difícil confiar nessa gente...dizem que são coreanos, mas a verdade é que pensam como Han zu [a etnia ​maioritária​, constituindo 90% da população chinesa]; são matreiros, não penses por um segundo que eles ​nos veem​ como irmãos, ou ​o quer que seja​. Se eles não soubessem falar chinês, garanto-te que me mantinha bem afastado deles,' disse o mais idoso.
'Sim, precisamos deles mais do que eles precisam de nós. O que dava jeito era ter uma dessas tradutoras treinadas em Pyongyang para nos acompanhar nos negócios, estas miúdas daqui não aprendem nada, passam o dia inteiro a falar coreano e a servir pessoas como nós, o chinês que elas falam só dá para descrever os pratos e contar números,' desabafou o mais jovem.
'Nem sonhes com isso, as tradutoras são valiosas demais, o país precisa delas para o turismo, ou para ajudar na comunicação do partido com estrangeiros, Pyongyang não as iria desperdiç​ar em negócios pequenos, como o nosso;' o mais velho acendeu um cigarro, dando grandes bafos que passavam ​por cima das nossas cabeças​. ​Continuei de ​costas viradas, a ouvir, ocasionalmente ​fingindo ​que estava a falar ​em chinês​ ao telefone, para eles não suspeitarem ​de mim​.
'Se as cantoras lá de baixo pudessem passar uns anos a estudar chinês, talvez nem fosse preciso pedir ajuda a Pyongyang...' sugeriu o mais novo.
'Não sejas parvo! Achas que eles nos deixariam fazer isso? Essas raparigas são filhas de gente poderosa do partido,​ entendes? Achas que um general ou um ministro iria deixar a sua filha subordinar-se a um negociante? Nunca na vida!' ​exclamou​ o mais idoso, ​numa​ voz claramente ​enfadada​.
'Sim; mas, se calhar, até lhes fazia bem aprender chinês, pode ser útil no futuro, quem sabe...'
'Cala-te e não fales de gente que nos pode trazer problemas.' disse o mais idoso friamente, parando de falar durante alguns segundos, enquanto uma empregada de mesa passava por eles.
Acabada a refeição​ fiquei a pensar​: quem serão estas cantoras? Chamo a empregada, que me informa que todas as noites há um concerto, depois do jantar, ​em que atua​ um grupo de jovens muito belas, cheias de talento.
Pago a conta e desço, encontrando a moça do sorriso esplendoroso, que me leva até uma sala grande. Num palco iluminado por luzes holográficas fluorescentes, ​encontram-se quatro ​mulheres, das mais belas ​que já alguma vez vi.
Parecem ter saído de um conto de fadas; as suas saias são compridas, largas nas ancas, em tecido reluzente​ diferindo entre elas apenas na cor dos vestidos e nos instrumentos que cada uma toca. A de verde esmeralda empunha uma guitarra eléctrica, a de azul um saxofone, a de amarelo claro uma flauta, e a de cor-de-rosa um baixo eléctrico. As suas faces, perfeitamente maquilhadas, emitem um brilho pálido; suas expressões serenas ​dão uma certa solenidade à ocasião, como se isto não fosse meramente uma rotina diária, para ajudar à digestão do jantar de uns quantos turistas.
Pouso a minha mala no chão, com intenção​ de tirar a minha máquina fotográfica, mas reparo num cartaz ao lado do palco, onde está escrito em caracteres grandes: "Proibido tirar fotografias." Limito-me a aguardar o espectáculo sentado a uma das mesas vazias. No outro lado da sala, um grupo de turistas chineses ​parece estar entusiasmado​ com a actuação que se aproxima.
De repente, as luzes da sala escurecem e o quarteto dá um passo em frente. Uma faz o sinal de «O.K.» e a música de fundo começa a tocar.
A música não é nada parecida com a que se ouve nos canais de rádio do Ocidente. Os temas são clássicos e conservadores; as letras falam de paixão inocente entre dois amantes, de nostalgia pela terra natal, e de tristeza ​pelos pais envelhecerem​.
O fado português também se baseia nalguns destes temas, mas leva o sentimento de angústia até ao extremo, o que não é compatível com a placidez desta música. O descontrolo, que em doses​ pequenas, confere calor humano à música, é alheio totalmente aos valores éticos impostos pelo governo norte-coreano, ​​contrário​ a qualquer tipo de experimentalismo ou de libertação ​individual. Os versos falam sobre paixão sem introspecção, de tristeza sem que se considere jamais a autodestruição, ou duma nostalgia sem o pessimismo que a torna verosímil.​ Apesar de Yanji estar longe dos centros urbanos de Pequim e de Xangai, senti que estava a observar algo muito comercializado, ​como um anúncio muito bem produzido, mas que só consegue​​ aliciar os olhos do espectador, não o coração.


