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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

AUTONOMIA EM CONTEXTO DE CRISE SISTÉMICA

 Porque não aproveitar o contexto de crise, para fazer mudanças radicais no nosso próprio estilo de vida? Serão apenas multimilionários, os capazes de tirar partido das oportunidades que inegavelmente surgem, como agora, aquando duma crise sistémica?

Não pretendo aqui insinuar que se deva fazer isto ou aquilo. Não quero dar a ideia de que preconizo algo como uma ruptura na vida particular do/a leitor/a. Primeiro, porque - em muitos casos - desconheço completamente o/a leitor/a; segundo, mesmo que conheça, a minha ética coíbe-me de ser juiz ou conselheiro da vida alheia. 

Eu apenas olho em torno e vejo como certas pessoas mudaram suas vidas, com imenso benefício para a sua saúde e também, nalguns casos, melhorando o seu bem-estar material.  

Penso que essas pessoas de que falo, não são susceptíveis de aparecer em destaque nos jornais e magazines. Algumas terão dado entrevistas, ou entreaberto a porta das suas vidas a jornalistas, mas - por norma - estão completamente fora da «grelha», fora da «rede». 

Encontram-se normalmente em pequenas comunidades, não muito maiores do que meia-dúzia de famílias. Têm um modo perfeitamente sensato de se comportar; cultivam a terra, produzem o que consomem, algum excedente serve-lhes para obter somas de dinheiro que precisam, para comprar o que não podem obter por eles próprios, ou que é não-rentável produzir.

As crianças dessas comunidades têm liberdade de fazer a descoberta da natureza, acompanhadas por seus pais. Não têm de frequentar uma escola normalizada e redutora da sua criatividade natural. Isso implica um programa estrito de ensino ao domicílio, os seus encarregados de educação desempenham o papel de professores. Assim foi, durante incontáveis gerações. Antes da existência da escola formal, como aprendeu o género humano? Com os pais, com a família alargada, com os vizinhos e com pessoas que pertenciam ao mesmo agrupamento.

A sua existência, tanto das crianças como dos adultos, não é monótona, nem incerta. Estão vocacionados para se comportarem como seres activos. Têm de providenciar ao máximo de necessidades da vida, não apenas à obtenção de alimentos; também à construção (ou restauro) de casas, construção ou reparação de veículos e ferramentas, confecção de roupa, etc. 

Não havendo recurso ao que se chama «comodidades», ou seja comércio - principalmente, as grandes superfícies-  vendendo quase tudo o que uma pessoa possa necessitar - também a sua vida está mais livre. Não dependem essencialmente do dinheiro para viver. 

A coesão de tal sistema passa, inicialmente, por uma tomada de consciência dos males que advêm da sociedade dita «desenvolvida», na qual os indivíduos são postos ao serviço da máquina económica, quer como escravos assalariados, quer como consumidores... o que é, aliás, a mesma coisa, pois a imensa maioria só poderá consumir, ou porque ganha salário, ou o ganhou no passado, sendo agora pensionista. 

Mas, depois dessa tomada de consciência do que se rejeita, tem de verificar-se uma tomada de consciência positiva, daquilo que se pode empreender para mudar uma situação que não nos satisfaz. 

A construção nasce de um projecto familiar ou de vários projectos familiares confluentes, obra de pessoas activas, capazes de grande eficiência em múltiplas tarefas, mas que sabem que a complementaridade das pessoas é um aspecto fundamental para o todo. Daí que ninguém esteja excluído, ou tenha um papel passivo. Logo a partir deste ponto, em tal grupo, que não ultrapassa umas poucas dezenas, as pessoas estão real, material, emocional e espiritualmente unidas. Este facto, em si mesmo, desencadeia uma sinergia, possibilitando a edificação realmente fora do sistema.

Nada obriga a que os membros da comunidade tenham os mesmos valores. Porque hão-de todos guiar-se por ideologia ou religião, comuns?

