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quarta-feira, 16 de março de 2022

QUEDA DA TAXA GERAL DE RENTABILIDADE DO CAPITAL; REALIDADE OU MITO?



Muitas pessoas têm uma pobre educação em ciência e estimam que as doutrinas marxistas se baseiam «na ciência». Ou até, acreditam que o marxismo é a «única interpretação verdadeira» da realidade social, económica e histórica. 
Sem dúvida, este complexo mental durou muito tempo, na Europa pelo menos, desde a fase do triunfo da revolução bolchevique, até aos tardios revolucionarismos marxizantes, com conotação "esquerdista": Trotskismo, Maoismo, Guevarismo,  Escola de Fanckfurt, Situacionismo, etc. 
Todas estas correntes têm algo do marxismo inicial, mas estranhamente, como aliás já tinha feito notar, enganam-se mesmo na essência do marxismo. Para se ser marxista hoje, seria antes de guardar o método, a metodologia, o primado da prática, não a fixação em dogmas. Esta fixação dogmática, auto-iludida é (ou foi) comum em regimes oficialmente «comunistas», como na URSS ou na República Popular da China e nos partidos e correntes comunistas, na sua confusão de «internacionais».

Primeiro, é preciso compreender o contexto geral em que Marx e seus seguidores produziram e difundiram suas doutrinas. Deve ter-se em conta os aspectos panfletários desses escritos, que não estão ausentes, mesmo e sobretudo, em textos de «polémica teórica». Mas, todas as discussões, com adeptos ou opositores, banhavam num mesmo paradigma, ou mentalidade predominante. Este contexto mental e ideológico, na época dos fundadores do marxismo, pode resumir-se numa palavra: «cientismo». 
O cientismo apropria-se dalguns resultados ou conceitos das ciências, para concatenar uma ideologia, supostamente «objetiva». Com isso, pretendem os polemistas «varrer» quaisquer objeções, invocando a «infalibilidade da ciência» (1).  
O cientismo, não é sinónimo de se ter em elevada estima a ciência e de querer estar o mais perto possível dos avanços práticos e teóricos das diversas ciências. Não; o cientismo é uma ideologia. Utiliza elementos da ciência (a sua embalagem, sobretudo) para fazer passar uma dada visão do mundo.
Entenda-se que eu NÃO digo que o marxismo, na sua análise do capitalismo, seja uma teoria completamente inútil, das que se pode «deitar para o caixote de lixo» ou, para «guardar na estante das obras que apenas conservam interesse para a história das ideias»! 
Mas, para tal, será necessário nos debruçarmos sobre a teoria marxista, contextualizando o seu teor às condições sociais e históricas em que surgiu, coisa que não irei fazer aqui, obviamente (2).

Apenas quero dirigir a minha atenção para um ponto, que aparece sempre, como se fosse uma verdade inapelável, uma «lei» das sociedades, da economia, da história. Estamos perante um fenómeno de assimilação acrítica, de «cientismo marxista». 
Com efeito, dificilmente nas fileiras marxistas se vê algum questionar do estatuto filosófico da «lei». Sobretudo do modo como é transposto das ciências físicas e naturais (Física, Química, Biologia...) para as ciências humanas: Economia, Sociologia, Psicologia, História. 
Este mecanicismo, aliás, fica completamente posto a descoberto com a constatação de que os conceitos supostamente científicos nunca são formulados de modo a que possam ser postos à prova da experiência («falsificáveis», segundo a terminologia de Carl Popper): 
Isso não é feito, pela simples razão de que não se trata de formular uma hipótese científica,  algo que é perfeitamente aceite no domínio da ciência, mas antes de impor uma afirmação dogmática que coloca o marxismo no mesmo plano que uma religião.

A questão da «lei» da taxa de lucro geral decrescente (3) do capitalismo é um absurdo, pois não existe qualquer maneira de medir propriamente essa taxa geral. 
Nós podemos avaliar a rentabilidade do capital num determinado projeto; podemos - fazendo extrapolações e inferências - alargar este conceito à rentabilidade geral num setor produtivo, mas será absurdo estar a calcular, por exemplo, a rentabilidade do capital investido em todos os setores e em diversos momentos históricos, num país ou em vários países.
Porque querer atribuir uma rendibilidade geral ao capital, que tem imensas vertentes (capital financeiro, capital fundiário, capital industrial, etc.), não faz sentido.  É como pretender decidir sobre o «gosto da fruta, em geral», juntando o sabor do ananás, da laranja, da pêra, do alperce, da uva, etc!
Aliás, se um capitalista deseja máxima rentabilidade para o capital investido, isso não significa que ele não seja capaz de diferenciar seus investimentos, em prazos mais largos, ou mais curtos. A lógica dum investimento no setor imobiliário, não é igual à dum investimento na bolsa de ações. Ora, não só a duração, como as rentabilidades típicas para estas 2 categorias, são muito diferentes.

