terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

POÉSIE: DANS LA CHALEUR PROFONDE...(*)


Dans la chaleur profonde de ses cheveux j’ai trouvé
Un parfum si doux que l’âme en pâlit
Une brise aux senteurs d’Océan, vagues roulant sur les rochers
Un nid de duvet enfoui dans la mémoire d’un jour d’Automne
 Un ruisseau scintillant aux poissons mystérieux sous le sable
Une lampe à huile tremblotante dans une cabane de pécheurs
Un hurlement de cerf à l’hallali
Un brouillard collant comme suie sur les murs des usines
Une grande flambée d’herbes sauvages crépitant dans le noir
Un chant lointain d’oiseau dont le nom réveillerait les prédateurs
Une cuiller tournant, tournant, lente, autour d’une soupe froide
Un grand pin tout raide après l’incendie
Une petite pluie qui vous rafraîchit le visage
Un campement de tsiganes dans une nuit d’Andalousie
Un reflet de mer, coupé du blanc espoir d’une voile
Un refuge de montagne à demi sousterré par la neige
Un crépuscule mourant sous les rayons de Lune

(*extrait du recueil en français - «Le râtelier somnanbule» 1984)

domingo, 26 de fevereiro de 2017

SOBRE O NIILISMO, O FUNDAMENTALISMO E A NECESSIDADE DE ACREDITAR

 Nas minhas andanças e experiências, tive oportunidade de conviver com algumas pessoas, ateias ou crentes, que tinham uma grande segurança e firmeza. Porém, nuns e noutros casos, pareceu-me que essas pessoas se fechavam dentro dum sistema, de uma visão global, de uma ideologia.
Uso a palavra «ideologia» no sentido mais lato, não no de «ideário político», mas mais no sentido filosófico de uma narrativa construída, destinada a explicar tudo, a vida, o universo, a natureza.
Assim, mesmo em pessoas que se designam de ateias, vejo que se sobrepõe à racionalidade pura, uma necessidade ou desejo de crer, de acreditar. Eu chamaria estas pessoas de «crentes», sem qualquer desprezo ou menosprezo pelos seus pensamentos ou sentimentos.
Contrariamente, as pessoas que se deixam enrodilhar nas vaidades das modas, incluindo obviamente, as modas intelectuais, são as que têm diminuta firmeza nas suas crenças. Em geral, não as confrontaram com outras narrativas, ou porque não tiveram essa oportunidade, ou porque preferiram evitar esse confronto.
Na realidade, se algo caracteriza o grupo dos «crentes», e nos permite distingui-lo do segundo, os «seguidores das modas», é o grau de profundidade da consciência.
As pessoas mais sujeitas a modas, a seguirem a corrente, facilmente ficam decepcionadas com alguma ideologia, religiosa ou não, porque estavam falsamente convencidas de que podiam «comprar», a felicidade, a iluminação, a beatitude, etc. com a sua «adesão» exterior.
Face às realidades da vida, cedo vêem que as coisas não se apresentam como imaginavam. O resultado é caírem numa passividade em relação ao domínio social, refugiando-se no egoísmo, no hedonismo, no consumismo, posturas encorajadas pela própria sociedade.
Quanto às pessoas «crentes», estas podem também ser confrontadas com decepções nas suas respectivas convicções, religiosas ou não. As pessoas com maior pendor crítico tenderão a reformular, a requintar as suas convicções.
Mas muitas pessoas caem num «extremismo» conceptual, traduzindo-se quer em niilismo, quer em fundamentalismo. Por outras palavras, ou repudiam todo e qualquer sistema teórico, ideologia, convicção (niilismo) ou, pelo contrário, atribuem à sociedade - ao «mundo» - os males todos, vendo nela o «pecado» da não-aceitação plena da sua verdade (fundamentalismo).
Sem tentar absolutizar, creio que isto é uma chave importante para se compreender porque razão os adolescentes de hoje, como outros de outras épocas históricas, têm - com frequência - uma grande apetência pelas versões ideológicas ou religiosas ditas «mais radicais», mais «fundamentalistas», ou que se traduzem em práticas violentas e totalitárias.  
Na adolescência e juventude, muitas pessoas mostram uma grande necessidade de acreditar: por isso, as suas posições são absolutas ou, pelo menos, manifestam-se deste modo.  
Na plenitude da idade adulta, o confronto com as realidades da vida transforma as pessoas que não desistiram de se interrogar – as pessoas dotadas de consciência- o que se traduz pela evolução dos seus pensamentos e crenças, que ganham em subtileza, em consistência, por comparação com as posições adoptadas na adolescência.
Porém, a adolescência é uma época de grande insegurança do «eu», em que este já não se sente essencialmente protegido pelo aconchego familiar, maternal, mas ainda não sabe agir e posicionar-se no mundo dos adultos. 
A sociedade mercantilizada tem como alvo principal os jovens. A indústria do entretenimento explora as necessidades de afirmação, de oposição em relação aos parentes, por vezes confundida com rebeldia. Jogando com a psicologia dos jovens, a publicidade acentua os sentimentos de frustração, para lhes apresentar o consumo como panaceia: consumir música, roupas, bebidas alcoólicas, drogas, motos, etc…Consumir é «viver»! O vazio deste consumismo não deixa de se tornar patente, mais cedo ou mais tarde. É aí que muitos optam pela tal viragem «radical», pela sua entrega a uma causa, seja ela de âmbito secular ou religioso.
Neste caso, o que predomina é a enorme necessidade de acreditar, de ter fé em algo, de fugir ao vazio de uma sociedade que apresenta como único modelo o consumismo. As versões mais totalitárias das religiões, ou das ideologias políticas, têm aí a sua base de recrutamento.
Julgo que as condições para o crescimento do niilismo e do fundamentalismo residem mais na sociedade do que nos indivíduos. Verifica-se que os jovens que aderem a organizações terroristas são pessoas idealistas, transviadas e manipuladas. Pois a procura de ideal, a entrega a uma causa elevada, deveria ser factor para elevação desses jovens e não de serem utilizados como «peões», em violências terroristas.
O factor primário reside na ausência de referências, de valores, que se notam nos seus microambientes de estrutura familiar, comunitária, de trabalho; na malha social, em geral.
A sociedade atomizada, onde a norma é essencialmente hedónica e egoísta, onde predomina o darwinismo social mais primário como ideologia, não pode esperar ter outros «filhos e filhas».

