Restava somente um, de toda
aquela casa, outrora ilustre. Tinha forçosamente que fazer a «guarda do castelo»,
não havia mais ninguém, todos tinham morrido ou fugido. O tempo era de
incertezas; roubava-se, aprisionava-se, mutilava-se, matava-se … a gente boa
estava fugida. Os bandidos reinavam. Impunham a sua barbárie. Tinham prazer em
submeter e humilhar.
Não te irei esconder que
passei as horas mais angustiadas de minha vida, nessa época terrível.
Mas o meu medo foi-se
transformando em força. Fui aprendendo a dominá-lo. Fazia pequenas sortidas
para me abastecer por perto, onde houvesse alimento. Trocava comida por tudo o
que pudesse despertar a cobiça dos comerciantes. Já não circulava dinheiro:
apenas se trocavam objetos ou serviços.
Era um tempo muito duro de
escassez generalizada, exceto para alguns. Estes tinham tudo, em resultado do
saque e da extorsão permanente. O obscurantismo de há mil anos voltara e
instalara-se. O medo fazia o resto. Tinha de me manter sempre vigilante, dia e
noite; era uma autêntica tortura. Só podia dormitar uns minutos por dia, sempre
com a arma ao alcance da mão. Agitavam-se vultos durante a noite, mesmo por
debaixo das janelas.
Eu ouvia os sons que os homens
desesperados faziam, a meio da noite, quando entravam furtivamente no jardim.
Eram pobres diabos, exaustos, que apenas bebiam um pouco de água de uma fonte e
dormiam umas poucas horas sobre a terra debaixo de um arbusto. De início, tive
medo deles, depois compreendi que eu lhes metia respeito a eles também, pois as
luzes do interior, filtradas através das gelosias fechadas eram indício seguro
de que havia habitantes dentro.
A verdade é que a presença
noturna dos fugitivos era protetora contra verdadeiros ladrões e assaltantes.
Somente tinha de me manter vigilante para que não fosse surpreendido por um
bando organizado de malfeitores armados.
Esta situação manteve-se
durante algumas semanas. Depois, apesar da catástrofe, a vida foi retomando os
seus direitos. Conseguia ver isso pelo ar menos contraído das pessoas, o seu
olhar nem sempre era de medo ou inquietação, às vezes esboçavam um
sorriso.
Os animais selvagens também se
acolhiam ao jardim. Escolhiam sempre as horas de maior calmaria. Onde estivesse
um melro, um ouriço-cacheiro, uma serpente… era terreno (provisoriamente)
seguro. Eles escolhiam locais pacíficos como refúgio.
Por vezes avistava-se um
falcão peregrino, poisado sobre um poste de iluminação, de onde observava o
entorno.
Os gatos selvagens gostavam de
vir furtivamente beber água no tanque das traseiras. Marcavam o território enterrando,
em determinados pontos do jardim, seus excrementos. Ao fazerem isso, estavam a
dar-me uma ajuda, pois os ratos cheiravam à distância a presença dos felinos e
não se aventuravam pelos canteiros da minha horta improvisada.
O
mais difícil era manter o equilíbrio perante a situação de incerteza
permanente, que obrigava a estar sempre alerta. Mas aprendi a afugentar o medo
e a olhar para uma situação aparentemente desesperada com uma certa serenidade.
As visões que perpassavam pela minha mente, os
sonhos acordados dessa época, eram - evidentemente - projeções da minha mente
perturbada, mas não insana.
Deixou repousar em
cima do peito o livro que estava a ler; fechou os olhos. Sentia um agradável
torpor, embalado pela música de J. S. Bach
Neste estado, as
imagens que lhe apareciam diante do espírito e sobretudo os sentimentos no seu
peito, o transportavam para o êxtase:
Uma luz difusa
fazia rebrilhar miríades de partículas de poeira doirada. Uma pulsação rítmica
movimentava o tronco do sonhador, era o movimento do cavalo dócil, que se
transmitia ao cavaleiro. Um jovem, no meio de uma orquestra de músicos
empoados; estava entoando uma pura melodia jamais ouvida antes.
(Tudo era
estranho, justamente por tudo lhe parecer familiar. Até o gato do vizinho se
imiscuíra no sonho, com os seus movimentos circunspectos, cautelosos…)
Sobretudo, a
estranheza era devida à impossibilidade de decidir onde se encontrava: se no
seio da música de Bach, se no conforto do seu estúdio ou se no universo dos
sonhos… Talvez estivesse nesses três universos em simultâneo. Era a alegria metafísica
que o invadia, que o impulsionava a subir aquela escada de luminoso cristal que
se erguia pelos céus em arcada, num majestoso arco-íris. O livro que tinha
estado a ler, porém, não estava relacionado com tal visão. Embora não se saiba
o conteúdo exato do mesmo, sabe-se que era de bioquímica. Com efeito, no campo
dos sonhos onde evoluía, bailavam várias espirais caprichosas de proteínas,
enroladas em torno de eixos invisíveis, em tons de vermelho, roxo, castanho e
azul-escuro. Deslocavam-se, rodavam e pulsavam ao ritmo da música. Por vezes,
aproximavam-se umas das outras, ou se afastavam como galáxias no Universo.
[Depois, mergulhou num torpor
profundo e sua visão esfumou-se rapidamente.]
