Vem isto a propósito dos hinos
nacionais de Portugal e de França cantados em coro pelas multidões, antes da
«histórica» partida da final da copa UEFA em Paris de 10/07/2016
Os nacionalismos são um ingrediente absolutamente vital dos Estados.
Sem eles, não existe a tal «coesão nacional», ou seja, os oprimidos,
espoliados, humilhados sentirem-se «iguais» dos afortunados, dos poderosos, dos
patrões.
Lamento. Mas eu não cantei o hino nacional português («… Contra os
canhões, marchar, Marchar…») nem a marselhesa («D’un sang impur, abreuve nos
sillons…» ) por tudo aquilo que têm de bélico, permanentemente reatualizado,
nem que seja em manifestações «desportivas» como estas. Detesto o desporto
transformado em enorme empresa de manipulação dos povos!
Sempre detestei! Será politicamente «incorreto»? - Pois que seja, tanto
melhor!
A vivência de alguns anitos mostra-me como estes atos «inócuos» são
muito importantes dentro do inconsciente coletivo dos povos.
Os comportamentos dos «soldados» desta guerra simbólica do futebol, dos
«guerreiros» destas tribos coloridas, solidárias com os seus totens tribais… dos
governantes a «prestar homenagem» aos ídolos do povo porque senão, serão
escorraçados na próxima eleição…
Tudo isso me deixa frio e irónico. Um pouco nostálgico de um mundo
utópico, sonhado, em que o desporto fosse realmente desporto, não confronto de
tacanhez nacionalista…Fica abaixo uma crónica, publicada no Jornal «A Batalha»,
a propósito dos Jogos Olímpicos e do Euro de 2004.
Nacionalismo
e Desporto de Massas - No ano das Olimpíadas e do EURO 2004
Esta circunstância, ano de Olimpíadas e do Euro 2004,
estimulou-me a escrever sobre nações e nacionalismo.
O conceito de "nação" é frequentemente reduzido
ao de “Estado”, um conceito político, e portanto suscetível de se modificar com
o tempo, de ser completamente alterado ou até, mesmo, de desaparecer.
As nações, hoje, o que são? Há nações sem Estado e Estados
plurinacionais: quem duvida hoje em dia de que o povo palestiniano constitui
uma nação? Quem pode negar o facto de que a Espanha, aqui ao nosso lado, é uma
entidade política - um Estado - plurinacional?
Claro que não podemos confundir Estado com nação. O tempo
de vigência dos Estados é, em muitos casos, bastante menor do que o da
existência de nações. Veja-se o tempo em que a Polónia não existiu como Estado,
mas que o continuou a ser como nação. Poderíamos multiplicar os exemplos, tanto
retirados a História europeia, como do resto do Mundo.
As nações sem Estado não são uma exceção, são antes a
regra. Esta afirmação pode parecer surpreendente, mas ela resulta da observação
da história da humanidade. Os primeiros Estados, foram construídos a partir de
há cerca de dez mil anos atrás, com o surgimento da revolução agrária, o aparecimento
da escrita, das primeiras cidades, de uma casta sacerdotal, de funcionários,
etc. ... Porém, as nações já existiam muito antes; a espécie humana moderna tem
pelo menos 200 mil anos.
No presente, apesar do genocídio dos índios das Américas,
existem muitas nações índias, confederações de tribos ou de grupos étnicos que
mantêm laços estreitos entre si. Isto tanto na América do Norte, como Central,
como do Sul.
Os povos Africanos, em particular subsaarianos, também têm
numerosas nações, as quais possuem uma enorme riqueza linguística, em risco de
perda pela urbanização (catastrófica) das populações. Os territórios de tais
nações étnicas africanas são complemente diferentes das fronteiras dos Estados,
traçadas em virtude da partilha colonial e uma das causas de sangrentos
confrontos, que têm mantido este continente na miséria.
Os Estados pretendem representar as nações; porém, eles
apenas conseguem isso através de um artifício. As pessoas, atomizadas,
individualizadas, desenraizadas da sua cultura, de suas tradições, aceitam de
bom grado (na imensa maioria) que lhes imponham uma "cidadania".
Esta "cidadania" mais parece uma espécie de
"salvo-conduto", permitindo a uma pessoa viver em condições mais ou
menos semelhantes (em teoria) com os outros. Caso não se seja
"cidadão", entra-se na categoria de "estrangeiro".
É curioso o caso de turcos de segunda geração, que apenas
falavam alemão e que não tinham da Turquia mais do que relatos e recordações de
seus pais, considerados como estrangeiros face à lei alemã, até há bem pouco
tempo. A lei mudou, mas sempre com muitas restrições, por receio de
"desalemanização" de uma bem nutrida, egoísta e paranoica pequena e
média burguesia.
Nós, em Portugal, temos os mesmos complexos, os mesmos
comportamentos e não sabemos sequer olhar para nós próprios com um mínimo de objetividade.