A lei do lucro e do poder é uma lei de morte, que se opõe à lei do amor e da vida. Esta ideologia difusa, que dita os comportamentos de uns e de outros, é a produtora do terrorismo; precisa do terrorismo como pseudo-justificação das suas derivas autoritárias, securitárias. 
Desmascarar a origem do terrorismo como instrumento de todas as derivas autoritárias, quer sejam oriundas dos Estados ou de grupos autoritários que disputam a hegemonia aos Estados, parece-me ser o principal e fundamental ponto de partida da luta pacifista, não-autoritária.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL. LANÇANDO ACHAS PARA A FOGUEIRA...

Lendo um excelente artigo de Charles-Hugh Smith, o autor do blog «OF TWO MINDS», sobre a possibilidade ou não do retorno ao padrão-ouro, fica-se a compreender o paradoxo do sistema monetário usando uma divisa de reserva, o US dollar.
Porém, no mundo de hoje, largamente digitalizado, a existência de reservas de ouro nos bancos centrais não é paradoxalmente «relíquia do passado», como muitos afirmavam, mas «a moeda de reserva em última instância», segundo Alan Greenspan.
Poucos, infelizmente, são os economistas e especialistas monetários de hoje com coragem de pensar, como diz Charles-Hugh Smith, fora do «culto keynesiano».

Afinal, nas condições do presente, um sistema monetário internacional - que preencha as suas funções essenciais - pode existir e funcionar perfeitamente, entre os diversos países, sem que existam reservas de moeda ou de ouro, nos respectivos bancos centrais.