SONHO 4:Salmo Primeiro, Coro de monges do
mosteiro de Optina (Rússia)
Eles aqueciam-se como podiam ao calor da
fogueira. Estavam no meio da estepe gelada. Outros fogos tremeluzentes se viam
por todo o horizonte. Irkutz estava a onze vestras. O acampamento fora ordenado
ao cair da noite. Em Setembro já mordia o frio do outono. De vez em quando, ao
longe, ouvia-se o tropel dos cascos da cavalaria, que passava perto do nosso
acampamento. Ouviam-se também vozes em surdina, dos soldados do regimento de
infantaria nº16, em torno da fogueira. Nunca mais se calavam; falavam de tudo e
de nada. Rompido de cansaço, acabei por adormecer. Um suave calor bafejava-me o
rosto.
Não sei se foi sonho ou foi realidade; não sei
se ela se deslocou por artes mágicas até ao acampamento ou se sempre lá
estivera:
- O que sei é que o seu rosto estava lá, no
meio dos meus companheiros de armas. Aquele rosto trigueiro e oval, com olhos
de faiança e cabelos de seda. Vestia com modéstia, mas o seu porte era de uma
princesa. Sua doçura e espontânea bonomia derretiam-nos a todos. Ninguém era
insensível à beleza, no meio de tanta fealdade.
Vi o seu vulto levantar-se da roda da fogueira,
com um movimento ondulante e flexível, erguendo-se no meio dos meus
companheiros. Logo começou a entoar uma prece. Ela dizia o verso e o coro de homens
respondia-lhe. As vozes entoavam os salmos num uníssono perfeito, tanto as dos
velhos e ressequidos sargentos, como as dos jovens quase imberbes.
Tal era a perfeição, que me pareceu um encanto;
era como se nada tivessem feito na vida, senão cantar a salmódia. Os versos
eram espaçados por pausas. Nestas, o crepitar do fogo fazia-se ouvir. Maria
estava no meio de todos nós, seus familiares, vizinhos, amigos.
Não havia ninguém que não conhecesse Maria; não
havia soldado que ela ignorasse, a todos cumprimentava pelo patrónimo. Numa
ocasião, vira como ela tratava de um ferido que tremia de febre - já nem
conseguia segurar a colher ou a malga.
Senti-me feliz como nunca, nessa noite! Sabia
que estava sob proteção dum anjo enviado pelo Senhor. Nem a morte eu temia!
Desde então, trilhei os caminhos da luz e da
bondade, seguindo a Palavra, que ressoava na voz do povo.
Se foi sonho ou realidade, não sei. Para mim, isso
é indiferente, pois a vida mudou-se totalmente a partir dessa noite.
Tive de sofrer muito; vi horrores, tive medo,
frio, fome, fui ferido, bati o dente de febre, corri como um coelho diante da
metralha. Esporei desesperadamente cavalos e cruzei ferro com inimigos ferozes,
tão desesperados como eu. Percorri milhares de vestras em países distantes, sob
climas tórridos ou gélidos. Sou o que sou, sem dúvida. Mas não tenho a
arrogância de me considerar mestre de meu destino. A minha vida foi igual à de
muitos homens, tão bons ou tão maus quanto eu. No entanto, sinto-me diferente. Tornei-me
outro, a partir da noite da visão acima descrita. A simples evocação dessa
noite, enche-me de suave júbilo. Iluminou vários momentos e episódios da minha
jornada.
Meu último desejo é somente que alguém
transcreva estas palavras. Ámen.
[Alexei transcreveu, 17 de Outubro, Ano da
Graça de 1842]
Agora estou à
porta de uma casa, no campo. Esta casa parece-me muito familiar, porém, ao
mesmo tempo, não sei onde estou.
É como se
tivesse sido transportado de repente a um local onde já estive no passado, mas
ao ignorar todo o caminho percorrido, tenho de tentar buscar na memória em que
circunstâncias eu me encontrei em frente desta casa ou de outra semelhante a
esta.
De repente, a
porta principal abre-se e sai de lá um jovem apressado. Leva uma sacola a
tiracolo; aparenta uns 20 e poucos anos… Ele não olha para o sítio onde me
encontro. Está decidido, no passo largo, ligeiramente curvado, olhando
fixamente o chão à sua frente. Que estará ele a pensar? Impossível saber!
- Embora eu
nunca venha a saber nada mais do jovem, agora já sei onde e como eu vi esta
casa pela primeira vez: …. Curiosamente, este jovem desconhecido permitiu-me
situar-me no tempo. Num tempo muito diferente deste, embora as casas e as
indumentárias fossem pouco diferentes do que se vê agora.
Sim, foi há uns
quarenta anos e aquele jovem…sim, era eu!
[O impromptu, como o nome o indica é, na
origem, um improviso. Estes improvisos transcritos de Schubert têm o dom de,
magicamente, nos restituir a atmosfera dos serões vienenses.
Não sei se este é o impromptu que melhor
faz vibrar a corda sensível dos outros. Mas, certamente no que toca á minha
pessoa, quando o oiço, é impossível não começar a sonhar acordado:]
-Sonho
que estou sentado à lareira de uma casa burguesa, está uma primavera fria -
neva lá fora. Uma jovem está ao piano, de costas para mim, com um xaile de lã
axadrezada e executa com nonchalance este impromptu.
O professor, um jovem com uma casaca
escura e gravata branca, de pé no lado esquerdo da executante, ligeiramente
inclinado, segue a interpretação lendo a partitura, uma mão pronta, ao canto da
mesma, para virar a página.