Os astros, indiferentes, olham para a Terra
Desde suas órbitas e dialogam uns com os outros.
Na conversa, ritmada pelos rodopios dos planetas,
Lançam, entre si, meteoros, ondas magnéticas.
Assim, trocam argumentos e pontos de vista
E, que dizem eles:
- Nada mais cómico do que ver a humanidade, estas formigas que se tomam por deuses: Estão tão convencidas da sua importância, que julgam que nós existimos para eles e suas paixões! Estão convencidos que os nossos percursos no espaço são apenas sinais de aquilo que os preocupa!
- É realmente cómico verificar que esta espécie, incompletamente amadurecida, tem constantes atitudes de total irracionalidade e - no entanto - se autointitulam de «animais racionais».
- Mas, não se fica por aí pois, no meio das desgraças, ainda tem energia para fabricar narrativas míticas onde deuses (nós!) se iriam imiscuir nas suas vidas de térmitas, de formigas, de bactérias...
- A sua soberba não tem paralelo, a não ser com a sua parcialidade. Consoante estejam a favor ou contra alguma nação, ou algum grupo dentro dela, designarão tal grupo ou nação de «bom» ou «mau», «justo» ou «pecador», «progressivo» ou «reaccionário». Enfim, seus juízos são sempre absurdos e sem qualquer justiça.
- Gostam de revestir-se dos mantos da legalidade e das leis. Deste modo, com esses mantos ilusórios, designam o «bode expiatório», do momento. Graças essa capa, vão cometendo os piores massacres e barbaridades, sempre com boa consciência.
- Não aprendem nada, pois vão repetindo até ao infinito as piores travessuras e os erros mais graves, cometidos ao longo da sua história. Têm conhecimento do passado, conhecem mesmo as causas das suas desgraças passadas. Mas têm uma doença estranha - amnésia social e colectiva. Basta uma geração, para que repitam os mesmíssimos erros do passado, que conhecem e às suas nefastas consequências.
- Que erijam alguns de sua tribo em profetas salvadores, nas suas variadas religiões, não surpreende por aí além. O que surpreende é que façam tudo para transgredir os ensinamentos e mandamentos das mesmas, e dos seus profetas respectivos. Então, que sentido faz adorarem esses profetas, esses ditos mensageiros dos deuses ...
Assim dialogam entre si os Corpos Astrais que sulcam o Cosmos, deveras divertidos com a grotesca farsa que os humanos representam, milénio após milénio, atribuindo as «culpas» aos astros, aos deuses ou às «forças malignas»!
Claro, eles próprios, humanos, causam suas desgraças, seus fracassos e infortúnios; mas a sua vaidade e egoísmo tem de os «isentar» - a todo o custo - de se verem eles próprios ao espelho de sua consciência!!!
Murtal, Parede, 25 de Dezembro de 2020
17- PERANTE A NOVA IDADE DAS TREVAS
Dias estranhos vieram e parece que vão ficar. Mais dia, menos dia, as coisas mudarão, sim. Mas, entretanto, o tempo passa e nada daquilo por que ansiámos se realiza.
Estamos metidos num túnel do tempo. Não podemos virar para um ou outro lado, não podemos recuar, só podemos avançar e não existe luz ao fundo do túnel.
Acham exagerada esta perspectiva?
-Eu também a achei; eu também refreei o pessimismo, tentei ver as coisas com olhos mais tranquilos... tentei e não consegui.
Agora, só espero que as pessoas saibam, por instinto, conservar a sua humanidade fundamental. Pois não se trata de menos, para mim, que uma luta gigantesca entre a civilização verdadeira e as trevas. Deixámos que as trevas se alongassem demasiado. Fomos condescendentes com os nossos pequenos pecados, de homens e mulheres vivendo nesta era super-sofisticada, nesta era de automatização, digitalização e de isolamento egocêntrico.