O sistema justo poderia ser algo que funcionasse como o «bitcoin» ou outras moedas digitais (criptocurrencies), as quais são neutras em si mesmas, não são manipuláveis por nenhum banco central, não são sujeitas a manipulações pelos governos de nenhuns países.
Porém, no âmbito do que existe atualmente, verifica-se uma forte ligação de quase totalidade dos sistemas de pagamento baseados em divisas nacionais. No imediato, certamente não prevejo que se possa eliminar estas mesmas divisas, os dólares, os yuans, os euros, as libras, etc. Ora, as divisas nacionais são o alvo preferido da especulação. Isso cria instabilidade e nenhuma riqueza verdadeira. Qualquer sistema que elimine esta especulação, essencialmente danosa para as economias, terá uma vantagem decisiva sobre o presente.

Um sistema monetário internacional estável, neutro e não sujeito a especulação

É simples, no nosso mundo, chegar a acordo sobre um conjunto de matérias-primas, cuja cotação esteja contemplada num «cabaz». Estas matérias-primas podem/devem incluir: os metais preciosos, os metais industriais, os cereais e os combustíveis.
Assim, todas as divisas nacionais se iriam referir a esse «cabaz». Um Dólar, um Yen, um Euro... etc, que fracção deste cabaz de matérias-primas poderia comprar?
Todas as moedas estariam automaticamente cotadas, umas em relação a outras, pois todas se posicionavam pela sua capacidade acquisitiva relativa ao cabaz.

Não haveria necessidade de divisa(s) de reserva ou de uma reserva de ouro (ou de outros valores tangíveis) na posse do Banco Central de cada país.
Aliás, não seria indispensável uma entidade complexa e pesada chamada «Banco Central»: a função histórica do Banco Central emerge com a economia mercantil do início do século XVIII, com as moedas de ouro, prata e outros metais em circulação a serem parcialmente sustituídas por títulos desse mesmo banco central. Logo nos primeiros tempos deste sistema, se verificaram fraudes monumentais, como a de John Law...


Muitos governos, pressionados por diversos fatores, são tentados a aumentar a impressão de moeda, tendo isso um efeito diluidor de seu valor nos mercados monetários, ou seja, cada unidade dessa moeda valendo menos. Ao recorrerem a este mecanismo, põem em risco a credibilidade da própria divisa, podendo mesmo acabar por desencadear hiperinflação. Uma tal inflação monetária não seria impossível de acontecer no novo sistema, porém seria muito menos provável, pois a excessiva presença dessa tal divisa causaria, como reflexo, a subida da cotação das matérias-primas nessa divisa. A descida da capacidade aquisitiva dessa moeda, referente ao cabaz, seria logo detectada.
Com este sistema, muito simples de implementar, cada nação teria fixado, ou estabilizado, o valor da sua respectiva divisa. Não haveria mais crises, desencadeadas por especuladores do tipo de George Soros que fez fortuna especulando contra a Libra esterlina, as moedas nacionais de vários países do Sudeste Asiático, o Rublo... Não haveria campo para especulação grande e pequena no FOREX e nos mercados de «derivativos».
Note-se que a flutuação cambial é - em grande parte - correlacionada com os movimentos especulativos dos capitais ao nível internacional. Essa especulação só retira valor, não tem nenhum efeito global positivo, é uma mera parasitagem do sistema financeiro e económico mundial.
Um sistema sem especulação sobre as divisas não seria perfeito: haveria outros domínios, tradicionais ou novos, em que os especuladores, provavelmente, iriam continuar a actuar.
Porém, como a economia real (produção e troca de bens e serviços) necessita que a moeda seja um instrumento credível, tudo o que reforce a estabilidade da moeda é favorável, em termos económicos. Pelo contrário, a existência dum ataque especulativo sobre dada moeda pode precipitar um colapso e causar desastres económicos como a hiperinflação, em que os mais pobres são as principais vítimas, etc.

