O Natal é celebrado nos diversos recantos do mundo, não apenas nos sítios em que
existe devoção cristã e prática assídua dos ritos, como em muitos outros
sítios, por muitas pessoas que não estão a pensar no nascimento do Menino
Jesus, ao comemorarem o Natal.
O
Natal paganizou-se ao longo do século XX, perdendo o cariz estrito de festa
religiosa, nos nossos países ditos cristãos, na exata medida em que eles mesmos
se paganizavam.
A
nova «religião» do consumismo ia progredindo, à medida que eles se tornavam
países mais ou menos afluentes ou onde os elementos mais afluentes da sociedade
exibiam o seu poder de compra, a sua alegria de consumir, comprando prendas,
fazendo festas e cometendo excessos de comida e bebida. Não creio que
estivessem conscientes de que reproduziam, embora com adaptações, a
festa pagã do «Sol Invictus», que era celebrada na Roma antiga e no Império
Romano: Este culto solar era universal, de uma forma ou outra era celebrado em todas as grandes religiões pagãs da
antiguidade... Esta festa, em Roma, estava associada às Saturnalia, em honra do
patrono da Cidade e era pretexto para excessos de toda a ordem.
O
Deus Sol, segundo os primeiros cristãos seria uma antevisão confusa do Messias. O símbolo do solstício de Inverno, propiciador de ritos em adoração ao
Deus, foi assim subvertido completamente pelos teólogos para que o povo recém-cristianizado
deixasse de celebrar as Saturnalia e adorasse o nascimento da Luz do Mundo, de
Cristo Redentor.
Nestas épocas, em que as pessoas comuns tinham uma vida curta
e bastante dura, em que a tradição oral era poderosa, tal
conversão de símbolos foi eficaz. Também o foram a cristianização de símbolos
de fertilidade pagãos (os ovos, os coelhos de Páscoa), por ocasião da Páscoa. Embora, neste caso, a tradição da
Páscoa judaica impôs-se naturalmente na religião recém-constituída, tendo sido
associada à Paixão e Ressurreição de Cristo.
O
que os poderes civis e religiosos sempre fizeram e continuam fazendo é
estabelecer e perpetuar uma série de comemorações, de feriados e de rituais,
que têm como efeito imediato marcar o tempo vivido, o tempo subjetivo das sociedades
em geral, mas também de todos os indivíduos, seja qual for o seu credo
religioso. Também num país muçulmano os feriados marcarão o calendário e os não
seguidores desta religião terão de se conformar com tais ocasiões, mesmo que
não partilhem esses significados simbólicos.
Nos
países de capitalismo de Estado, quer na defunta URSS e satélites do Leste,
quer na China e outros, houve campanhas oficiais para abolir a religião,
sobretudo no período do estalinismo, mas essas campanhas não tiveram o resultado esperado: o povo permaneceu, em segredo, profundamente religioso.
Podemos
ver que, em geral, a repressão da religião traz sempre um reforço da mesma, fanatismo gera
fanatismo, intolerância gera intolerância, é assim que se originam as divisões
no seio dos povos, que se originam conflitos com base religiosa.
No
Islão, conflito entre sunitas e xiitas - sempre latente desde o grande cisma –
estava adormecido e foi reavivado na sequência das invasões ocidentais do Iraque e dos
outros países do Médio Oriente. Aí, os EUA e vassalos
da NATO (países ditos «cristãos», com excepção da Turquia) têm tentado impor a sua «democracia» a ferro e fogo.
Embora
as circunstâncias sejam diferentes, vemos que existem analogias mais do que
superficiais com as guerras de religião que assolaram a Europa dos séculos XVI
e XVII.
Tanto
os países de religião oficial católica como protestante, tinham uma política de
total intolerância e discriminação dos cidadãos do próprio país que tivessem o credo minoritário. Perseguiam e suprimiam com enorme
crueldade toda a dissidência religiosa. Iniciavam guerras religiosas que
devastavam grande parte dos países, comparáveis às guerras contemporâneas. As alianças entre chefes de Estado
seguiam, no geral, a linha divisória Católicos/Protestantes.
Muito do
comportamento político-religioso dessa época reproduz-se agora, no mundo de hoje.
O
conceito de laicidade, que o filósofo Espinoza defendeu no seu «Tratado
Teológico Político», foi uma resposta inteligente da elite intelectual da época, retomada
pelas sociedades e por fim pelos próprios Estados a esta vaga de intolerância destruidora
do tecido social, económico e das relações internacionais.
A
laicidade não significa que as diversas religiões estejam «em pé de igualdade». No
sentido inicial que lhe deram Espinoza e outros filósofos políticos era antes
a neutralidade estatal perante a religião: O Estado não se imiscuía nos assuntos
religiosos, as leis não refletiam as escolhas pessoais dos monarcas por esta ou
aquela religião.
Em
caso algum, se tinha o objetivo de colocar no mesmo pé, dar igual oportunidade nos
media do Estado, às diversas confissões religiosas, ou ter aulas de religião
nos estabelecimentos de ensino do Estado, ministradas pelas diversas religiões.
Essa
interpretação da laicidade é realmente muito falsa, pois significa realmente a
perpetuação da «mão do poder estatal» nos assuntos religiosos.
Penso
que é muito importante, compreender que a paz civil, a concórdia entre pessoas
com credo religioso diverso ou sem religião, é um valor positivo muito
importante agora, não apenas no século XVII e aqui também, na Europa, não
apenas no Médio Oriente.
Especialmente,
quando as fanatizações político-religiosas de diversos elementos conduzem a
intensificar os ataques terroristas, dirigidos indiscriminadamente a pacíficos
cidadãos.
A
ideia de que se deve dar uma tribuna às diversas religiões, nos meios de
comunicação públicos estatais é mortífera. Bem entendido, considero essencial
para o exercício da liberdade de imprensa e de opinião, que toda e qualquer corrente
religiosa tenha o direito de produzir e difundir sua propaganda, como entender. Mas que o faça com seus meios próprios, não com os meios do Estado. Não considero lícito que o Estado censure e persiga judicialmente alguém ou uma
entidade, apenas por fazer ataques contra a religião A ou B.
Defendo que é ao nível da
sociedade civil, na opinião pública, que tais comportamentos devam ser
energicamente combatidos pelas pessoas esclarecidas da sociedade, cientes do
risco dos elementos fanáticos tomarem a dianteira da cena e desencadearem vagas de intolerância.
A
não-ingerência do Estado nos assuntos religiosos tem um efeito benéfico na
liberdade religiosa, em geral. Esta noção deveria ser compreendida pelos
hierarcas das diversas religiões, minoritárias ou maioritárias.
Nos países de tradição cristã, países que hoje se declaram «laicos», as hierarquias
católica, ortodoxa, anglicana ou luterana estão muito imiscuídas em assuntos de Estado, embora em graus
diversos, quando são maioritárias.
Argumenta-se
em defesa deste estado de coisas com a tradição. Mas a tradição não pode ter
maior importância do que a paz civil.
- Haverá
algo pior do que uma guerra civil?
- Resposta:
Não, nada pior ...a não ser uma guerra civil de religião.
Sem comentários:
Enviar um comentário