Pior; adorámos deuses de pacotilha, os nossos brinquedos de tecnologia, julgando com desprezo tudo o resto. Não desprezámos apenas os que não tinham acesso a tais «maravilhas», como desprezámos toda a herança cultural que os povos e culturas transportam, absortos e viciados na sofreguidão do prazer instantâneo, da ilusão de saber, potência, conhecimento, sabedoria...
O que melhor nos caracteriza é a impotência. A incapacidade em nos auto-governar, uma incapacidade que seria desculpável em crianças inexperientes, mas que ocorre em adultos e adultos muitas vezes caprichosos, embriagados de poder e honrarias.
No fundo, a humanidade está a encaminhar-se para o longo período das trevas, de livre vontade, pois várias são as vozes cheias de bom-senso que têm vindo a avisá-la. Estas vozes, de vários quadrantes espirituais, de várias escolas de pensamento, são a consciência da humanidade, mas pouco ou nada contam nas circunstâncias presentes.
Pelo contrário, a saturação de informação, vai relativizar tudo. Será necessário muito saber, sabedoria e coragem para destrinçar - num universo de falsas notícias e de pseudo-notícias - quais são as relevantes. Tornou-se impossível o cidadão comum efectuar esta triagem de informação.
No entanto, os que o fazem para nos fornecer informação, extensa ou resumida, não são neutrais, não são pessoas desejosas de comunicar a verdade; por outras palavras, não são repórteres ou jornalistas honestos, são propagandistas disfarçados de profissionais de informação.
Então, falando em relação a mim próprio e aos ideais que transporto:
- Que esta idade das trevas seja vista como parecida, em vários aspectos, à que fez a ponte entre a antiguidade e a idade moderna, da queda do império de Roma, ao Renascimento. Nessa altura, os restos da civilização greco-romana foram salvos da aniquilação por um pequeno número de eruditos, tanto cristãos, como muçulmanos ou judeus. Eles salvaram preciosos manuscritos, textos de ciência, literatura, filosofia, religião, dos séculos passados.
Os monges medievais passaram - de geração em geração - este legado, copiando manuscritos que, de outro modo, seriam perdidos para todo o sempre. Para mim, foram tão «heróis», como os humanistas do Renascimento, que se encarregaram de devolver à luz esses escritos, os traduziram, os comentaram, e construíram uma nova cultura sobre as bases da antiguidade clássica.
Estou lendo agora o D. Quixote na versão integral, em tradução de Aquilino Ribeiro.
Sinto que é importante nos apropriarmos novamente das obras clássicas da nossa cultura. Pois ela nos enriquece para além das nossas próprias expectativas mais optimistas. Saberão alguns que me leem o que é essa sensação estranha e deliciosa, como se estivéssemos em colóquio íntimo com esses mestres do passado.
Não posso dar conselhos a ninguém, só a mim próprio: Serei como os monges medievais, guardando uma espiritualidade, uma cultura e um saber, o melhor que puder, divulgando-os com o mesmo carinho com que as gerações anteriores se dedicaram a fazê-lo. Estou a fazer o meu dever, apenas, a restituir aquilo que recebi, o legado ou herança imaterial que molda verdadeiramente as nossas vidas em sociedade.
Quem não quiser ser triturado por robots ditos de Inteligência Artificial, que faça o que há de mais humano: reflicta, pense, emocione-se, exprima os sentimentos e as reflexões, comunique com os seus semelhantes, homens e mulheres de igual inclinação, dialogue por todos os meios com outras almas que sejam também sensíveis, curiosas, desejosas de fazer o bem.
Se conseguirmos manter esta corrente, nas várias sociedades, culturas e etnias que compõem o «puzzle» humano, outros poderão, mais tarde, retomar o fio da humanidade e comporão as obras de um novo Renascimento.
18- Quando eu estiver a fazer barro
Quando eu estiver a fazer barro
Sim, que resta de tudo o que este corpo desejou
Quando eu estiver num diálogo com os vermes
Que amor se acalenta ou se acabou?