A questão de se saber qual a rentabilidade geral do capital investido, quando olhada de perto, coloca imensos problemas, a começar por se determinar se o próprio conceito faz sentido. Só fará, caso se possa medir tal rentabilidade com critérios minimamente aceitáveis (consensuais). Aliás, no mundo real há imensos problemas que não são solucionáveis com generalizações. A complexidade do real é algo que não entra na cabeça de pessoas dogmáticas. 

Mas, as palavras pomposas dão a aparência de «explicação científica» a muitos ingénuos. Esta pseudo-explicação da "queda da taxa geral do rendimento do capital ao longo do tempo", é simplesmente um mito. Tanto mais que o capitalismo soube transformar-se e operar em domínios de atividade que ontém - já para não falar de há dois séculos atrás - não eram sequer conhecidos, ou sonhados. 

Admitindo que, geralmente, o propósito do capitalista individual seja o de maximizar a taxa de lucro, a verdade é que muitos capitalistas (e justamente, os maiores) têm a prudência de diversificar e colocar parte dos investimentos em algo, que possa ter um retorno mais baixo, mas que confere segurança. Correntemente, há todo um ramo da matemática e estatística aplicadas (ver as obras de Nassim Taleb, por exemplo) que se dedica a avaliar o risco e a ponderar a hipótese de lucro, com esse risco.  

Outra questão associada ao referido mito, tem a ver com algo que muitos (pseudo?) marxistas parecem não conhecer: Refiro-me ao capital fictício. Se, no tempo de Marx, existia especulação, se alguns se dedicavam a extrair lucros, sem acrescentar algo à esfera produtiva, tratava-se de um fenómeno bastante marginal, ao fim e ao cabo. Estava-se no auge do capitalismo industrial, em que os industriais tinham a mão de cima, dominando as outras esferas do capital e, mesmo, o Estado burguês. 
Defino o conceito de capital fictício, como o capital que resulta da especulação e não tem origem num fenómeno de criação de riqueza verdadeira, sob forma de mercadorias ou de serviços...
Na fase terminal do capitalismo que estamos agora a viver, disparou o enriquecimento por parasitismo (cronyism). Este, é um privilégio dos muito ricos e é levado a cabo com a participação plena das maiores instituições financeiras, os bancos «sistémicos» e «hedge funds» de maiores dimensões (Blackrock, Vanguard, etc.). Tal desvio de capital para vantagem de alguns (muito poucos) observa-se ao nível de monopólios, com as chamadas «rendas de monopólio»(4), mas também ao nível das operações de QE (FED e bancos centrais do Ocidente), com a inundação dos bancos (ditos) sistémicos com biliões e triliões de dólares. Tais somas servem para que estes especulem com toda a panóplia de ativos financeiros, eles próprios, ou emprestem (a baixo juro) às grandes empresas, que fazem a retro-compra das ações, para as fazer subir artificialmente. Estas manobras especulativas vão inflacionar os ativos financeiros (ações, obrigações, derivados), mas não vão acrescentar nada à capacidade produtiva das empresas. Os ativos financeiros descolaram completamente da realidade, deixaram de ter qualquer relação com a rentabilidade e o valor real das empresas e países respectivos. 
Forma-se, assim, um excedente de capital fictício. Este, não apenas se acumula, como vai sendo utilizado para tomar o controlo sobre tudo o que seja «interessante», desde empresas, a terras agrícolas. O capital que, anteriormente, seria canalizado para atividade produtiva fica a acumular-se em atividades especulativas, sem reflexo direto ou indireto na produtividade. Os empreendimentos produtivos ficam menorizados (5), há um défice real de investimento nos setores produtivos. 

