Dentro de duas horas vão soar as matinas, mas estou ainda acordado.
- Será que a minha filha conseguiu chegar a São Petersburgo? Porque é que as comunicações são tão demoradas? Não estamos no século XVIII, o chamado «Século das Luzes»?
- Ainda continuo a pensar no que vou fazer com o despacho do barão de Z, o meu «ouvido especial» junto da corte de Berlim. O relato da conversa entre o barão de Z e o conde de L, poderá ser da mais alta importância para os interesses de sua Alteza a Czarina de todas as Rússias, mas tenho de encontrar maneira de confirmar os dados por outros meios, sem o que apenas entra na categoria de boatos.
- Aquele médico que me trouxe as medicações para a gota tinha uma conversa bem amável; também é apreciador de boa música, entusiasmado com o novo estilo, cultivado por Carl Philip Emmanuel, filho do velho Bach, que obteve o cargo de Kappelmeister na corte de sua Majestade Frederico da Prússia. Não é pequeno feito, obter tal nomeação, pois o rei-músico tem um nível de exigência quase tão grande com seus músicos, quanto com seus oficiais do exército!
- Neste continente as guerras sucedem-se após pequenos intervalos de paz, negociados penosamente pelas chancelarias das potências. Mas o nosso trabalho de diplomatas é logo desfeito pela ambição de monarcas e pelas intrigas de corte. Já estou velho e cansado de tantos anos a servir sua Alteza a Czarina, neste papel sem qualquer esperança de que os homens ganhem juízo.
Agora, o dia já está a clarear e ouve-se o chilrear das aves matinais. Vou traçando a custo estas palavras; estou quase a adormecer. Só me vem o sono pela ação conjunta de substâncias soporíferas e da música...
Vou pedir ao rapaz, que está executando a minha peça preferida, uma composição do velho mestre de Eisenach, para se retirar para os seus aposentos.
(A história extraordinária desta ária com variações pode ser ouvida aqui, em francês antecedendo uma bela interpretação de Pierre Hantai)
Wolfgang Amadeus Mozart - Requiem, K. 626 - Lacrimosa
Claudio Abbado, maestro,
com a orquestra do festival de Lucerna e Coro da Rádio da Baviera e Coro da Rádio Sueca
Concerto gravado no festival de Lucerna, em Agosto 8, 2012.
A produção da indústria do cinema nos EUA está relacionada com a sexualidade perversa de Harvey Weinstein e de muitos outros. Hollywood está cheio de perversos sexuais e de pedófilos...
Pessoalmente, há muito tempo que evito ver filmes de Hollywood. O seu aparente brilhantismo vive apenas de orçamentos monstruosos. Quanto a talento propriamente dito, há muito pouco quer a nível realizadores, quer de actores. Quanto aos efeitos especiais, são efectivamente impressionantes, mas são produzidos em laboratório, por batalhões de técnicos anónimos.
Por outro lado, a indústria cinematográfica dos EUA abafa completamente a indústria doutros países e zonas do globo, conseguindo fazer com que nas salas de cinema de Portugal e de muitos outros países quase só passem filmes dessa proveniência, assim como nas televisões, inclusive em canais dedicados à «7ª arte» em exclusivo.
As feministas deveriam boicotar, com toda a energia, a indústria de Hollywood pois, não apenas a imagem da mulher aí representada é simplesmente a de um objecto sexual, como isso acontece também na realidade sórdida dos negócios de grandes empresários, como Weinstein: as actrizes que queriam ser contratadas já sabiam - e revelaram-no - que tinham de submeter-se à gula sexual deste ou de outros, que controlam o negócio.
Uma civilização onde a dissolução moral ou ética é observável em todo o lado e onde a aceitação acrítica das pessoas permite todas as perversidades, desde que sejam perpetradas por famosos, poderosos e multimilionários... é uma civilização em decadência. Hollywood é sintoma de que o seu fim está próximo.