Estamos sempre escutando aquela voz
Que nos diz sermos eternos
Porém, da vida eterna descremos
Não há coerência, nem senso
As coisas transitórias eu amo
Na sua transitoriedade,
A sua fugaz aparência
Não me ilude, mas encanta
Assim somos feitos, como sempre
Sem qualquer renúncia a tomar
O que é efémero, por eterno
E o eterno, menos que um sopro
Vogue eu, venhas tu,
Acordados neste sonho, para
Mais viajarmos em voo
Não de asa, mas de vento
Só nos cantos obscuros da mente
Encontro aquele fio de lã
Que nos dá o discernimento
De Ariadne nos Infernos
O resto é como uma barca,
Que se toma sonhando, no Verão
E as gaivotas deslizam audazes
Junto dos nossos mastros
Navego pelo sonho como pela vida
Sem distinguir, não vá eu acordar
Numa terra desconhecida
Acordar sim, mas no outro lado,
Naquele sereno céu estrelado
19 - LIBERDADE MINHA
Onde está a tua liberdade? Onde está ela?
Onde foi parar? Afinal, quem mo pode dizer?
A minha liberdade está no olhar, não embaciado,
nítido, sem azedume, sem prosápia, nem desejo de poder
Olho o mundo, olho as pessoas.
- O que penso do mundo, das pessoas?
Apenas eu sei. Aliás, sei que não sei...
quase nada, sobre o mundo e sobre as pessoas
Mas, para além do mundo existe o sopro do espírito,
do espírito cósmico.
Negá-lo é fechamento: Negá-lo não é ciência, nem sabedoria
O paradigma da falsa educação inverteu os nossos valores.
Mas, como o boomerang, a realidade vem ter connosco.
Que grande lição de vida! Cada derrota é uma lição.
A verdadeira vitória, é ver a vitória sem orgulho,
apenas como um dado.
Nada disto é paradoxal.
Só o pensamento binário faz disto um paradoxo.
A minha lógica escapa ao dualismo.
E vivo num mundo muito pouco frequentado.
Um mundo que se desvaneceu, que não está na montra,
que está fora do palco, nos bastidores
Afinal, existe...
Digo, afinal a liberdade existe, porque eu existo.
Esta é a minha leitura; não vos imponho nada.
Murmuro ao teu ouvido, Alma fina:
Agora sei, o que sempre soubeste
Não trocaria este saber por nada neste mundo.
Como não troco meu amor.
Impossível! Impensável!
O que é verdadeiro está no fundo,
tão lá no fundo.
É como uma batida do coração.
Sim, uma batida do coração
Murtal, Parede, 25/04/2021
20- O TEATRO DA VIDA
Tudo o que vês
Tudo o que se passa em teu redor
Os protagonistas, os figurantes
Tudo
É um teatro
É o teatro da vida
Não é comédia, nem tragédia
Embora possa ter cenas e atos
Que se conformam mais
com uma ou com outra
A vida é para ser vista como um espetáculo
Se estás metido nesse espetáculo,
Como ator ou figurante
Tenta fazer-te espectador.
Serás capaz disso?
E se o fores, garanto-te que
Terás uma certa paz
A paz de saber que
Agradável ou não
Este espetáculo
Tem um fim
Haverá um final - um tombar da cortina
E tudo acabou!
Sim, as chatices são transitórias,
Sim, as dores, os sofrimentos
Os gostos e os desgostos
Os prazeres e as frustrações
Tudo é transitório
Alegra-te:
É assim a vida, não vale
de nada te lamentares que
ela seja como é.
Se a vires como uma imensa
peça de teatro, ao fim e ao cabo
O que lá se passa pode implicar-te
Ou não, conforme queiras jogar:
Queres ser ativo, intervir, modificar
o enredo, acrescentar o teu grão de sal?
Pois seja; terás então de te aguentar
No palco da vida; é mesmo um palco,
Não se trata de metáfora.
Estás aqui durante o tempo da peça
E nem mais um instante.
Será uma convenção chamar
«morte» ao cair do pano,
«falecimento» à sineta que incita à saída
ou à musica pomposa que acompanha
O fim do filme na tela prateada.