A conceção marxista tradicional considerava que o valor concentrado no capital, era uma espécie de «trabalho congelado», fosse ele fundiário, imobiliário, das empresas e fábricas, dos equipamentos, mercadorias... Mas, também, concentrado no capital financeiro, no dinheiro líquido e em todos os ativos financeiros (ações, obrigações, outros títulos). Esta teoria do valor aguentou-se mais ou menos bem, enquanto o capitalismo não atingiu a fase da «financeirização». 
O que aconteceu, com a financeirização, a partir dos anos 80 do século passado, foi o avolumar da predação do capital financeiro sobre todas as outras esferas da vida económica e social. Observando a evolução do PIB nos diversos países, as atividades típicas do sistema bancário e financeiro tomaram a dianteira sobre a parte de formação de riqueza tangível, ou seja, os setores industriais que satisfazem necessidades básicas das pessoas.  
Não admira que o próprio poder político tenha caído refém do capital financeiro omnipotente. Ele criou um mecanismo de auto-reforço, visto que conseguiu levar o governo e restantes órgãos do Estado a produzir legislação benéfica para eles, mega-empresas, a dar-lhes vantagens fiscais, isenções diversas, créditos bonificados, uma fiscalização de atividade quase ausente, etc. 
O capital financeirizado é como o Ugolino que devora os seus próprios filhos.  

Bronze de Jean-Baptiste Carpeaux: Ugolino e seus filhos 


Não seria bom que as pessoas que se auto-intitulam marxistas, se debruçassem sobre a metodologia de análise, sem dogmas? Que os conceitos fossem vistos de modo dinâmico, cuja evolução deve sempre acompanhar de perto a realidade social e económica? 
Não é fácil, embora fosse ideal, aplicar o método científico a áreas do saber que -por natureza- são muito mais difíceis de abranger, pela simples razão de que não podem (ou não devem, por razões éticas e deontológicas) ser sujeitas a experiência científica, delimitada, controlada e avaliada pelo experimentador (Economia, Sociologia, História, Psicologia)

Devemos dedicar-nos a aprofundar aspetos metodológicos e filosóficos do método científico. Lamento que alguns dos que se revestem da etiqueta de revolucionário, estejam bem mais precisados de descer das «nuvens revolucionárias» onde costumam situar os seus debates.
Não tenho nada contra as pessoas que sinceramente querem a revolução, pelo contrário. As que lutam e investem toda a sua energia na transformação do mundo. Se alguém pensa que o escrito acima tem uma centelha de desprezo pelos revolucionários de todas as sensibilidades, peço desculpa. O meu intento é o oposto, é o de clarificar. Porque vejo demasiada confusão mental em pessoas fundamentalmente honestas. Este escrito destina-se a ajudar ver a realidade das coisas. Se as pessoas virem a realidade sem vendas nos olhos,  serão mais capazes de um trabalho eficaz na construção da sociedade onde sejam abolidas a exploração do homem e a depredação da Natureza.    

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(1) Tivemos um ressurgir recente dessa mentalidade, que se revelou com os ataques contra os objetores da narrativa padrão, sobre a epidemia de COVID e sobre a forma adequada de a tratar.
(2) Leitura perfeitamente em linha, note-se, com a teoria marxista genuína (por oposição à «vulgata»)
(3) Entre uma infinidade de artigos que citam a mesma «lei», escolhi este. Ele é um bom artigo, de Colin Todhunter, mas enferma do preconceito aqui tratado: https://off-guardian.org/2021/11/15/saving-capitalism-or-saving-the-planet/
(4) «Rendas de Monopólio» a expressão é do Prof. Michael Hudson; não tem nada que ver com o sentido trivial de «renda de casa».
(5) O capital disponível é desviado para especulação (por exemplo, auto-compra de ações) ou acquisições predadoras sobre empresas concorrentes. Nem num caso, nem no outro, são contribuições para o aumento ou diversificação da produção, ou para a inovação tecnológica. Estes investimentos produtivos são preteridos porque resultam num retorno de investimento mais baixo, ou a mais longo prazo.

domingo, 19 de setembro de 2021

PORTUGAL: MONO- E OLIGOPÓLIOS PARASITAS / ESTADO DOMINADO POR MÁFIAS

 É muito comum, no meu país, as pessoas queixarem-se «do Estado», que seria, segundo elas, responsável por muitas coisas funcionarem mal. A um nível superficial, esta acusação parece ter pleno cabimento, mas... «O diabo está nos pormenores».

Em primeiro lugar, desde há muito tempo, o Estado tem sido capturado por interesses privados

O que significa isso, no concreto? Significa que serviços públicos são levados a um estado lamentável por corruptos, desde os gestores públicos, até aos ministros, que estão - na verdade - a fazer aquilo que convém ao sector privado. Fazem-no, para tornar possível uma intervenção do sector privado, por falha óbvia das estruturas públicas em satisfazerem, com um mínimo de qualidade e dignidade, as tarefas que lhes competem. 

