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segunda-feira, 9 de setembro de 2024

CARLOS SEIXAS - OBRAS PARA INSTRUMENTOS DE TECLADO (Segundas-f. musicais, nº16)





Carlos Seixas, músico do barroco, é de muitos conhecido em Portugal e também se tornou foco de interesse de musicólogos, instrumentistas e amadores de música internacionais.

A «redescoberta» da música de Carlos Seixas deve-se, quase exclusivamente, ao Prof. Macário Santiago Kastner. Ele transcreveu as Sonatas a partir de documentos manuscritos e fez estudos estilísticos e comparativos. Assinalou, desde os primeiros estudos, a originalidade de Seixas. Sublinhou que Seixas adaptara a sonata (ou toccata) bipartida, ao gosto e ao sentir lusitano. O Prof. Kastner iniciou seus trabalhos de musicólogo em Portugal nos anos 30 do século passado, tendo-se dedicado à musicologia, ao ensino e à divulgação da música antiga, até aos anos 1980.
Graças aos seus estudos, não apenas a música de Seixas começou a ser estudada e apreciada, como a de outros compositores portugueses dos séculos passados. Nomeadamente, tornaram-se conhecidos, pelos seus estudos: António Carreira (séc. XVI), Manuel Rodrigues Coelho (Séc. XVI-XVII) e Pedro de Araújo (Séc. XVII), importantes compositores de música para tecla dos séc. XVI e XVII.


Música de tecla nos séc. XVII-XVIII

Importância do clavicórdio

Portugal, embora fosse uma potência europeia e mundial importante na época, estava fortemente dependente da Igreja Católica para todos os aspetos da instrução, assim como das artes. A arte dos sons não era exceção, pelo que raras são as expressões de música profana anteriores ao século XVIII, que tenham chegado aos nossos dias. A música sacra, direta ou indiretamente relacionada com os ofícios religiosos predominava. Os arquivos das Sés (catedrais) e as bibliotecas dos mosteiros recolhiam a maior parte dos manuscritos musicais.
A música que se fazia nos mosteiros estava relacionada com o manicórdio (ou clavicórdio), um instrumento de corda e tecla, de som delicado, muito utilizado como instrumento de estudo. Nos conventos, era frequente os religiosos possuírem um clavicórdio nas suas celas. Este instrumento não tinha o som estridente da espineta; possuía um som muito suave, que não atravessava as espessas paredes das celas conventuais.
Assim, no final do século 17, princípio do século 18, um organista na tradição do pai de Seixas, devia praticar no clavicórdio, para treino ou para compor peças destinadas ao órgão.

                  https://www.youtube.com/watch?v=VRoldp 

O órgão ibérico

O órgão ibérico era geralmente possuidor dum único teclado e não tinha pedaleira. Alguns órgãos possuíam dois teclados, mas eram pouco frequentes. Suas características são completamente diferentes dos órgãos do Centro e Norte da Europa. Não apenas pela riqueza em registos de palhetas, incluindo trombetas horizontais, mas também pela divisão do teclado. Uma peça polifónica típica tem cruzamentos de vozes, acima ou abaixo da linha mediana do «teclado partido». Somente uma escolha de registos muito simples, utilizando só um ou dois registos idênticos, para cada metade, permitirá a homogeneidade sonora, indispensável para as peças polifónicas. Um compositor de obras para órgão tinha de ter em conta que as peças seriam tangidas em órgãos com as limitações atrás enunciadas.

Elementos biográficos sobre Seixas

Sendo Carlos Seixas filho de Francisco Vaz, organista titular da Sé de Coimbra (que morreu quando Seixas tinha somente 14 anos), o cargo de organista titular da Sé foi assumido pelo adolescente. Mas, depressa se despediu da sua Coimbra natal. Foi para Lisboa aos 16 anos, procurando aí obter um lugar como músico da corte.

Há uma certa lenda em torno do encontro de Seixas com Domenico Scarlatti, o qual exercia o cargo de Mestre de Capela Real e professor particular da Infanta Dona Bárbara (depois, Rainha de Espanha). O certo, é que o jovem Carlos Seixas agradou ao ilustre Mestre Scarlatti. Penso que Scarlatti terá recomendado ao monarca que o jovem talentoso assumisse o posto de organista da Capela Real e, por extensão, da Sé de Lisboa. 

 
Órgão ibérico, na Sé do Porto

Alguns elementos da biografia de Carlos Seixas são conhecidos. Porém,  subsistem muitas lacunas, apesar da sua vida ter sido curta. Seixas morreu com 38 anos, apenas.

