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segunda-feira, 17 de julho de 2023

REPÚBLICA DOS POETAS n.º I David Mourão Ferreira

 Desta república dos poetas, tenho tido muito poucas notícias ultimamente. É quase certo que existem interferências, que me impedem de ouvir e ler aquilo que têm para me dizer, os habitantes desta república. Como é evidente, esta república não é uma nação física mas, apenas, uma república espiritual. É um conjunto de palavras escritas e pronunciadas, que consiste na melhor e mais duradoira parte duma língua. Será música, ela própria, suscetível de ser escolhida por compositores e interpretes, que fazem dos poemas que eles selecionam a base para suas canções, ou coros, ou poemas sinfónicos.  A língua portuguesa é muito rica em sons, também em entoações regionais próprias. Beneficia também de uma vasta expansão geográfica, o que significa ser veículo de expressão de literaturas bem diversas.

Por outro lado, a biologia diz-nos que há algo muito fundamental na Língua-Mãe. Esta é ouvida pelo bebé, ainda no ventre materno. O feto reconhece a voz da Mãe e do Pai, entre todas as vozes que ouve. Está demonstrado que reage de modo diferente perante essas vozes, em relação a quaisquer outras, que lhe sejam estranhas. O recém-nascido presta igualmente muito mais atenção a conversas ouvidas na sua língua-materna, do que noutras quaisquer, embora não possua, nessa idade, capacidade linguística  para compreender o significado das palavras. Mas, como a música da língua é muito própria, nos sons emitidos e na associação entre eles, os sons da língua materna são-lhe familiares. 

O ser humano está predisposto, epigeneticamente, enquanto criança e enquanto adulto, a ouvir e a falar a língua do seu povo.  Eis a base biológica para compreendermos a relação muito própria entre um povo e sua língua: Relação propriamente umbilical. 

Desde muito cedo, apreciei a poesia. De acordo com o meu próprio estádio de desenvolvimento, enquanto criança ou adulto, fiz as minhas escolhas estéticas, selecionando nos poetas portugueses e franceses (as minhas duas culturas de origem), aqueles cujos textos desencadeavam em mim um maravilhamento. Esta sensação, o maravilhamento, ocorre quando se ouve ou lê um texto. Algumas vezes, o seu conteúdo é transmitido de forma tão perfeita e bela, que não poderia ser expresso melhor. A música é a arte humana que vem (mais) de dentro, pois está ligada à produção de sons, vibrações, pulsações do nosso próprio corpo. Aliás, sentimos também a ressonância musical vinda de outro corpo. 

A música da língua está primeiro, na ordem de prioridades de «fabricação» de um poema. O poeta escolhe palavras de acordo com o sentido que deseja veicular ao leitor, mas sobretudo, escolhe-as em função da sonoridade e conjugação entre elas, para exprimir uma peça musical. Esta, pode ter grande originalidade, mas também (infelizmente) pode ser banal, desinteressante. Em geral, a força e a subtileza com que o poeta se exprime, estão relacionadas com a profundidade dos sentimentos e pensamentos próprios.

Vou estrear esta série da «República dos Poetas» com um poeta português - já falecido - David Mourão Ferreira. Evidentemente, escolherei sempre os autores e as suas obras, de acordo com o meu gosto subjetivíssimo. O que exprimo neste blog, quando falo sobre essas obras poéticas é apenas um mero reflexo pessoal das minhas escolhas estéticas e do que me vai no pensamento. Mas, as subtis harmonias  que se desprendem destas obras, têm matizes infinitamente diversificados e percetíveis por Vós, meus leitores, devido à infinita variedade do humano.









terça-feira, 7 de agosto de 2018

AMÁLIA LÊ «LIBERTAÇÃO» DE DAVID MOURÃO FERREIRA+ GRAVAÇÃO DE FADO AO VIVO (1952)


           Libertação
David Mourão-Ferreira



Fui à praia, e vi nos limos A nossa vida enredada, Ó meu amor, se fugirmos, Ninguém saberá de nada! Na esquina de cada rua, Uma sombra nos espreita. E nos olhares se insinua, De repente, uma suspeita. Fui ao campo, e vi os ramos Decepados e torcidos. Ó meu amor, se ficamos, Pobres dos nossos sentidos! Em tudo vejo fronteiras, Fronteiras ao nosso amor. Longe daqui, onde queiras, A vida será maior! Nem as esperanças do céu Me conseguem demover. Este amor é teu e meu, Só na Terra o queremos ter.



Estes dois documentos video complementam-se magnificamente.
No vídeo da leitura do poema, David Mourão Ferreira aparece por breves instantes, embora não fale. 
A gravação do fado foi feita ao vivo no café Luso, em 1952. Nesta gravação, pode-se apreciar a qualidade vocal de Amália e sua perfeita adequação ao conteúdo poético.