Do ponto de vista sistémico, a mudança para uma referência geral das divisas nacionais perante um cabaz de matérias-primas, é uma mudança neutra: tanto pode funcionar num contexto global capitalista como noutro sistema, não-capitalista (chame-se ele como se entender).
O sistema que proponho, de amarrar todas as divisas nacionais a um cabaz de matérias-primas, teria certamente vantagens sobre o presente, ao eliminar as flutuações de divisas, da qual se aproveita a especulação.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

PRINCÍPIOS DO MOVIMENTO «SOLUÇÕES PARA A PAZ»*


Com a presente declaração de princípios, entendemos estabelecer e dar a conhecer a nossa base de entendimento e acordo, com vista a uma eficaz busca de caminhos para a paz.
Consideramos que todas as pessoas são bem-vindas, dentro do espírito dos princípios abaixo delineados, cabendo naturalmente entre nós várias escolhas pessoais ao nível das ideologias, dos credos religiosos e das diversas opções noutros domínios.
Embora sejamos independentes de quaisquer filiações partidárias, religiosas ou outras, estamos abertos a partilhar com outros, dentro de um espírito de tolerância e de reciprocidade, de ações futuras para fazer avançar a causa geral de paz e não-violência.

Os pontos seguintes são considerados princípios gerais, que devem enformar a construção da nossa associação e nortear a sua prática, desde o primeiro momento.
- por uma cultura  de paz, através da educação
-pelo desenvolvimento sustentável nos planos económico e social
-pelo respeito de todos os direitos humanos
- pelo respeito dos direitos dos animais e pela proteção e preservação do ambiente
- pela igualdade entre mulheres e homens
- pela promoção da democracia
-pela expressão livre e participada das informações e conhecimentos
-pelas medidas que promovam a paz e a segurança internacionais

Os nove pontos gerais acima são todos, conjunta e mutuamente, solidários. Seu conteúdo preciso será desenvolvido e explicitado, quer nos documentos, quer nas práticas que iremos desenvolver.
Estamos em solidariedade com outros grupos e individualidades, quer a nível nacional quer internacional, que desenvolvam trabalho concreto e convergente com o nosso.



(*Aprovado em assembleia, na Fábrica de Alternativas, Algés, a 08-02-2017)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

ESTADO, CAPITALISMO, MONOPÓLIO, GLOBALIZAÇÃO

Debaixo deste título deixo vários pontos de reflexão, que pretendem ir pra além de «uma definição de dicionário» dos acima-mencionados termos.
O Estado tem como elemento fundamental a coacção. 
Mesmo quando não tem aspectos odiosos, a coacção existe e é aceite de forma generalizada. Que essa aceitação seja de bom grado ou mau grado, pouco importa. O facto é que a imensa maioria tem em atenção as leis produzidas pelo Estado: por exemplo, dificilmente alguém consegue deixar de pagar impostos, colectados em exclusivo pelo Estado, através das Finanças, do Fisco. 
Não se deve confundir o Estado com os elementos que ocupam lugares-chave do mesmo. Como em todo o aparelho, as pessoas que o comandam são importantes, mas não são indispensáveis. 
Outro atributo muito citado é o da exclusividade da força armada; não existe no conceito de Estado moderno lugar para forças militares ou militarizadas privadas ou que pertençam a uma qualquer facção particular. Porém, o Estado recorre cada vez mais a serviços de policiamento, de prisões, mesmo a forças combatentes (mercenários) privadas. 
O Estado tem o papel de cunhar moeda, sendo isso citado como atributo de sua soberania. Porém, a partir do Euro, muitos Estados renunciaram a ter a faculdade de o fazerem, para confiar o papel de banco central a uma entidade supra-nacional, o BCE. 
De facto, o Estado, apenas é um instrumento eficaz de coação porque as pessoas têm a sua vida dependente do mesmo; quer se trate de emprego público (frequentemente o Estado é o maior «patrão» numa sociedade), quer se trate de emprego privado, as relações de trabalho são reguladas por leis e acordos laborais. O que se designa por sector da economia «privada», não é mais do que a oportunidade dada pelo Estado, que alguns aproveitam: as oportunidades de «mercado» do capitalismo e tudo o resto, só são possíveis com inúmeros apoios estatais, directos e indirectos, desde a legislação, tribunais, organização burocrática, forças armadas, ensino, às infraestruturas de toda a espécie...

