terça-feira, 23 de maio de 2017

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS - 2

[* poema extraído do livro Exercícios Espirituais, 1985, Edições MIC (Estoril)]


AS HORAS DE ARLEQUIM


Desenlacei o olhar
Da página branca
Da aurora multicolor…
Debrucei-me sobre o raio
De luz que sai de uma telha
Partida, colocada neste lugar
Não se sabe por quem, nem para quê…
Afaguei o pelo quente do meu gato
Dizendo segredos em voz alta
Mas que ninguém pode perceber
Pois partilham a sua nudez
Com os muros leprosos
Batidos pelo sol e os ventos…
Repovoei a mesa de carvões,
De sementes, de tampas de canetas,
De espátulas misteriosas, de conchas,
De cachimbos, de caixas sonoras,
E fui mordiscar uma maçã
Frente às gelosias, com poeira d’oiro
Nas pestanas…
Embati de novo contra a lâmpada
Vermelha das noites estonteadas
Pelo zumbido dos insectos…
Decifrei - a custo – uma inscrição
Gótica nos veios da madeira
Da cómoda, mas sem saber ao certo,
Se a deva tomar como um testemunho
Da progressão do caruncho,
Ou se apenas, como mais uma maliciosa
Partida do meu punhal malaio…
Finquei os dedos no dossel
Do cadeirão, apertando-o
Até ele sussurrar o nome
De São Cristóvão
Isto a propósito do debate
Metafísico
Entre os ramos das árvores
E os pardais, evidentemente…
Sorvi uns decilitros de chá verde
Com a convicção própria de quem
Mergulha num poço onde
Se reflecte o luar…

E deixei-me cair no divã
Exausto por mais esta galopada
Imóvel pelos descampados
Das alcatifas,
Por estes telhados loucos
Como teclados de órgãos
Tangidos por algum frade
Possesso do demónio…






segunda-feira, 22 de maio de 2017

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS - 1



[* Poema extraído do volume publicado em 1985 pelas Edições MIC (Estoril)]

A Sabedoria da Aranha*



Os que se movem sobre arames tensos
Em praças inundadas de povo
Ao rufar dos tambores locazes;
Os que praticam o ritual´
Do fogo nas crateras dos vulcões;
Os que sabem extrair profecias
Das pirâmides de algarismos;
Os que cruzam os mares
Boreais em veleiros de madre-pérola;
Os que se vestem de vento e de espuma
Nas dunas incertas da memória;
Os que se despedem todas as manhãs
Da claridade diurna, mergulhando
Nos labirintos de quartzo e feldspato;
Os que escutam imóveis as harmonias
Das esferas;
Os que recobrem suas faces com
As máscaras articuladas dos espíritos
Da selva;
Os que se transmutam dentro dos cadinhos
De porcelana dos corpos virginais;
Os que imitam o piar das aves nocturnas
Para desorientar os caçadores;
Os que devolvem as sementes à terra
Com gestos de sacerdotes;
Os que domesticam a sua própria
Sombra nas paredes anémicas dos asilos;
Os que tocam sempre o mesmo realejo
Debaixo das mesmas árvores, das mesmas
Ruas, dos mesmos bairros, das mesmas
Cidades;
Os que inventam festins e palácios e
Jardins e bailes sumptuosos sentados à mesa
De uma taberna sombria;
Os que lavam a roupa na água
Turbulenta dos riachos da serra;
Os que sopram as candeias depois
De todos se terem recolhido a seus quartos;
Os que moem o trigo;
Os que amassam o pão;
Os que o cozem em fornos de lenha;
Os que o movem sem um prévio ritual
De gestos rápidos, olhares furtivos e lábios mecânicos;
Os que desenham um sorriso
Quando se cruzam com namorados
Num jardim;
Os que não contabilizam as boas acções
Numa agenda ensebada;
Os que assobiam canções enquanto esperam
pelo eléctrico;
Os que tomam «actínia» pelo nome
De uma flor exótica;
Os que sonham de olhos abertos;
Os que roubam frutos nos pomares;
Os que riem com os olhos;
Esses,
Esses compreendem que quero dizer
Quando afirmo
Que…
«A poesia deve ser feita por todos.
Não por um» (Lautréamont)





domingo, 21 de maio de 2017

CRÍTICA DA MEDIA DE MASSAS - ANÁLISE DE «VALEURS ACTUELLES»