Nassim Taleb já avançou um
pedaço com as suas visões relativas às complexidades de um mundo onde não
existe um determinismo, o mesmo é dizer, caótico. Porém, estamos muito longe de
completar esta visão, mesmo se há homens, como Jim Rickards, a utilizarem
métodos de análise derivados das teorias da complexidade.
Na sociedade globalizada,
as relações não são simplesmente «horizontais» ou «verticais», mas ocorrem em
vários planos simultaneamente.
Os sistemas de poder,
desde a economia, às relações internacionais, atingem uma complexidade
impossível de ser dominada por um ser humano, obviamente, mas mesmo por uma
poderosa organização, dotada de meios de vigilância quase infinitos, como é o
caso da NSA. Veja-se a este propósito o que diz o whistleblower Binney a Sarah Westhall, neste vídeo.
O dilema do local versus
global, é um falso dilema, pois os dois termos são inseparáveis: nunca haverá
um «global» que não seja composto de múltiplos «locais» e nunca o que é da esfera «local» se confina estritamente
a esse espaço, pois o ultrapassa no seu intercâmbio com o entorno.
Então, sem pretender ser original,
que não é meu objectivo afinal, mas indo buscar à sabedoria acumulada por
incontáveis gerações, sei que podemos sair de toda a teia de falsos dilemas,
podemos deixar de ficar «esmagados» pela imensidão de variáveis que influem na
nossa vida e do nosso entorno, desde o próximo até à longínqua galáxia…
Eis o «algoritmo» para se
saber viver e «navegar» num mundo de complexidade inextricável:
Devemos focalizar a nossa atenção, desenvolver
o nosso talento em tudo o que está ao alcance; o resto, sendo real e por nós
reconhecido como tal, está para lá da nossa capacidade de intervenção e compreensão
aprofundada.
A prudência ordena que não nos vamos imiscuir a tentar modificar o que
está para além do domínio de competência que nos é próprio.
Note-se que tal
domínio pode ser muito vasto para certas pessoas ou muito restrito para outras.
Por isso, também é essencial cumprir o preceito socrático «conhece-te a ti
próprio».
Este algoritmo aplica-se
na vida económica, por exemplo, não deve multiplicar os
investimentos por «n» objectos, para além daquilo que será capaz de abarcar
(imaginemos alguém que tivesse de gerir «n» propriedades, urbanas, rurais,
comerciais e industriais, dispersas por todo o país… claro que não poderia ser
bem sucedido, se estivesse essencialmente sozinho nessa tarefa).
Mas também se aplica a um
domínio filosófico, como a discussão em torno da existência ou não de divindade.
O alcance do espírito humano não é superior a um certo limite.
Sendo claro que
não poderá abarcar todo o universo, na sua extensão espaço-tempo, logicamente,
a questão da existência ou não de Deus, do ponto de vista filosófico é uma
questão sem solução.
As pessoas fariam melhor em se debruçar sobre questões
pertinentes humanamente e que, embora sem solução agora, se espera acabarão por
encontrar solução, futuramente. Este questionar é o típico da ciência destes últimos três
séculos que, como sabemos, teve imenso sucesso, mesmo que também tenha trazido problemas.
O leitor poderá pensar
que este algoritmo, afinal, não é mais do que a aplicação do bom senso.
Sim,
mas o tal bom senso, dele todos dizem possui-lo, mas -afinal- está muito mal distribuído.
A tal ponto que, para não confundir com uma falsa sabedoria, convencida e
ignorante, prefiro inverter os termos e falar antes de «Senso Bom*».
[*titulo de colectânea inédita de ensaios filosóficos que
escrevi nos anos de 1989 e 1990]
Porque motivo o que se tem passado na Catalunha diz respeito à cidadania europeia no seu todo e não apenas à península Ibérica?
Temos de olhar para o quadro geral:
1- o fiasco do projecto europeu, protagonizado pela coligação entre centristas neoliberais de esquerda (os social-democratas e socialistas) e de direita (os democratas cristãos e centristas).