O capitalismo é frequentemente definido como modo de produção, mas esta definição deverá contemplar a historicidade deste. Pois nem sempre houve capitalismo, no passado remoto, e -provavelmente - será substituído por outro modo de produção no futuro. 
A característica mais relevante do capitalismo não é a exploração, pois essa ocorreu também em sistemas feudais ou esclavagistas; é sim, o facto de que a organização da produção é relegada para o domínio individual. Isto é, não se trata de um sistema onde as decisões sobre investimento ou produção estejam centralizadas. 
No capitalismo é reconhecido que será, em última instância, o interesse do capitalista (a maior parte das vezes associado a outros) a decidir e não o Estado ou outra entidade. Esse interesse em produzir algo ou fornecer tal ou tal serviço é determinado pela existência de uma necessidade da sociedade, uma necessidade que se traduz numa procura, num mercado. 
A coisificação do próprio trabalho e do  trabalhador, transformado em mercadoria, é a consequência desta disposição do sistema produtivo, não de uma perversidade intrínseca dos capitalistas
A existência de capitalismo não se acomoda bem com a permanente intervenção do Estado no mercado. 
Isto verifica-se, com uma grande acuidade, por exemplo, com a manipulação por entidades estatais ou para-estatais (bancos centrais) do «custo do dinheiro», ao fazerem baixar artificialmente a taxa de juro das obrigações soberanas. Arrastam assim toda a economia para um jogo perigoso, em que múltiplos actores fazem apostas arriscadas, tomam posições apenas porque os juros estão muito baixos. Com isso, tornam inviáveis os investimentos com menos rentabilidade imediata, dão um sinal ilusório de investimento produtivo, criam ilusões de rentabilidade em empresas e sectores que não são e acaba por ter um efeito destruidor de capital e da poupança. 

A monopolização de sectores inteiros da economia desenvolveu-se numa escala sem precedentes no século XX. Os monopólios permitem que os preços ao consumidor sejam mais baixos, num primeiro tempo, apenas. Porém, trazem a destruição de muitas empresas, não só pequenas e médias, como também grandes, que eram a concorrência e permitiam que o consumidor pudesse escolher entre vários produtos/serviços, mantendo uma pressão para baixar os custos e preços. Na fase de domínio do mercado, os monopólios vão ditar os preços aos consumidores, aumentando o lucro em muitas ordens de grandeza. Inevitavelmente, esta monopolização da economia traz custos sociais, desemprego, mas também um abaixamento da qualidade e da diversidade. 
Na economia dominada por monopólios, o Estado é apenas um regulador da «lei» instituída pelos monopólios, é um vassalo dos grupos corporativos. Com a financiarização da economia dos países afluentes, em particular a partir das últimas duas décadas do séc. XX, o sector bancário e os grandes fundos de investimento privados (hedge funds), vão dominar a economia e o próprio Estado, na medida em que impõem as normas de acordo com os seus interesses. 