Embora centrado nesta revista com difusão (quase) só em França, tem interesse pois os processos são aplicados pela imprensa equivalente em todos os países.



quinta-feira, 18 de maio de 2017

BENNY GOODMAN E O SWING DOS ANOS TRINTA


 (clicar nas legendas para explicações sobre estas canções)

                                          

                                                Smoke Gets in your eyes



                                                          KING PORTER STOMP 


                                                      THIS FOOLISH THINGS



                                                 

                                                             St. Louis Blues



                                      Why Don't You Do Right

quarta-feira, 17 de maio de 2017

EPIGENÉTICA - O NOVO PARADIGMA

Pergunto-me algumas vezes por que motivo alguém precisa de uma narrativa que a «desculpabilize» pelos seus fracassos pessoais. Já deve ter acontecido consigo que alguém lhe venha alegar traumas de infância ou relacionamentos infelizes na vida adulta, para «justificar» as suas falhas, a sua incapacidade em enfrentar as dificuldades da vida. 
De facto, muitas pessoas gostam de ser «assistidas», como se se tratasse de pessoas padecendo de doença, que precisavam de cuidados de saúde.  
Poucas pessoas assumem a sua própria «governança» e se auto-programam no sentido de serem aquilo que querem ser. 

Deparei-me com um vídeo, que coloca muitas perguntas, além de que vai buscar elementos de compreensão a um ramo da ciência biológica que eu tenho particularmente acompanhado, ao nível de artigos de divulgação. Como biólogo, tive o privilégio de trabalhar em estágio num laboratório dedicado, nos anos 80 do século passado, à expressão dos genes. Hoje em dia, os trabalhos dessa época seriam classificados como «epigenética». Simplesmente, o vocábulo não tinha ainda sido inventado ou não lhe era dado o significado que é dado hoje.

Acredito que existe algo de muito fundamental no «apoderamento» (empowerment) que faz com que o nosso Eu sub-consciente se encarregue de muitos dos comportamentos, visíveis ou não. A atitude interior, por oposição ao «teatro social» é aquilo que impulsiona as pessoas, não pela decisão do seu Eu racional, mas impulsionadas por várias forças. 

O Dr. Lipton tem razão - com certeza - ao apontar os programas comportamentais que estão «engramados» no nosso cérebro, que foram adquiridos entre os 0 e 7 anos. É um reportório de base, que todas as crianças adquirem num estado de recetividade extraordinária, semelhante à hipnose. Os muito pequeninos fazem por instinto, aprendem por instinto, tudo neles é instinto... são «bolinhas de afecto». 
Por isso, não me custa aceitar que estejamos todos programados socialmente, a um nível profundo, pela vivência na tenra infância. Também concordo com o entrevistado em relação ao papel dos genes como «plantas do edifício» (blue prints) ou seja, algo que contém as informações para construir edifícios ou pequenas máquinas maravilhosas (as proteínas) as quais serão ativas, a vários níveis, nas células e no corpo. 
Mas os genes não são ativos ou inativos: aqui reside o cerne da viragem de um paradigma para outro, ou seja... o sistema é que «decide» transformar essa potencialidade, o gene, em algo que irá ter expressão no corpo. Assim, nós já não estamos sujeitos à fatalidade do gene, o gene que «determina» uma doença ou uma característica não é - por si só - determinante de coisa nenhuma. 

Isto era sabido, evidentemente, desde o início da genética, nas primeiras décadas do século XX (como descrevo no livro «Génese e Genes»). Porém, a formulação «popular» acabou por tomar conta da forma de pensar dos médicos e cientistas e estes acabaram por raciocinar - e portanto também por agir - «como se» fossem os genes os protagonistas.

