Ela pode ter sido fortemente impulsionada pela comunidade de negócios, aliada com os serviços de «inteligência» dos EUA e britânicos. Mas, o facto permanece que os problemas de Hong-Kong são os mesmos que os da China continental, mas sob outra perspectiva.
Vou tentar explicitar o meu ponto de vista da forma mais simples possível.
A estrutura do poder na China é a dum capitalismo de Estado (designada «socialismo com características chinesas»).
Neste capitalismo de Estado, contam sobretudo as ligações orgânicas ao poder político e à hierarquia militar. Os que estão próximos do poder, beneficiam de uma situação de enorme privilégio que lhes permitiu amassar - durante menos de vinte anos - fortunas. A China é um paraíso para bilionários...
A China reveste-se portanto das roupagens do «socialismo», para levar a cabo um desenvolvimento que efectivamente arranca milhões da pobreza, mas também projecta a desigualdade e a estratificação de classes para níveis do século XIX.
Os marxistas auto-iludem-se ao ver a China como a grande esperança de um socialismo brotar - como que por encanto - do mais vigoroso desenvolvimento capitalista deste século.
Quando Hong-Kong entra em revolta dá-se uma coligação frágil de interesses entre defensores de uma visão radical da democracia (essencialmente estudantes) e uma burguesia, que vive numa bolha artificial de negócios, centro internacional da Ásia como há poucos, com toda a espécie de negócios, o capitalismo sem máscara, glorificado pelos mais fundamentalistas religiosos dos mercados.
Do outro lado, a burocracia do partido comunista está interessada em Hong-Kong enquanto porta de entrada de capitais frescos para alimentar a economia de exportação - embora esta esteja em desaceleração - na China continental. Este facto é suficiente para esperar que a situação se acalme, em vez de usar a violência da repressão, conquanto não a descarte totalmente, como se pode verificar com o amassar de forças militares na cidade próxima de Hong-Kong, em Shenzhen.
Com certeza que Hong-Kong, na sua natureza capitalista não disfarçada, contradiz a doutrina socialista com características chinesas oficial. Porém, o facto de ter regressado à soberania chinesa foi um êxito do regime pós-Mao.
Com efeito, o regime chinês mascara-se de socialista, mas a sua essência é a de um capitalismo de Estado, de características orientais, evocando o «Modo de Produção Asiático» que Marx inventou para arrumar aquilo que não se conformava nem com o modelo feudal, nem com o capitalista.
É igualmente importante, sobretudo pela coesão das massas com a elite dirigente, o nacionalismo nesse dito «socialismo com características chinesas».
A aceitação passiva pelo povo do PCCh, tem a ver com a cultura nacionalista arreigada, nomeadamente, com a atribuição aos imperialistas de todos os males que sofreu o povo chinês no «século de humilhação»(entre 1840 e 1949).
Mas também tem a ver, por outro lado, com a rápida ascensão do nível de vida de milhões de pessoas, devido ao «milagre» económico das últimas décadas. As pessoas renunciam à esfera política, porque ocupando-se apenas dos assuntos do quotidiano, das suas vidas pessoais, conseguem alcançar uma relativa felicidade, avaliada em termos da construção de uma carreira, de uma família etc.
Apenas os estudantes, com o seu modo de vida incerto, enquanto grupo social em transição, sem segurança, sem fortes amarras ao mundo da produção, têm atracção pela militância política; em geral ela traduz-se pela defesa de mais democracia, mais liberdade, maior justiça social. As suas posturas tornam-se facilmente extremas e as formas, radicais.
Isto verificou-se também, ironicamente, nos movimentos radicais na origem do Partido Comunista da China e de outros partidos comunistas da Ásia, na década de 1920.
Em termos gerais, a situação encontra-se num impasse. Mas ela terá uma resolução, seja ela qual for, mais ou menos repressiva. Tal, porém, dificilmente será no sentido de satisfazer os anseios da população autóctone pela conservação da sua democracia e auto-governo, sentimentos generalizados dos que se manifestam pacificamente em Hong-Kong.
A razão deste meu pessimismo, é que as forças que têm conduzido a contestação não estão interessadas na conciliação com o poder comunista, não querem a negociação: querem prolongar o braço-de-ferro, porque a sua táctica, inspirada e encorajada pelas agências da ex-potência colonial (Grã-Bretanha) e dos EUA, é a de expor o poder de Pequim, como sendo de natureza totalitária.
As potências ocidentais esperam assim desautorizar a ascensão da China à liderança do Terceiro Mundo, como no tempo do Movimento dos Não-Alinhados dos anos 60 do século passado. Mas agora, esta liderança já não seria sob a bandeira internacionalista (incluindo nela o nacionalismo revolucionário dos movimentos de libertação), mas teria as roupagens dum mundo multipolar, através das «Novas Rotas da Seda».
No ponto de vista geo-estratégico, esta agitação em Hong-Kong é um episódio da guerra híbrida levada a cabo pelos poderes ocidentais e os EUA contra a China. Não existe solidariedade verdadeira com a população de Hong-Kong da parte destes governos, nem da media ocidental; não estão realmente interessados na liberdade dos cidadãos de Hong-Kong.
Eles tentarão tudo para desencadear uma situação de repressão, com Pequim no papel de «mau da fita».
O jogo das potências ocidentais é triplo: trata-se de
(1) afundar a sedução das Novas Rotas da Seda junto de governos dos países do «Terceiro Mundo»,
(2) desestabilizar por dentro o regime chinês e
(3) «justificar» perante a sua opinião pública ocidental a agressividade, o cerco militar que têm levado a cabo, iniciado com o «Pivot to China» de Obama e continuado por Trump.