São inúmeros os casos de desleixe criminoso nos sectores públicos de saúde, de educação, de transportes e outros. Estes fracassos são vistos, pelo público, como justificando que tais serviços sejam privatizados. 

Os sectores privados envolvidos são persistentes na procura do lucro e têm capacidade para subornar diversos agentes públicos, incluindo deputados, partidos e suas burocracias. Portanto, um sector, um grupo de empresas ou uma instituição, que estejam na mira desses senhores, acabam por cair-lhes no bolso.

Mas, o fenómeno não envolve meramente simples perda de património e perda do efeito de alavancagem, por parte do Estado. A operação, bastas vezes, é uma cedência do Estado aos privados, por tuta e meia, ou mesmo, por nada, ou menos que nada.

Não é raro o processo de privatização envolver pesados encargos, para o referido Estado, que vão muito além do que o bom-senso ditaria, como é o caso de cobrir os prejuízos futuros da estrutura privatizada, no pressuposto de que a entidade privada tenha «aceite» o encargo de ficar com a estrutura, na condição desta gerar um determinado lucro. 

Foi o caso do acordo desastroso com a «Lone Star», que se tornou proprietária do Novo Banco (Ex- BES), mas sem ter o risco de suportar prejuízos. O Estado é que tem obrigação contratual de o fazer! 

O mesmo se passa com número considerável de empresas, pequenas, médias e grandes. Temos um efeito gigantesco de extração de renda. Ou seja, os prejuízos são para o erário público (todos nós, contribuintes), mas os lucros são privados, são para os acionistas.

Se virem como foram feitos os contratos de privatização no sector dos transportes de camionagem interurbana, foi exatamente assim. O nº de passageiros que utilizam a empresa de camionagem, é base de cálculo para o Estado «indemnizar» a empresa pelo serviço.

O valor das ajudas oficiais e das isenções de impostos, de que os colégios privados beneficiam, daria para equipar e modernizar as escolas públicas e, ainda por cima, para recrutar pessoal docente e auxiliar, de forma que a escola pública fosse de qualidade. 

O mesmo em relação ao sector empresarial da medicina, que tem invadido o serviço público de saúde, visto que os empresários do ramo conseguiram ter muita da clientela do SNS, da ADSE, etc., além dos acordos com as seguradoras. 

O incauto não compreende que a má qualidade e ineficiência das estruturas públicas se devem, não a «laxismo» do pessoal ou a «controlo» dos sindicatos, ou de outras atoardas que lançam, para denegrir tudo o que seja serviço público. 

Muitas coisas são feitas com a conivência no topo, de ministros, secretários, diretores-gerais, gestores, que deveriam zelar pelo bom funcionamento dos serviços públicos, pela eficaz administração e pela criteriosa atribuição dos dinheiros públicos, mas que - ao falharem nisso  - são «remunerados», por caírem nas boas graças dos patrões dos sectores privados respetivos. 

É a máfia que se infiltra nos altos cargos do Estado e assume o papel de sabotadora do mesmo. Assim, o negócio da privatização passa muito bem, com figurões políticos como seus defensores, não desinteressados, visto que satisfazem as clientelas dos sectores privados, com apetite por tragar os bocados rentáveis, ou facilmente rentabilizáveis dos sectores públicos. 

Primeiro, as coisas são degradadas, a rentabilidade diminui ou desaparece, os prejuízos acumulam-se, agravados pelas más gestões sucessivas, pelo que - no final - é colocada em cima da mesa a proposta de privatização.

 Uma vez concretizada a privatização, o objetivo passa a ser o lucro e a entidade privada que detém a empresa vai fazer tudo para obter máxima rentabilidade, incluindo através de acordos leoninos com o Estado. 

Fica assim o utente a pagar duas vezes, pelo menos: Uma, diretamente pelo serviço privatizado; outra, de modo diferido pelo financiamento do Estado à empresa. Assim se explicam os preços de monopólio ou de oligopólio, que a entidade privada costuma cobrar. 

Não se esqueça que, se o utente tiver um reembolso (total ou parcial) do serviço, através da Segurança Social, ou doutra entidade pública, esse reembolso é feito com dinheiro público, para o qual o utente contribuiu.

Por estas razões, não me custa compreender por que razão Portugal é um país com tão baixo índice de bem estar e desenvolvimento humano, apesar destes quase 50 anos de «democracia» estável, ao fim e ao cabo: 

É que as máfias tomaram conta do poder político, exercendo enorme extração de renda, encapotada mas inegável, ao povo e ao Estado, como eu expliquei.