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domingo, 14 de agosto de 2022

CONSCIÊNCIA

 Grande parte daquilo que tomamos por informação, no nosso mundo contemporâneo, não o é. Pode ser propaganda, pode ser uma afirmação narcísica de escritores, ensaístas ou filósofos, que estejam mais virados para se apresentarem nos fogos da ribalta, do que para debater seriamente as questões. 

Verifica-se um paradoxo relativo à informação, na época em que estamos: quanto mais fácil o acesso, quanto menos esforço é necessário para adquirir e propagar informação, mais as pessoas são inundadas de lixo, o que lhes dá rapidamente uma sensação de «over-flow» e se refugiam num certo número de táticas de sobrevivência. Acabam por só serem alimentadas mentalmente com nutrientes que elas aprioristicamente consideram adequados ao seu metabolismo psíquico, com exclusão doutras correntes e autores, que se afastem do que elas consideram  ser a verdade. É um efeito paradoxal, sem dúvida, creio que Marshall Mc Luhan não o equacionou, porque ele viveu em época anterior à revolução da Internet. Mas, no entanto, enfatizou a importância do veículo, do medium, do suporte da informação. Ora, hoje em dia, a «inenarrável» leveza do ser, parafraseando Milán Kundera, leva-nos a pensar que temos todo o conhecimento na ponta do nosso smartphone. 

Na verdade, a capacidade cognitiva não é uma função linear, nem nunca o foi. Os estudantes da universidade onde estudou Lutero, em Wittenberg, nos princípios do século XVI, tinham à sua disposição na biblioteca da Universidade apenas vinte volumes amarrados às mesas de leitura para não serem roubados! Uns eram manuscritos, outros eram impressos (já se estava na «era Gutenberg»!) pois os livros, nessa altura, eram caros e raros. Mas, seriam eles uns ignaros, os estudantes desse tempo? Não, o ensino era essencialmente oral e quer nas aulas magistrais, quer nos diálogos com discípulos, os mestres não se limitavam a transmitir, mas também orientavam os estudantes. Eles tinham de aprender a raciocinar e a discorrer, de forma adequada. Estou convencido de que um aluno de universidades do início do século XVI, estava muito acima de doutores da treta que se pavoneiam nas nossas televisões ou noutras montras virtuais.

A incapacidade das pessoas em compreender a realidade, primeiro espantou-me; agora, assusta-me. Por exemplo, num assunto gravíssimo como a guerra e a paz, a maior parte das pessoas arrota sentenças sem verdadeiro conhecimento da História, seu discurso é feito de chavões, não sabe positivamente nada sobre povos, nações e civilizações «longínquos». Porém, já não existe «longínquo» em distância; esta foi anulada de várias maneiras. A distância existiu nos séculos passados, mas as pessoas tinham natural curiosidade pelo «outro». Hoje, a distância já não é física, mas simbólica, mental. 

A sociedade contemporânea está inundada por autómatos e zombies mentais, incapazes de equacionar de forma satisfatória um problema um pouco complexo, com várias variáveis, com várias incógnitas. São totalmente incapazes de se colocarem na pele do outro, de conceber como será o universo mental desse outro, aquele que vive noutra cultura, noutro contexto, diferente do deles. 

Não há pior ignorante do que aquele que não quer aprender e julga que já «sabe muito», ou que pode aprender em três tempos «tudo» sobre um assunto com uma consulta à Wikipédia, ou algo semelhante. É realmente triste, a situação de incultura galopante, de analfabetismo funcional, em que a sociedade mergulhou.

Por isso, defendo que sejamos como monges e freiras (mas em termos laicos, claro), que na Idade das Trevas mantiveram comunidades autónomas, autossuficientes e capazes de preservar a cultura. Na realidade, o que eles fizeram ao recopiar os escritos da antiguidade, incluindo de filósofos que nada tinham de cristão, foi fundamental para o Renascimento. Sem este trabalho paciente de copistas, o saber acumulado na antiguidade teria sido perdido definitivamente. 


Existe um tempo imediato, o instante, que «fagocita» o tempo longo, o tempo geracional, secular. Isto é devido à pressão enorme sobre os indivíduos em serem produtivos, mas não no sentido de produzirem verdadeiro valor. De facto são condicionados a tomarem como valor, o contrário de valor,
 «dinheiro», um não-valor, um mero símbolo fantasmagórico da mercadoria. Este culto pagão (alguns dirão satânico) ao dinheiro, faz com que as pessoas tenham ancorado no seu subconsciente que o dinheiro é algo «concreto», que é lícito fazer tudo - seja o que for - por algo «tão concreto como o dinheiro». Tal inversão de valores, no cerne do pensamento dos indivíduos, é o triunfo das forças dominantes e mesmo hegemónicas na sociedadeElas conseguiram colocar os indivíduos em posição de servidão voluntária e já não somente em relação ao «monarca» (o poder político), como no tempo de Étienne de La Boétie.

