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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

RAMEAU - PRIMEIRO LIVRO DE PEÇAS PARA CRAVO (1706) Suite em Lá menor


                                                 

Rameau foi celebrado como o mais destacado músico francês da época barroca. O talento e criatividade de Rameau permitiram que ele se erguesse até um lugar proeminente no gosto do público, quer fosse na corte, quer em meios muito mais modestos.

Sobressaem a delicadeza e adequação das suas composições para o cravo, como a Primeira Suite. Ele fez imprimir estas peças, reunidas em livro, para se tornar conhecido, quando veio de sua cidade natal (Dijon) para a capital, decidido a conquistar o seu público. 

Ele construiu um reportório único de ópera e de ópera-ballet. Muitos consideram-no o verdadeiro fundador da tradição de ópera francesa, apesar dos antecedentes de Lully e de outros. 

A sua polémica com Jean-Jacques Rousseau, filósofo das Luzes e defensor da ópera italiana, foi célebre na altura... já quase ninguém, hoje em dia, compreende sua razão de ser. É que Rameau foi também um teórico da música e procurou fazer música prática coerente com os princípios, defendidos na qualidade de teórico. Por exemplo, uma peça - L'Enharmonique - é uma aplicação muito directa dos seus conceitos teóricos.

A suite em Lá menor, na verdade, não é nada rebuscada, não é difícil de «entrar no ouvido». Eu gosto de me banhar neste universo sonoro, enquanto estudo ou quando ocupo as mãos com uma tarefa de precisão. Mas, ela é muito mais do que «música de ambiente», reconheço que esta música tem uma qualidade excepcional. Não tem «efeitos especiais» para cravo, que exibem recolhas posteriores de Rameau, com peças descritivas, as mais executadas em disco ou em concerto.

O prelúdio desta Suite é uma peça muito especial e típica da tradição dos cravistas e alaúdistas franceses. Ela não tem barras de compasso a separar as notas, é um prelúdio «non-mesuré». A duração das notas não é precisa. Isto significa que o executante tem uma latitude maior para interpretar a peça. O prelúdio derivou da improvisação inicial que os cravistas e alaúdistas executavam, no início de um recital, quer para verificar a afinação do instrumento, quer para colocar o auditório perante o contexto sonoro apropriado à audição da Suite. Muitas peças das Suites possuem nomes de danças; pois são, de facto, danças estilizadas. Por isso, o compasso, o andamento, o tamanho das frases e secções, as repetições, as modulações, etc. não eram «livres», eram características impostas pela natureza da dança estilizada: uma Sarabande, um Menuet e todas as outras danças tinham de obedecer a regras precisas. 

Nalguns casos, uma Suite não era mais do que a recompilação de peças no mesmo tom. Isto observa-se, apesar de haver, nalguns compositores, uma certa sistematização, uma procura de unificação através de temas semelhantes, mas estes traços não são generalizáveis. Temos indicações seguras de que - nessa época - a Suite era vista como um agrupamento conveniente, não de execução integral obrigatória: O executante podia adoptar uma ordem diferente da que estava escrita, podia encurtar ou aumentar o número de peças.



segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

O TERRAMOTO, NA FILOSOFIA, NA TEOLOGIA E NAS ARTES

Vem esta crónica a propósito da exposição «anatomia de uma pintura» (1) que está em exibição no Museu Nacional de Arte Antiga.  

                                  

Esta pintura do célebre pintor da época, João Glama (c.1708-1792), descreve a sua memória do que presenciou; é o melhor testemunho directo, visto que não existia fotografia, nem registo sonoro, apenas os esquissos de artistas poderiam dar conta, para as gerações futuras, da catástrofe e das suas consequências.

                      

Para além do momento, para além da geografia, este terramoto, marcou uma ruptura. 
Por essa altura, a intelectualidade erudita da Europa, aquela que «pensava o mundo», estava envolvida em polémica, uma guerra de ideias. 
Os autores libertinos de espírito, mais ou menos deístas (como Voltaire) ou mais ou menos ateus (como Diderot), esgrimiam-se contra a Igreja católica e contra a religião instituída, em geral. 
Tudo servia como argumento para destronar as visões teológicas de uma «Causa Divina» ou «Providência», para os acontecimentos deste mundo. 
Voltaire difundia, nos seus panfletos, a ideia de que Deus fez o mundo, como uma máquina, dotada de leis maravilhosas e simples, como ensinara Newton, mas não se inquietou em o manter em funcionamento (a metáfora do Grande Relojoeiro). 
Outros, clandestinamente, tentavam provar que não existia Deus, que o Universo se poderia explicar simplesmente pelas forças materiais e pela conjugação dos átomos, retomando o modelo do atomismo grego (Demócrito) e tentando demonstrar que não é necessária a hipótese de Deus para compreender o mundo, que todos os fenómenos tinham uma causa natural.
Aquando do Terramoto de Lisboa, acontecimento terrível que parecia castigar sem piedade um reino inteiro e sua população, logo saltaram os habituais predicadores da moral dizendo que se tratava de um castigo, da «Providência divina». 
Nessa ocasião, a crença em Deus ainda estava profundamente ancorada nas mentes da pessoas. Não era como agora, em que acreditar em Deus e afirmá-lo é quase um acto heróico, pelo menos em certos meios. 

Leibniz salvaguardava Deus no concerto universal, afirmando que tudo estava feito desde o início, segundo «o melhor dos mundos possíveis», projectando a Providência divina para a eternidade, pelo que aquilo que nos pareciam crueldades e imperfeições da Natureza, na realidade, não o eram, mas apenas consequências, fenómenos inevitáveis da divina obra global, mas cujo plano e desígnio estavam para além da humana compreensão.
O debate entre filósofos centrava-se em torno da questão de saber se existia, ou não, uma «divina providência» e o terramoto de Lisboa serviu como argumento, pela impressão profunda de horror, de absurdo existencial («avant la lettre» !) que se desprendia de tal destruição. 
Não! A Natureza, nem sempre era boa e generosa, também era capaz de - num instante - destruir vidas inocentes, de riscar povoações inteiras do mapa, transformar em montão de ruínas as cidades mais formosas.

Carlos Maria Bobone escreveu um artigo (2) bastante aprofundado, muito legível, sobre esta relação do debate filosófico no século das luzes com o grande terramoto de Lisboa de 1755.

Embora de um período mais tardio ( cerca de 1790), a peça para órgão de Mozart (3), pode ilustrar este tema, pela profundidade trágica que emana dos seus acordes.


    
  

Mozart era mação, tinha uma visão da Divindade  como «O Grande Arquiteto». Deixou-nos, além dessa obra-prima imortal, A Flauta Mágica, algumas obras abertamente maçónicas, destinadas a lojas que frequentava. 
Viena dessa época era tanto mais tolerante para com a maçonaria, que ela estava imiscuída nas mais altas esferas do poder político. 
Porém, Mozart não renegou o catolicismo; deixou-nos muita música sacra em conformidade com o rito católico, de profunda inspiração espiritual.



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(1) http://www.museudearteantiga.pt/exposicoes/anatomia-de-uma-pintura

(2) http://observador.pt/especiais/terramoto-de-1755-a-tragedia-que-arrasou-lisboa-e-tambem-mudou-o-mundo/

(3) https://www.youtube.com/watch?v=Q9WHeha80RA