Tanto faz: a saída acontece sempre
Podemos dizer: «ó, tão cedo! que pena»
ou «que alívio»...
ou não dizer nada.
Como numa peça ou num filme,
devemos usufruir de cada instante,
Com a melhor disposição possível
Apreciar os volteios dos acrobatas
As cabriolas dos animais de circo
As proezas dos ilusionistas
contorcionistas,
amestradores,
hipnotistas,
palhaços
etc...
Aplaudir, ou assobiar em protesto,
Mas, sempre com a noção
De estar perante um espetáculo.
Pessoalmente, quero assim proceder.
Não ficar empolgado
Com o que passa no palco
Porque a vida real é tão mais
profunda, atravessa
aquilo que chamam «a morte»
A morte pode ser um renascer, ou ser o vazio
Aceito-a, sem hesitação
Querer fugir a este destino
Faz da vida um inferno:
Não atrasa verdadeiramente o fim
E não se gozam os mais preciosos momentos
da curta existência.
A morte não me assusta,
a morte, a minha pessoal
Não a temo, nem vejo como seja para temer
Aceito que sou mortal
Tenho ganas de viver, sim,
mas isso não me inibe que aceite
a morte, como transformação.
No Universo é impossível haver desaparecimento, aniquilação
Tudo se transforma, nada permanece
21- PALAVRAS QUE SE EVADEM DO PRESÍDIO
Assim começa a história, assim se compõe a vida; somente um sopro de vela na vela da despedida
Como saber o que seria, se não fosses -tu- presença do quotidiano?
Sonhar outros mundos: assim se escapa da realidade, se esquece - por instantes - o olhar impiedoso do espelho.
Vou sinceramente procurar ser como um bicho, um animal que sente e reage e não pensa; não pensa, isto é... pensa, mas com as células todas do corpo.
Numa manhã de nevoeiro, imaginei-me a caminhar pela beira-mar. Não sei o que lá fazia; nem porquê. Apenas a brisa recolhia, que me beijava os lábios e os cabelos.
Sonho secreto dum eu que não se manifesta, que se esconde numa toca, uma doninha ou um coelho. Como viver, afinal? Respeitando o animal secreto, deixando-o tranquilo, lá na sua toca? Sim, sem dúvida!
Se tu não existisses, o mundo seria totalmente diferente; seria muito diferente, porque a tua existência é um facto indelével da realidade; é uma realidade indelével do real; sem ti, o mundo não seria o mesmo; porque o mundo precisa de ti, tanto como tu precisas do mundo. Com isto, não deves orgulhar-te nem encolher-te. Deves aceitar o facto, como um simples constatar de que a equação matemática está correta.
Oiço o teu respirar no silêncio da noite: é como se ouvisse a minha respiração... é a minha respiração.
22- ODE À MÚSICA ETERNA
Música, que nos comunicas calor na escuridão dos tempos,
Dás vida e desejo de prosseguir, em plena luz e d'alma inteira
Quero te adorar e te beber como criatura eternamente no Éden.
Sem ti, a sensaborona mediocridade arrastaria tudo para o abismo.
Imerso em ti, oceano sem limite, o espírito ressalta, retemperado.
23- ELOGIO DO SORRISO
Espontâneo, instintivo, o que desmascara o sorriso?
Desmascara o ser por detrás da máscara,
Com ou sem ela, tanto faz;
Eu vejo quando teus olhos sorriem para mim
Estou satisfeito pelo contacto humano que revelas
Não te conhecia há instantes
Agora, levo-te comigo
Desconhecido velhote,
Ou desconhecida empregada de balcão,
Desconhecido miúdo de sacola às costas,
Ou senhora anónima passeando o cão.
Afinal, não estou sozinho, no mundo; há pessoas
Que sorriem, que devolvem os meus sorrisos.
São pessoas, não são robots, são pessoas sensíveis
Ao contrário de tecnocratas e sociopatas, embora
Estes também sejam homens e mulheres
Que também foram menino ou menina,
Completamente inocente.
O que lhes terão feito para serem soldados
No exército devorador das nossas vidas?
