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quarta-feira, 4 de maio de 2022

MITOLOGIAS (I) : OS CICLOPES


Os ciclopes eram um povo mítico de gigantes, descrito por Homero na Odisseia, que manteve Ulisses cativo, com os seus homens. Não irei descrever o mito, tal como está contado na Odisseia, nem todas as representações e associações com outros deuses da antiguidade greco-romana. Apenas, irei dizer-vos o que simboliza para mim a raça ciclópica, capaz de forjar as melhores armas, a  raça possuidora de um só olho no meio da testa.

Simboliza a força bruta da guerra, os militarismos, os políticos que mandam os outros morrer pela defesa dos seus regimes. Simboliza a violência organizada, a capacidade de acorrentar povos inteiros, de os escravizar. Simboliza os fabricantes e mercadores de armas, as enormes energias e recursos financeiros e criativos de que dispõem para produzir armamento sempre mais terrível. Simboliza uma ordem de agentes poderosos, mas subordinados a uma outra ordem, bem mais poderosa, a dos «deuses» (os verdadeiros detentores do capital), à qual está submissa e para quem faz aquilo que faz. 

O olho único é, para mim, outro símbolo do capital global: O olho simboliza o dispositivo panótico, que constantemente nos vigia. Esse olho está conectado diretamente aos citados «deuses». 

As pessoas são esmagadas pela força dos ciclopes, porque se encontram dispersas, cheias de medo. Estão possuídas pelo medo, não conseguem raciocinar. Não têm coragem de procurar os pontos fracos das bestas, de agir em consonância com isso, como o fez - sabiamente - Ulisses. O seu estratagema de furar o olho único do ciclope com uma estaca afiada, quando ele estava dormindo a sesta, resultou porque Ulisses teve em conta os pontos fracos do inimigo e porque forjou a arma e delineou a tática adequadas à circunstância. Para mim, as pessoas perdem quando têm medo. Perdem, também, quando não veem nos seus semelhantes, irmãos e irmãs de infortúnio, qualquer que seja a cor da pele, a etnia, a língua, a religião, a ideologia etc.

A maneira eficaz pela qual os ciclopes modernos nos mantêm escravizados é através da incessante  hipnose, a hipnose que nos faz colar ao discurso do poder, estarmos focalizados no poder, e mesmo quando o discurso é aparentemente «anti-poder» e se reveste de irreverência, ou mesmo de «revolta». A dialética do poder não pode ser combatida através dum «contrapoder», isto é a forma pela qual as nossas iniciativas são esmagadas; ou são traídas, no caso improvável de triunfarem.

 A verdadeira arma para combater o ciclope moderno não é dada por uma  analogia direta da estaca de madeira afiada, que usaram Ulisses e seus companheiros. 

Trata-se de uma metáfora, ou melhor, é uma «arma» no sentido de haver uma organização clandestina, fortemente motivada pela necessidade de libertação, que se põe de acordo, em segredo, para realizar o plano. Ele é discutido pelos conjurados, com muito tino e prudência, pois seu fracasso será equivalente a uma morte atroz. 

Nos que se querem libertar, não pode existir mentalidade de «herói», não deve existir o desejo de «feitos gloriosos», que implicam o autossacrifício. 

São homens e mulheres vulgares, com as suas paixões e medos, hesitações e  egoísmos, que têm de ser mobilizados para o combate contra os ciclopes contemporâneos. 

Trata-se de uma guerra muito assimétrica. Por isso mesmo, do lado dos oprimidos deve existir clareza de objetivos a alcançar, determinação muito grande, elevado grau de confiança recíproca, espírito crítico e autocrítico, e todas as virtudes «antigas» (a temperança, a frugalidade, a paciência, etc...). 

Só poderá existir eficácia no alcançar da libertação, se agirmos como aquele grupo de homens aprisionados pelos ciclopes, em pequenos grupos. Só nestes, a confiança recíproca pode ser muito elevada, como entre os marinheiros que confiavam uns nos outros e no seu capitão, Ulisses. Este era um líder corajoso, astuto, que todos eles respeitavam.