A globalização é um fenómeno correlacionado com a transformação do capitalismo, nos finais do século passado. O capitalismo deixa de estar limitado pelos factores nacionais. 
O mercado de bens e serviços passa a ser global. Igualmente, o próprio mercado dos capitais é completamente globalizado, o capital pode circular sem qualquer impedimento, sem que os próprios Estados tenham direito a regular os seus fluxos. 
Paralelamente, instaura-se um regime em que a não-existência de alternativa ao capitalismo, adquire carácter de norma. 
Exemplifico com o tratado de Lisboa da UE, que instaura a obrigatoriedade dos países signatários (e quem depois aderir à UE) manterem uma economia «de mercado», um eufemismo de capitalista. Não importa que - eventualmente- os povos queiram sair do capitalismo e mesmo que explicitem este desejo nas urnas. 
A globalização é um fenómeno exclusivo do capitalismo nos seus últimos estádios, em que a vontade popular deixou de ser - mesmo em termos meramente formais e jurídicos - o fundamento do regime.  A globalização é, na essência, um extremar de posições imperialistas, pois através de instrumentos financeiros, consegue-se subjugar países como a Grécia, Espanha, Portugal, Itália, etc, amarrando-os à dívida. 
Esta foi contraída por governos, sem o aval do povo, da mesma forma que foi feito com os regimes autoritários de países africanos, nos anos 70 e 80, com ajuda do FMI (programas de «ajustamento estrutural»). 
O resultado, num e noutro caso, é um pesado fardo de endividamento, e consequente perda de qualquer semblante de independência nacional. 
Note-se que a globalização anula a independência dos países mais fracos, naquilo que ela tem de mais básico, ou seja, deixando de haver possibilidade da população determinar, por escolha democrática entre vários partidos, qual o rumo para a sua  própria vida. Note-se que não tem nada que ver com «internacionalismo». Este termo significa o oposto no sentido profundo, não se deve confundir com globalização
É do interesse do povo e dos trabalhadores de qualquer país e de todos os países, que estes se libertem das cadeias do capital, das opressões, que impedem a sua plena afirmação, como nações oprimidas. Isto é internacionalismo.
O capital, habilidosamente, faz crer que foi a globalização que trouxe os avanços tecnológicos do presente: Porém, sabemos que foram o produto do trabalho humano, de incontáveis cientistas e técnicos, trabalhadores especializados ou não, dos mais  variados sectores. 
É falacioso o argumento de que «existe uma globalização boa». Porquê confundir este processo destrutivo com outra coisa, com o engenho humano em geral e com a natural tendência para a troca mutuamente vantajosa, na base do comércio?

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O IMPERIALISMO LINGUÍSTICO E CULTURAL


Definir o conceito torna-se necessário, porque há uma série de equívocos em torno dos conceitos de língua e de cultura.
Primeiro, a língua não é um sistema fechado, é um sistema aberto e dinâmico. Historicamente as diversas línguas evoluíram, derivaram de outras, por processos que evocam a evolução biológica (em termos de analogia, claro). 
Segundo, o complexo universo de uma língua não apenas se traduz numa sonoridade própria dos fonemas, das palavras, mas também existem construções conceptuais que lhe são peculiares.
Existem línguas que não têm determinados equivalentes semânticos, ou porque são realidades que não aparecem na área de afirmação dessa língua, naturalmente, como por exemplo espécies biológicas, ou tecnologicamente, como certos instrumentos agrícolas que não são conhecidos/usados em dada região, ou mesmo ideologicamente, conceitos abstractos que correspondem a uma forma de sentir ou de estar (por exemplo: «o fado», presente na cultura portuguesa e árabe, ou ainda, a «saudade», de tradução difícil para qualquer outra língua). Isto acontece com todas as línguas, de todas as latitudes e épocas, porque a língua é uma entidade viva, mutável.

Porém, a língua é também sujeita a colonização, a subjugação e a etnocídio.
Na era da globalização capitalista, o inglês tornou-se uma espécie de «língua franca» universal, muito mais universal do que o Latim, na Europa das luzes, de Londres a Moscovo. 
Os Principia de Newton foram editados em Latim, assim como os Colóquios dos Simples de Garcia da Orta. Para se fazerem compreender a nível internacional, pelo pequeno escol que tinha frequentado a universidade, os autores tinham de editar as suas obras em Latim. 
Actualmente, olhando superficialmente, pode-se julgar que o Inglês tomou o lugar do Latim como língua erudita, visto que (quase) todos os livros e sobretudo artigos originais de qualquer ramo científico, são editados em Inglês, até por editoras não sediadas em países anglófonos. 
Mas o efeito é muito mais penetrante, pois levou à extinção de revistas científicas noutras línguas. Desde há décadas que as (restantes) revistas científicas alemãs, francesas, espanholas, etc. editam em Inglês, mantendo (algumas, apenas) um breve resumo do artigo na língua «nativa». Estou a referir-me ao Alemão, Francês ou Espanhol, que durante vários séculos foram também línguas com enorme projecção nas ciências, tanto ou mais que o Inglês. 