Todas elas possuem vozes de soprano, capazes de reproduzir o timbre de cantora de ópera. Mas não há ​teatralidade​ nesta atuação; elas não se deixam levar pelas emoções, mantendo sempre a mesma expressão serena e a coreografia sincronizada, um joelho alternando com o outro, a dobrar ligeiramente para dentro, de acordo com o ritmo da música. No fim de cada canção, elas trocam de posição no palco e de instrumento, mostrando-se​ capazes de executar peças ​com​ elevado grau de dificuldade.
Há uma perfeição mecânica na sua rotina bem oleada, ​de tal maneira que, ​de cada vez que um turista​ com ​um bouquet de flores sobe para o palco, obrigando uma delas a forçar um sorriso​ e a​ pegar no fardo perfumado e ​colocá-lo delicadamente num canto qualquer, o resto do grupo ajusta-se automaticamente, ou​ cantando​ mais alto para compensar, ou deixando a música de fundo tocar mais alguns segundos até​ ao​ próximo compasso, recomeçando então ao mesmo tempo, ​sem um piscar de olhos​ que seja. 
Entediado, olho para trás. Três empregadas de mesa, incluindo a moça do sorriso esplendoroso, estão sentadas numa mesa ao fundo, ocupadas a compor flores em bouquets para venda aos turistas. Ao lado delas, de pé, está o patrão do restaurante; um norte-coreano de calças pretas e camisa formal cinzenta, com os botões apertados até ao pescoço. Apesar dum corpo magro, a cara dele é larga e um pouco espalmada, algo realçado pelo seu corte de cabelo, rapado nos lados, com um bloco rectangular no topo. Observa a actuação de braços cruzados e sobrancelhas franzidas, um olhar de avaliador, em vez de apreciador.
Tendo decidido​ que tinha visto o suficiente, levanto-me e caminho em direcção à saída. O patrão vai ao meu encontro, substituindo o seu ar sério por um sorriso artificial de vendedor. Este matreiro, não sabendo falar chinês, só diz "​xie xie" ​mil vezes, ao mesmo tempo que gesticula com os dedos apontando as flores. Aceno ​com a​ mão (gesto que significa "não", em muitos países orientais) e faço cara de cansado, e ele afasta-se, retomando​ a sua pose de​ inspector.
Antes que eu ​chegue​ ás portas giratórias da saída do hotel, a moça de sorriso esplendoroso de repente aparece-me à frente. Parece estar preocupada com a minha saída.
"O patrão diz que parece não ter gostado do concerto; porqu​ê?" pergunta com exagerada curiosidade. Decido ser diplomático.
"Mas eu nunca disse isso! Adorei, achei as cantoras tão bonitas, cantam muito bem também," respondi, com um sorriso artificial, como o do patrão.
"Então porque é que não comprou flores?" perguntou ela num tom magoado, que parecia ser genuíno.
"Mulheres como aquelas quatro senhoras merecem que lhes ofereçam carros, não flores. Se eu não fosse apenas um pobre estudante estrangeiro, de certeza que lhes comprava um," respondi, na esperança que isto fosse ​dar uma conclusão à conversa.
A moça franziu a sobrancelha; não parece ter percebido o meu sentido do humor, mas aproveitei-me do seu estado de confusão para finalmente sair do hotel Ryugyoung.
Atravessei a rua, chamei um táxi usando a aplicação Didi e, ao fim de 2 minutos, um Audi A4 apareceu-me​ ​à​ frente. De dentro do carro, olhei uma última vez para as portas giratórias. A moça ainda lá estava, seguindo-me com os olhos, mas sem o sorriso esplendoroso ou a expressão amistosa, antes um olhar de desconfiança.
Reflectindo no que tinha feito, rapidamente tornou-se tudo muito óbvio​: o Hotel Ryugyong é um dos muitos estabelecimentos norte-coreanos na China vocacionados para gerar ​o maior lucro possível, para benefício do regime de Pyongyang​, que tem estado a sofrer por causa das sanções impostas pelo Ocidente. 



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