A imposição do tratado de Lisboa, após a derrota por referendo da constituição europeia, significou que o quadro institucional neste continente ficou basicamente congelado, tanto em relação a mudanças sociais, como mudanças de fronteiras. Mas este congelamento é absurdo e irrisório, porque a sociedade e as forças que a impulsionam nunca param, transformam-se sempre, numa ou noutra direcção.
2- o contexto em que surge a constituição espanhola, é o de uma negociação de cúpulas, para viabilizar a «transição»: nesta mudança de regime político, apoiada pelo grande capital espanhol e multinacional, monitorizada pelas instâncias internacionais, sobretudo a NATO (dominada pelos EUA e pelos atlantistas), todos fizeram as suas jogadas para terem um naco de poder. Foi um compromisso entre os dissidentes de última hora do franquismo e as correntes reformistas e neoliberais (inclusive PCE, PSOE...)
3- a existência de uma forte consciência da especificidade cultural própria, uma assinalável diferença na composição político-ideológica e a noção de ser contribuinte líquido crónico duma entidade estatal (o estado espanhol) que largamente desprezou (e despreza ainda, pelos vistos) o sentir e os direitos do povo.
O projecto europeu, tal como foi formulado e mantido, não faz sentido nenhum hoje. Esta contradição e aberração salta aos olhos, quando vemos o comportamento da eurocracia perante a situação criada na Catalunha.
Esta questão, embora estritamente respeite ao povo catalão e afecte os restantes povos ibéricos, não deixa de ter um papel mais geral como factor na desagregação do consentimento tácito dos governados nas «democracias» contemporâneas: as pessoas aceitam e fingem que «acreditam» no sistema, em tempos normais. Mas, quando as coisas atingem um grau intolerável de arbítrio e humilhação, dá-se um sobressalto e um repúdio da eurocracia e dos seus representantes partidários locais.
O que está a acontecer hoje naquela parte da península hispânica, pode acontecer amanhã noutra qualquer.
Mas, o mesmo cenário pode ocorrer em muitas outras zonas e Estados do espaço UE.
Todos os Estados de grande dimensão (e quase todos os de média ) possuem um certo grau de heterogeneidade étnica e linguística, o que faz com que muitas destas regiões se sintam colonizadas pelas capitais dos respectivos estados e pelos grupos que monopolizam o poder dentro destes.
Um grande amigo meu, José António Antunes, enviou-me um lindíssimo vídeo que fez, com base em fotografias do Alhambra de Granada, resultantes de uma recente estadia na Andaluzia.
O seu canal do Youtube tem muitos outros vídeos, em que conjuga uma excelente fotografia, sobretudo de paisagem, com um fundo sonoro sempre adequado e de qualidade.
O envio deste vídeo inspirou-me esta crónica, num momento em que as pessoas das várias regiões da Península parecem esquecer o muito que têm de comum, para o bem e para o mal, apesar de nós vivermos numa civilização mundializada.
O mundo transformou-se numa aldeia e todos os grandes centros se equivalem, de certa maneira.
Claro que existem particularidades, monumentos, gentes diferentes. Mas a tecnologia, a uniformidade de costumes, vestuário, transportes, etc. faz com que, de facto, não saiamos da mesma «bolha» global.
Neste contexto, é paradoxal e anacrónico um ressurgir dos nacionalismos.
Acho que devíamos reflectir sobre o mal que a ambição ou ganância dos poderosos fizeram ao expulsarem os Árabes do Reino de Granada - por Isabel a Católica, de Castela - e a expulsão dos judeus de Espanha e de Portugal. Sabemos como, no reinado de D. Manuel I, tal expulsão foi acompanhada de massacres e de conversões forçadas.
A decadência da península Ibérica começou nesse preciso momento, pouco depois de Colombo atingir a América e de Vasco da Gama chegar à Índia.