Assim vai o mundo. Mas só, isolado, eu não estou!
Desafio as pessoas a sorrirem-me, a falarem-me,
Convido-as a não terem medo umas das outras.
Querem um antídoto para o vírus mortífero
Da estupidez?
Aqui têm: Sorrir...
Sentirmos que somos humanos,
Que a simpatia para connosco
E de nós para com os outros
Nos faz viver e ter esperança.
24- SONHOS QUE SÓ EU SONHEI
Emergi do sonho, ainda estonteado pela vertiginosa corrida, que fizera na dimensão onírica, onde tudo é possível e onde nada é aquilo que parece.
A pouco e pouco, as imagens maravilhosas esfumam-se.
Viro-me para o outro lado, na cama. Mas o sonho foi-se, nada o poderá fazer regressar.
Ficou-me o sabor a insólito, a sensação de segunda vida, o quarto secreto que se fecha quando voltamos ao quotidiano banal.
As respostas que tanto ansiava, tardavam em chegar, e os dias iam passando.
Só as noites eram minhas, e dormindo acordava no reino onde outra vida - forte - desabrochava.
Tudo o que me interessava estava para além do racional, da experiência sensível comum.
Mas não buscava o esotérico, nem sensações estranhas, ou visões alucinogénias.
Estava à beira de desvendar um grande mistério, não havia ponto de referência nesse oceano cósmico
Em suspensão durante o dia, em que todas as tarefas se repetiam sem surpresa, levantava voo nas asas do sonho
Realmente, não é demasiado difícil vogar assim.
Exercitava manter o equilíbrio entre o sonho e o real, naqueles instantes quando se está prestes a acordar
Agia por intuição, não de forma deliberada. O que me atraía?
Um mundo onde as coisas e pessoas se moviam, comunicavam, de forma semelhante à nossa realidade «vulgar».
Porém, nada era vulgar, nele. Tudo se revestia duma solene e tranquila sabedoria.
Eu emergia dessas viagens imóveis, inspirado, pousando lúcido olhar sobre os meus problemas diurnos.
Pelo sonho, vinha-me a chave para a melhor forma de enfrentar a vida.
Se isto tudo é ilusório, se é real, não sei!
Serão descargas de neurónios cerebrais, ou reflexo de universos paralelos, onde nos movemos? Não sei!
Possuo esta fonte de beleza, de sabedoria e de força anímica dentro de mim, e conto com ela.
Não quero - nunca me passou pela cabeça - domá-la, mas estou grato por ela zelar por mim,
À Deusa Cósmica, que desce em silêncio, que se manifesta no sonho e se despede de mim, quando estou semiacordado.
25 - MEDITAÇÃO, OUVINDO CHOPIN
Enquanto ressoar música nos meus ouvidos
Estarei em paz com Deus, mas não com os outros
Pois os outros estão demasiado cheios das suas vaidades
Para conseguirem parar um pouco seus afazeres
E olharem, ouvirem, sentirem
A Natureza está em roda deles
E neles próprios, mas estão
Fechados à maravilha do sopro
Vital que transforma o ser
Estou contigo, que me dás este bem
Infinito - a música! Estou com o espírito
De Deus, essência criadora e propulsionadora
Do Universo
26 - AS MONTANHAS DA LUA
Estou no tempo de contemplar
através da janela mais bem situada
o espetáculo sempre renovado
da natureza não desnaturada
que sempre me dá razão de viver
As montanhas da Lua
erguem-se maciças, tranquilas
com um relevo semelhante
à Deusa reclinada e esquecida
Ela veste-se de Sol e nuvens
de escuras nuvens de tempestade
ou de suave manto branco
pelas secretas encostas desenrolado
É para junto dela que vou procurar
a frescura do arvoredo, no Verão
a cálida fermentação foliar
no Outono, o uivo do vento
nas árvores, no Inverno
na Primavera, pérolas d' orvalho
irisadas nas verdes ervas
Sempre esteja eu próximo de ti
Deusa-Natureza, do oceano
à terra, dos astros à montanha
27 - TESTAMENTO
Não quero morrer sem escrever um testamento.