Portanto, aqui já vemos uma vertente de imperialismo linguístico, cuja gravidade se menospreza, porém é muito importante pois os novos conceitos e a evolução dos conteúdos linguísticos, semânticos vão de par com a língua onde são veiculados. 
Uma língua que não tem os termos apropriados para exprimir uma dada realidade, vai ser preterida no discurso escrito ou oral, formal ou informal. 
É assim que várias línguas europeias se tornaram externas ao discurso científico, sendo o inglês «científico» o jargão único em congressos. Isso permite que se façam compreender entre si cientistas das mais diversas culturas. 
Mas coloca-se uma situação de desigualdade formal: uma pessoa anglo-falante de nascença, ao iniciar-se neste ou naquele ramo do saber científico ou tecnológico, não terá um problema linguístico. No entanto, este problema estará presente, com maior ou menor acuidade, para todos os de língua materna não inglesa: com efeito, a língua estrutura o pensamento de modo profundo. 
As estruturas linguísticas, a estrutura gramatical profunda, são aprendidas desde o início da vida. O recém-nascido absorve os sons e reproduz esses sons ainda antes de «saber falar». Quando aprende a falar, a estrutura gramatical é assumida implicitamente. Só muito mais tarde, caso seja escolarizado, é que vai aprender formalmente a gramática da sua língua materna, que já possuía intuitivamente, em larga medida. 
A língua é «biologicamente armazenada» ao nível de estruturas especiais do nosso córtex. Nós pensamos a nível profundo na língua materna, sonhamos na língua materna …
É portanto essencial poder-se traduzir os conceitos para a nossa língua materna. 
Saber-se traduzir os conteúdos semânticos de uma língua erudita para linguagem vulgar, era absolutamente natural nos séculos XVI-XVII-XVIII, em que o Latim era a língua erudita, pois não se conversava em Latim, no dia-a-dia, todos usavam a língua comum.

Já em relação ao Inglês científico, somos hoje incapazes de pensar em assuntos científicos, sem incluir no discurso, no nosso idioma, palavras anglo-saxónicas. A própria explicação dos conceitos subjacentes a estes termos anglo-saxónicos, também acaba por ter expressão mais fácil e «espontânea» em Inglês.
A língua materna, não anglo-saxónica, encontra-se assim relegada para um estatuto secundário, em muitos aspectos da cultura científica.

Mas não é apenas neste domínio que as línguas estão a ser atacadas na sua essência.
Também se nota uma invasão do Inglês como língua preferida na música pop, rock, rap, etc… a qual tem a função de identificador de geração e factor de coesão dos adolescentes. 
Assim é banal, nos adolescentes, observar-se a audição constante de canções apenas em língua anglo-saxónica. Esta linguagem usada na cultura pop e rock é muito empobrecida, em geral: não tem o requinte e a riqueza de significados das letras dos anos da década de 1960 (Bob Dylan, os Beatles e muitos outros, tinham letras de canções com qualidade poética elevada). 
Sobretudo, as jovens gerações são «treinadas» a sentir e pensar noutra língua que não é a sua própria. 
Muitos jovens julgam terem-se apropriado essa língua, mas a sua capacidade linguística está longe do nível de desempenho médio de anglo-falantes da mesma idade e ano de escolaridade. 
Na realidade, a língua Inglesa é que se apropriou das suas mentes, pois eles não conseguem exprimir-se em português, vernáculo ou popular, mas julgam (erradamente) que estão a pensar, ou mesmo a sentir, em Inglês. 

Esta colonização linguística nunca pode ser dissociada da colonização mental e ideológica. Ela não deve ser confundida com a capacidade de expressão num idioma estrangeiro, por alguém que possui plena capacidade de se exprimir na sua língua autóctone.