Os árabes trouxeram uma civilização requintada, preservando muito da ciência da antiguidade, nomeadamente dos filósofos, naturalistas e matemáticos gregos. Sem dúvida, o nosso conhecimento da produção intelectual da Grécia clássica seria muito menor sem o contributo árabe. Além disso, os árabes tinham avançado em várias ciências (Álgebra, Geografia, Alquimia) muito mais do que o mundo cristão.
Quanto aos judeus, povo sem Estado desde o primeiro século da era cristã, eles tinham uma maior protecção sob o império Otomano ou nos Reinos árabes do Norte de África, do que em quaisquer partes da cristandade ocidental.
Mas, ainda assim, tinham sido tolerados nos reinos cristãos, após a chamada «reconquista» e estavam relativamente bem integrados na era medieval, na Ibéria. Eles tinham sinagogas, podiam exercer o seu culto, embora fossem discriminados de várias maneiras.
Os judeus forneceram a Portugal e Espanha uma elite de cientistas e de eruditos, capazes de fazer avançar várias ciências associadas com a navegação e a expansão marítima: as matemáticas, a astronomia, a geografia, a decifração de códices e manuscritos em grego, árabe e noutras línguas...
A migração forçada dos judeus deu-se para paragens menos fanáticas, mais tolerantes: a Inglaterra e a Holanda. Não será este o factor suficiente da decadência dos impérios ibéricos e da ascensão dos impérios marítimos de Inglaterra e da Holanda: mas, estou certo que este factor teve o seu peso em tal mudança.
Hoje em dia, as pessoas estão completamente esquecidas ou ignorantes da sua própria história:
- Por exemplo, não sabem que os reinos visigóticos eram constituídos por uma elite guerreira, vinda do centro e norte da Europa, que mantinha e subjugava as populações autóctones (já convertidas ao cristianismo antes deste domínio visigótico).
- Foi a Península Ibérica um dos principais focos de arianismo, mas quase ninguém sabe o que foi esta heresia e como foi implantada nestas terras.
O facto de que continuem - na Ibéria - a ignorar a verdadeira história de seus povos tem consequências graves. Vai exacerbar o vírus do nacionalismo, quer seja insuflado pelos «vencedores», com as suas dinastias e reinos, sua língua e cultura... quer pelos «vencidos», os da Catalunha, do País Basco, de Andaluzia, da Galiza e de Portugal...
Assim, deve-se responsabilizar pelo crime de instigar à rivalidade entre comunidades que podiam e deviam ter boa vizinhança, tanto mais grave quanto se verifica estar correlacionado com actos violentos, os que, nos Estados Ibéricos (português e espanhol), descrevem a História de seus países de modo a perpetuar mitos de força e glória nas mentes das crianças e adolescentes; estes não têm, praticamente, outra fonte para conhecerem o seu passado.
Quando alguns se rebelam contra o poder central, fazem-no muitas vezes hipertrofiando momentos da História em que a sua etnia, a sua cultura, foi brilhante, dando crédito a uma contra-História, tão mítica e enviesada como a História oficial.
A causa da paz e do entendimento entre os povos só ganharia em que a História de cada povo, de cada nação, deixasse de ser leccionada do modo como tem sido, reforçando estereótipos, avivando sentimentos bélicos em relação a vizinhos: nomeadamente, os povos do Norte da África, além de todos os povos da Ibéria.
Aprendemos muito com nossos vizinhos, trocámos mercadorias, participámos em empresas comuns, sofremos sob os mesmos opressores, participámos iludidos ou contrariados nas mesmas aventuras coloniais, etc.
Além do mais, também casámos e procriámos e portanto, partilhamos um fundo genético ao nível das populações. Eis um facto hoje incontestável, com o extraordinário desenvolvimento das técnicas de ADN; mas, desde há muitas décadas, já era conhecido de biólogos populacionais e demógrafos.