Realmente, a "cidadania" é uma daquelas
violências que os Estados infligem ao conjunto das pessoas que, por qualquer
motivo, nasceram ou vieram viver para um dado território. Não tanto por que
seja imposta, como de facto é (ninguém me perguntou se eu desejava ser cidadão
português), mas antes porque se define
como exclusão, se define justamente por confronto com “aquele que não é
cidadão”, o qual é colocado nessa situação de
negação de direitos, pelo arbítrio de regras e de normas que não
dependem jamais da sua vontade. Por
exemplo, toma-se como critérios principais ter nascido em tal local; ser filho
de determinados mãe e pai, etc.. Estes critérios, independentes da vontade do
indivíduo, sobrepõem-se a outros, como sejam: a capacidade de se exprimir no
idioma, estar inserido na sociedade,
dando contributos relevantes para a mesma, etc. critérios que estariam em larga
medida dependentes da vontade.
No início dos tempos modernos, no tempo da Revolução
Francesa, os constituintes de então não tiveram hesitações em ligar cidadania à
identificação com um determinado projeto político (a república). Assim, houve
acolhimento como cidadãos de irlandeses, britânicos, polacos, etc.
Três quartos de século mais tarde, na Comuna de Paris, o
Comité Central da Comuna também não hesitou em incorporar elementos de outras
nacionalidades, incluindo-os nas fileiras da Guarda Nacional, em postos de
comando (capitão, etc. ).
Hoje em dia o conceito de "cidadania", ligado ao
de "sociedade civil", como entidade mítica suprapartidária, supraclassista,
etc... vem sendo reforçado, face à crise de representação que experimentam
todos os partidos políticos e todas as correntes ideológicas. Porém, o modo de
que se reveste, na maior parte dos discursos que tive oportunidade de ler, é de
uma singular estreiteza, bem menos generoso do que o dos Convencionais de 1793
ou dos Communards de 1871.
O desporto é transformado numa expressão de nacionalismo,
muito desvirtuando o ideal de uns Jogos Olímpicos como símbolo da paz e da
fraternidade entre todos os humanos, independentemente das suas identidades
nacionais, étnicas, religiosas, etc.
É aproveitado como espetáculo de massas. Isto aconteceu,
quer com o regime de Hitler (a sua encenação dos Jogos de Berlim), quer com os
regimes de "democracia liberal", quer ainda com o regime soviético.
A partir da generalização da televisão, o desporto torna-se
também o maior trunfo da sociedade do espetáculo. Com a sedentarização das pessoas,
acompanhando a terceirização das economias nos países mais ricos, a
generalização do automóvel, etc.
As pessoas "vivem" simbolicamente os feitos
desportivos, através do mágico fluorescente cubo televisual, como se fossem
elas próprias a realizar os feitos; como se estivessem na pele deste ou daquele
“herói”.
O campeão (a equipa campeã) tem "a honra" de
subir ao pódio e de ouvir em silêncio recolhido os acordes do seu hino nacional
enquanto é içada a bandeira nacional respetiva. O efeito, nos espectadores,
deste cerimonial desportivo é de reforço inconsciente (e portanto mais eficaz)
do orgulho "nacional", na realidade nacionalista.
Também conhecemos a utilização das exaltações nacionalistas
em torno do desporto (quase sempre de futebol) por gangs de hooligans com
ligações bastante claras a grupos violentos de extrema-direita.
Sem dúvida que a possibilidade dos grupos humanos se
encontrarem e competirem desportivamente, de forma saudável, não é aqui posta
em causa. O que ponho em causa é o aproveitamento de um desejo natural de
perfeição física, de superação dos obstáculos, de entreajuda, de camaradagem,
de confronto leal e, na sua essência, não-violento, para manter, cultivar e
mesmo exaltar o "vírus" nacionalista.
As pessoas que se deixam enredar pelo imaginário desse
desporto-espetáculo, que vivem obcecadas com as "performances" dos
seus ídolos, constituem para mim uma causa de espanto e de angústia.
Eu tenho assistido ao vivo ou pela tv a espetáculos
desportivos, pratiquei várias modalidades desportivas como amador, não tenho
nenhum preconceito contra a educação da mente e do físico em que consiste o
treino e a competição desportiva.
Não gosto de lhes colocar o rótulo de
"alienadas", mas de facto, que outra expressão serve para
caracterizar o comportamento de pessoas que apenas se interessam por futebol,
com exclusão quase universal de todas as outras coisas, que desprezam aqueles
que não têm interesse nisso, que fazem alianças ou tecem ódios em função dos
clubes, que são capazes de decorar - sem esforço- nomes, locais, datas, etc.
relativos aos grandes feitos de sua equipa preferida (e de outras) mas
completamente ignorantes da história, da literatura, da arte, da ciência?
Fica aqui esta interrogação: será isto tudo
"desporto" ou será antes, operação de propaganda ideológica dos
Estados, em sua autopromoção?