 - A única questão que se coloca a este nível, é o entendimento de que, cada pessoa e o grupo no seu todo, são solidários em relação a todas as decisões que se tomaram em conjunto. Estão no mesmo barco, se o sacudirem com intrigas, polémicas e ódios, o mais certo é o barco virar-se e naufragar... Mas, parece óbvio que as pessoas que levam a cabo esta caminhada, pelo menos as mais experientes, sabem como evitar conflitos, como debater as questões em assembleia, como construir relações baseadas na entreajuda, sem hierarquias. 

O investimento inicial incidirá sobre um terreno adequado para exploração agrícola; pode ter ou não construções. No caso de ter edifícios arruinados, a precisar de restauro, este pode ser levado a cabo quando o grupo esteja na transição da cidade para o espaço rural. 

Um bom terreno agrícola, longe dos grandes centros urbanos, pode ser adquirido por um preço módico. Um grupo que constitui o núcleo inicial da cooperativa ou sociedade, poderá repartir o custo do terreno em partes iguais. A contribuição em trabalho será de acordo com a capacidade de cada pessoa, que é parte do projecto. O trabalho encomendado a alguém ou empresa exteriores, naturalmente implica pagamento, o qual deverá ser repartido entre todos.  

Não é necessário recorrer ao crédito (bancário), em muitos casos. É mesmo de o evitar, pois as mensalidades são difíceis de pagar em certos momentos, obrigando a manter uma entrada de dinheiro - normalmente, sob forma de trabalho assalariado - para cobrir a mensalidade devida ao banco. 

Não faz sentido uma quantificação rigorosa, mas a título de exemplo, dou esta indicação: Se 5 famílias tiverem adquirido um terreno, pelo valor de 100 mil euros, 20 mil euros para cada uma. A contribuição de cada parte poderá ser obtida por diversas modalidades: venda de propriedade pré-existente, poupanças, trabalho...

Eu sei que tal projecto é como um sonho para muitas pessoas. Mas, é realizável, aqui e agora. 

O Portugal do interior, abandonado durante dezenas de anos (senão séculos), ao contrário da estreita faixa «desenvolvida» do litoral, proporciona as vantagens de um ambiente pouco ou nada poluído, permitindo realizar agricultura biológica (logo, com elevado valor de mercado, nos circuitos comerciais), além de haver o povoamento das aldeias, onde tal comunidade terá necessariamente de se apoiar.

 Pois autonomia não significa «autarcia». Embora sejam frequentemente confundidas, são coisas totalmente diferentes:

- Na autonomia, uma pessoa ou grupo consegue tomar as decisões que norteiam a sua vida, consegue levar a cabo as tarefas necessárias para cumpri-las, consegue alcançar os fins que traçou.

- Na autarcia, há procura de auto-suficiência total, de não pedir nada a outrem, só contar com as produções próprias, em todos os aspectos da vida. A autarcia é impossível de se realizar, senão em escala muito grande e exigindo muitos sacrifícios das pessoas envolvidas na situação. Normalmente, é algo de países onde reina uma ditadura totalitária, ou em seitas que se apropriam das vidas das pessoas e as escravizam.

- O princípio da autonomia é transponível para a vida de cada um, seja em que circunstância for. É o indivíduo que assume a responsabilidade dos seus actos: por exemplo, tem cuidado em prevenir a doença, não precisando senão esporadicamente de cuidados médicos; ou que assume o controlo das suas finanças, pondo o dinheiro ao serviço do seu projecto de vida e não o inverso, ou seja, não fica amarrado a dívidas. É ser capaz de estar em sociedade, seja no emprego, seja noutro contexto, compreendendo como interagir com os outros, como desempenhar trabalho útil e fazer-se respeitar pelas suas qualidades, pela sua personalidade forte e confiável.

Pelo contrário, a autarcia será o projecto de alguém sem escrúpulos em explorar e dominar outros. Necessariamente, terá de haver outros. As vítimas que, devido a suas «vendas nos olhos», se deixam levar pelo(s) líder(es). Tipicamente, será o caso de uma seita. 

Uma vez compreendido o princípio da autonomia e a sua aplicação em toda a escala, desde o indivíduo à comunidade com variável dimensão, torna-se possível cooperar com outras pessoas que partilhem um desejo de vida liberta do ciclo infernal: perder a vida para ganhar dinheiro, e perdê-la novamente, gastando aquele dinheiro no consumoútil ou inútil.