A possibilidade de um indivíduo moldar muito do seu ambiente próximo, aproveitando-o bem ou menos bem, traz como consequência que somos largamente responsáveis pela nossa saúde, pelo nosso estado, por tudo o que nos acontece. 
A predisposição para uma determinada afeção pode existir pelo hábito, pela atitude relativa ao complexo de variáveis ambientais que nos influenciam ou não. 
Por exemplo, se tivermos um comportamento responsável em relação ao nosso corpo, comendo comida saudável, equilibrada, fazendo exercício físico adequado à nossa pessoa e às circunstâncias em que nos encontramos... a probabilidade de cairmos doentes, mesmo de doenças transmitidas por agentes biológicos (vírus e bactérias...) diminui enormemente, em relação à média da sociedade. 
Isto deve-se ao facto de que - na sua grande maioria - os comportamentos dominantes e com interferência no estado de saúde geral são largamente negativos, irracionais, pulsionais... 

Também acredito que uma mudança de paradigma tenha implicações no modo como nos relacionamos socialmente; um grande empenho coletivo em realizar determinado objetivo, por estranho que pareça, é mais importante que a justeza teórica, racional, do mesmo. 
Infelizmente, quem nos manipula usa isso para o pior. Os demagogos servem-se das multidões, do desejo inconsciente de homens e mulheres, em serem tratadas como crianças e conduzidas a «acreditar» em algo, com toda a força, assim como as crianças o fazem em relação aos seus pais. 
Note-se que - na criança - isto é lógico e biológico: ela não tem dúvidas de que os seus progenitores querem o seu bem, o que - em geral - é o caso. Por isso, faz todo o sentido para a sua própria defesa, para a sua sobrevivência. 
Todas as pessoas têm um lado de criança, todas têm nostalgia de quando eram cuidadas pela mãe e se alimentavam tanto do seu amor, como do leite materno.

As proibições e os medos no indivíduo adulto são oriundos dum «superego» que lhes é incutido desde pequeno, com programas comportamentais altamente supressores da criatividade, da liberdade e da autonomia individual. 
Mas o que é importante para a sociedade em geral é justamente a capacidade dos indivíduos acrescentarem algo de original, de serem criativos. 
Para que prevaleça realmente este objetivo na educação, a sociedade deverá ser mais baseada na entre-ajuda e na fraternidade, como uma grande família (uma visão comunista autêntica, que nada tem que ver com o bolchevismo). 
No entanto, ela tem os seus gérmenes agora, pois as crianças são propensas a comportamentos de partilha e de entreajuda, de compaixão, de empatia, também em relação a animais, não apenas aos seus colegas... 
O que se chama agora de educação não é mais do que um amestrar, que coloca vendas nos olhos das crianças e adolescentes, fazendo deles dóceis e condicionáveis, para serem «bons» trabalhadores nesta sociedade em que 99% tem de obedecer a um ou vários patrões... 
Dentro desta sociedade, a criatividade não interessa; apenas a submissão é premiada, apontada como modelo: a reprodução de ideias erradas, mas que servem os propósitos das «elites», são constantemente papagueadas, nas escolas e nos media. 

Neste contexto, sair da «matrix» pode custar esforço e coragem, pois implica um risco real. No mínimo, implica uma certa solidão ou isolamento, devido à incompreensão no meio circundante... e nós sabemos que precisamos uns dos outros, que não podemos viver, senão em sociedade.

A possibilidade de vivermos de acordo com os nossos sonhos profundos existe, no entanto.
Todas as coisas que queremos realmente, nas nossas vidas acabam por realizar-se, mas não do modo como fantasiámos que iriam acontecer. 
Eu verifico isso aos 62 anos, na minha vida pessoal: tudo o que desejei profundamente realizou-se; tudo o que eu próprio sou agora, teve sua génese na minha própria existência, numa vivência que foi largamente influenciada pelo meio em que mergulhei, em várias circunstâncias e pela minha resposta, em cada caso, a esses desafios. 
Por outras palavras, construí-me a mim próprio. Isto não tem nada de extraordinário; é realmente comum a todos. 

Ao fim e ao cabo, o fator principal é a nossa intenção deliberada, aquilo que é nosso profundo desejo de realização. Este é um fator muito mais potente do que imaginamos. 
A determinação dos genes é muito relativa. Como biólogo geneticista eu sei isto de longa data e tenho surpreendido pessoas leigas nesta ciência ao lhes dizer isso mesmo...