Resta-me esperar que o triunfo dessas forças, seja uma vitória de Pirro, pois quem está completamente dominado pela religião do dinheiro não compreende o mundo da moral, da ética, dos valores verdadeiros, da elevação da alma. Para os voluntariamente escravos, existe toda uma literatura que os enaltece, que se reveste dos ouropéis da modernidade e sobretudo, da pós-modernidade, em que não existe mais nada senão [ prazer- poder- dinheiro] , num ciclo fechado. Elas estão intoxicadas pelo seu ego, funcionando por impulsos, num niilismo que se traduz em comportamentos hedónicos. A droga egolátrica é a droga mais potente que se possa conceber, pois mantém os adictos na ilusão de realidade, na ilusão de potência, de plenitude. 

Este estado de coisas convém aos senhores que dominam a população escravizada. Mas mulheres e homens livres têm muito maior potencial e capacidade de construir no longo prazo. Porque, se estiverem associados com base nas necessidades reais da vida e de como as satisfazer, aqui e agora, com trabalho e com dignidade, com esforço e com recompensa merecida, então estão muito mais capazes de manter e propagar sua cultura (e também os seus genes), do que os zombies  teleguiados pela manipulação da «realidade virtual» na qual habitam. 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Etienne de La Boétie e o «Discurso da Servidão Voluntária»



 Conferência de Anne-Marie Cocula:

Etienne de La Boétie e o Destino do «Discurso da Servidão Voluntária»

                           

                          https://www.youtube.com/watch?v=SIfsaH74N_I&t=584s

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Ver também, 

Um vídeo de «Le Précepteur»:


LA BOÉTIE - «A Servidão Voluntária»:

https://www.youtube.com/watch?v=YPW7rDmnH6g&t=39s


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Dois vídeos de Michel Onfray :

- O discurso da Servidão Voluntária -1 & 2

Contra-história da Filosofia, vol. 4-2

https://www.youtube.com/watch?v=fZA6EW82imA

https://www.youtube.com/watch?v=UQCzckJNNeY

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Ainda de Michel Onfray:

La Boétie e Hannah Arendt : O pensamento pós-nazi

(Contra-história da filosofia 23.2)

https://www.youtube.com/watch?v=JIWZzm4dBFI

sexta-feira, 23 de março de 2018

O FACEBOOK E O «DISCURSO DA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA»

Mesmo não concordando com certos detalhes da narrativa desta «opinadora» (vê os russos por todo o lado...), tenho alguma concordância com o conteúdo deste seu artigo de opinião sobre o Facebook.
Infelizmente as pessoas estão sempre muito atrasadas em relação à realidade, em todos os tempos e, sem dúvida, nestes últimos tempos também. 
Eu estava plenamente informado, desde há muitos anos, sobre os aspectos menos luzidios das chamadas redes sociais, sobretudo devido às leituras de vários autores (de tendências diversas) que se podem designar como «pensamento alternativo».

                Mark Zuckerberg na capa da Wired de Março 2018

As redes sociais, o Facebook em particular, são um exemplo perfeito de «servidão voluntária», como a definiu, há mais de 5 séculos, Étienne de La Boétie (um amigo de Montaigne). 

                                                              
O poder do «príncipe» (ou seja, dos que detêm as rédeas do poder, sejam eles nobres ou plebeus, militares ou civis...) é assegurado pela submissão voluntária dos súbditos, visto que a sua revolta colectiva iria (num instante) destronar, reduzir a nada, o seu poder. É por causa dessa submissão, que se tornou como uma «segunda natureza» dos cidadãos, que o poder e os poderosos têm ainda uns belos dias pela frente.
Faço notar que não será um povo inculto e fanatizado que fará a revolução, pelo menos essa revolução que se deseja, que traga maior justiça, igualdade, distribuição horizontal do poder neste mundo.
Acredito profundamente que esta acontecerá, mas durará vários decénios, ou mesmo séculos, a chegar, pelo que os «revolucionários de meia tigela» irão ignorá-la, pois querem ter no imediato uma sensação, nem que seja um breve instante, dessa tal «revolução». 
Como a revolução sem aspas é um processo, longo do ponto de vista da história individual, mesmo que breve do ponto de vista da História, prefiro projectar meus anseios no futuro e reservar-me o mais possível em relação ao presente, aos «radicalismos de pacotilha», vendidos por «profissionais da política».