Tal como no caso da língua científica, nota-se que a total dominação do Inglês corrente, como língua da indústria musical e de entretenimento, coloca línguas e culturas diferentes, o português, o francês, o alemão, o espanhol, etc., numa postura marginal, nos seus próprios países de origem. 
Muitos grupos musicais – não anglo-saxónicos - apenas compõem e cantam em Inglês. Muitos dos filmes ou dos vídeos, produzidos em vários países, já não são falados na língua original desse país, são falados em Inglês e depois dobrados, eventualmente, para essa língua. Dá-se um fenómeno semelhante ao da cultura científica: para se ter audiência, para se vender, é necessário escrever, falar, cantar em Inglês.
Este imperialismo cultural pode considerar-se arma de dominação «suave» (o dito «soft power»), por oposição ao bombardeio, à ocupação militar, etc. Porém, este imperialismo linguístico viabiliza todas as restantes dominações e inviabiliza o desenvolvimento autónomo das culturas nacionais e regionais.

O etnocídio actual tem preocupado muitos filósofos, linguistas, especialistas da cultura e antropólogos de muitos países, incluindo cientistas de países anglo-saxónicos, que vêem - com razão – que esta extinção maciça de línguas e culturas é realmente um empobrecimento geral da humanidade. 
Todos saímos a perder desta perda de diversidade. Note-se que, com a perda de uma língua, é também a perda de uma literatura, de um imaginário, das chaves para compreensão da música, das artes plásticas… tudo isso desaparece ou fica apenas sob forma de objectos enigmáticos, a serem interpretados pelos arqueólogos. 
Uma língua que desaparece, é um corpo de cultura que morre. Podemos tentar perceber como funcionava tal corpo em vida, mas ele está irreversivelmente morto. O fenómeno é grave, com certeza. Porém, não se imagina a mobilização das pessoas em defesa das culturas, no mesmo grau que em defesa de espécies em vias de extinção ou de ecossistemas em perigo.
No meu entender, não existe a Natureza, por um lado e a Cultura, por outro. Deveria pensar-se a Ecosfera como incluindo a Noosfera, a esfera do saber e do conhecimento. 

Esta Noosfera tem de ser protegida, pois nós estamos – enquanto humanos- simultaneamente ancorados no mundo dos objectos e das ideias. Trata-se de aplicar o mesmo critério, num e noutro caso, ao fim e ao cabo: Nenhuma espécie/língua viva é mais ou menos importante que as outras, todas desempenham um papel no ecossistema, todas são resultantes de uma longa evolução.
Infelizmente, não existem movimentos pujantes em defesa da vida cultural, das línguas em particular. Porém, vemos que haveria todos os motivos para o fazer. 
Isto deve ser radicalmente separado de passadismos, de glorificações nacionalistas, ou reflexos xenófobos. 
Mas também não devemos cair no provincianismo, na incapacidade de decidir em nosso próprio benefício e do nosso povo e cultura. 

A «excepção cultural» é uma necessidade. Devia-se proibir ou restringir o uso de línguas estrangeiras na publicidade (em cartaz, em anúncios da televisão, de rádio…); não se devia usar termos estrangeiros em textos oficiais, em comunicações de entidades públicas, em livros didácticos (excepto, se estes forem para ensino de língua estrangeira, obviamente). Devia-se ter imenso cuidado com a correcção – lexical, ortográfica e gramatical – nos textos nos casos acima referidos e também na linguagem dos jornalistas e apresentadores na televisão, rádio…

O Inglês (ou outras línguas) tem um lugar natural no nosso ensino. A literatura de qualidade em línguas estrangeiras deveria ser promovida. Muito se deve fazer - e é justo que se faça - para difusão de outros idiomas na nossa sociedade. 

Mas devemos proteger a língua nativa, o Português. Isso passa por uma atitude consciente de cultivar o nosso próprio idioma e de dar relevo merecido aos criadores do passado e presente que o utilizam, sejam eles eruditos ou populares.

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PS: Phil Butler apresenta uma ideia de noosfera que se deve ao Presidente Putin ou a alguém próximo. Vale a pena ler: 

domingo, 19 de fevereiro de 2017