Mas que posso eu aí colocar como bens herdáveis?
As coisas materiais estão todas atribuídas, há muito tempo.
As coisas não materiais estão no ar, no vento, no sopro!
Assim, de vento e de imagens farei o meu testamento.
Que vos pertença, Vós que me ledes, assim como se tropeça
Num pequeno tesouro, numa pedra preciosa, abandonada
Um pequeno anel, um nada que deixa o achador contente
Assim gostaria que tu ficasses ao encontrar
Nestas palavras ocas algo que te aproveite!
Não estou inclinado a fazer inventário, porventura
Vós o tendes feito ou não, tanto faz
O que me importa não são obras ditas eternas
Que se esquecem ao virar da esquina,
Nem tão pouco a sorumbática lição de moral
Fustigando que é vão tudo o que nos dá prazer
Não! Esta voz sussurra para vos assegurar
que, quando me for embora desta vida,
Terei muito arrependimento
Muito desaconchego, também!
Não irei de bom grado visitar os outros mundos
Que haja por detrás da cortina, este umbral
De porta que se abre à imensa escuridão e luz.
Para quê escondê-lo? Mais vale dizer
Sempre serei adorador da vida, até ao último sopro
Não tenho nada de mais precioso a dar
Aos mortais como eu, que ficais aqui
Alguns instantes mais, depois
De eu me ir:
- Vede como é bela a vida, não a desfeais
com pequenezas, com mesquinhezes, com raivas ou ódios
Em tudo o que vos couber como destino, dai graças a Deus
Não fiqueis orgulhosos das benesses que tiverdes neste mundo
Mas não desprezai a amizade, o amor, a estima, que são
Afinal, as mais belas e preciosas joias que existem.
Tudo é vão, a não ser o amor que recebeste e que dás
sem cálculo, sem fazer contabilidade; essa é palavra Divina
Amar ao próximo e a Deus, como a nós próprios.
Ámen
28- A MANJEDOURA
Que sentido tem para mim, a história do nascimento de Jesus: Foi assim, foi assado?
- Mas, afinal, já não tenho dúvidas, nenhumas, desde que vi a manjedoura,
as palhinhas onde repousou o Salvador
e nos disse:
«Aqui estou, entre vós
Humilde e humano
Sem mal ou astúcia
Enviado pelo nosso Pai
Que vós, meus irmãos,
Escutais ou esqueceis,
Mas que não adorais,
Não seguis, nem amais!»
Mais, não me disse Ele.
Fechou-se o pedaço de céu aberto, na grisalha de Dezembro.
Paciente vou caminhando.
O Tempo Novo virá, Ele nos prometeu!
Após tantas destruições
Violências e desmandos
Dos enlouquecidos
Pela ganância e vaidade
Que seus irmãos
Oprimem, enquanto
Cantam loas a Cristo
E O crucificam ainda mais
Na carne das crianças:
São oferendas, sacrifícios
a Baal, ou outro qualquer
Ídolo de pacotilha
Neste mundo invertido.
Os poderes são celerados,
Banidos são os justos
Amordaçados,
Escarnecidos,
Padecendo
No caminho
Da Cruz
Que Deus nos ponha
Jesus no coração
Que milhões de vezes
Irradie sua Luz!
Coração de amor
Humano e Divino
Por fim renascido
(Murtal, Parede, 05-12-2021)
29- Desejo de azul
Desejo de azul
Com brumas no horizonte
De mar e céu abertos
De montes e planuras
Desejo de azul
Na montanha, no oceano
Onda e vento escutados
Segredos ao anoitecer
Desejo de azul
No olhar de uma criança
Maravilhamento dum mundo
A cada dia por descobrir
Desejo de azul
Na asa da borboleta
Na anémona-do-mar
No reflexo do riacho
Desejo de azul
Em cada olhar
Fugaz e terno
De nosso encontro
(Murtal, Parede, Jan. 2017)