NB: Não é diminuir o valor da obra de Carlos Seixas, inseri-la no contexto do Reinado de D. João V, o qual foi, sem dúvida, um grande patrono da música. O Rei português pagou os estudos musicais, através de bolsas, a músicos jovens portugueses, em Roma e Nápoles, que se tornaram depois célebres nos finais do reinado de D. João V e no reinado de D. José I.
D. João V promoveu a introdução da ópera italiana em Portugal, tendo contratado vários músicos italianos (e outros estrangeiros) para integrar a Capela Real. É certo que, se Seixas aproveitou o ambiente generoso do Rei e da Corte para a arte dos sons, o reconhecimento do seu talento foi genuíno. Ele tinha concorrência de vários músicos estrangeiros que acorreram ao Reino.



Composições para instrumentos de tecla 

Seu catálogo pode parecer reduzido, à primeira vista: Cerca de 120 obras para tecla (apenas uma dúzia explicitamente para órgão), um Concerto para cravo e orquestra de cordas, uma "Overture", uma Sinfonia, uma Missa e alguns Motetes. Porém, é preciso ter em conta a destruição de muitos livros e documentos únicos nos incêndios de bibliotecas, em consequência do Grande Terremoto de 1755*.
De facto, temos de avaliar sua produção a partir das peças que chegaram até nós. As suas composições para tecla são, em geral, de qualidade acima da média, se comparadas com outras, da mesma da altura.
Seixas escreve num estilo galante e não recorre a imbricada polifonia. Só numa peça recorre ao contraponto imitativo, uma fuga para órgão. As sonatas são, geralmente, a duas vozes, sendo a voz do baixo, o sustentáculo harmónico.
A sua escrita tem a ver, por um lado, com a assimilação do estilo italiano: Na Itália, a música não litúrgica abandonara há muito o contraponto rigoroso, em particular, as tocatas e fantasias para órgão ou cravo**. 
Por outro lado, tal escrita tem um lado prático, visto que muitas das Sonatas de Seixas, tanto podem ser executadas em instrumentos de tecla encordoados (cravo, clavicórdio, pianoforte), como no órgão.


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Relacionado: 

A Profª. Cremilde Rosado Fernandes gravou Sonatas de Carlos Seixas no forte-piano. Sabe-se que no reinado do D. João V foram importados de Itália «cravos de martelos», os forte-pianos.

Imaginei uma cena de encontro com o jovem Carlos Seixas, que me convidou a assistir a um sarau em Lisboa, numa casa da alta nobreza: 
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notas
* São fontes importantes de obras de Carlos Seixas vários manuscritos posteriores à morte do compositor (1742), que sobreviveram ao terramoto de 1755, ou que foram transcritos após este terramoto, contendo também sonatas doutros autores. Estes manuscritos são datáveis da segunda metade e alguns, mesmo, dos finais do século XVIII. Isto prova que as composições de Seixas continuaram a ser populares, para além do tempo em que viveu.

**Nos finais do século XVII, em Espanha e Portugal, a escrita contrapontística ainda predominava em Tentos, Fantasias e Obras, semelhantes às composições do século XVI, embora se notem evoluções.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

FERNANDO LOPES GRAÇA: A REDESCODERTA DAS RAÍZES (Segundas-f. musicais nº4)

 
                                  https://www.youtube.com/watch?v=MyBhmkiPxVc&t=1204s

A obra de Fernando Lopes Graça é impar. Mas, é-o por direito próprio. Não por ter tomado posições corajosas contra o regime de Salazar. Na verdade, ele foi severa e injustamente castigado por não se ter conformado à mediocridade e hipocrisia nacionais, durante cerca de meio século. Eu louvo isso!

                                      https://www.youtube.com/watch?v=38VvC1AzdkE
«Ronda», com letra de João José Cochofel, do primeiro álbum de canções heroicas editado pouco depois do 25 de Abril

As «Canções Heroicas», foram compostas em colaboração com grandes nomes da poesia portuguesa e utilizando textos com claras conotações antifascistas, na maior parte. Mas, elas têm uma rara qualidade em si mesmas, enquanto textos poéticos e composições musicais. Digam o que disserem, é um marco impossível de menosprezar na nossa herança cultural.

Lamentavelmente, eu não sou a pessoa adequada para fazer a análise aprofundada das suas composições para conjuntos instrumentais. Sei que ele foi um ímpar executante do violoncelo e que produziu abundante obra para orquestra, ou conjuntos de câmara.

Mas, o que posso realçar aqui, é o seu contributo, juntamente com outros (nomeadamente, de Michel Giacometti), para a recolha, o registo em fita magnética e a harmonização de cantares do povo, do Norte a Sul, de Leste a Oeste.

                                      https://www.youtube.com/watch?v=GOAwRd41fGE

Lopes Graça e Giacometti fizeram-no num período - principalmente, nas décadas de 40 a 60 do século passado - em que as tradições musicais rurais ainda estavam vivas, faziam parte do quotidiano dos trabalhos agrícolas, mas também de momentos especiais da vida comunitária (O Natal, as Janeiras, o Carnaval, a Semana Santa e a Páscoa, etc): Eram tais momentos da vida comunitária acompanhados por cânticos de transmissão oral. Inspirando-se diretamente nas formas corais populares, Lopes Graça compôs peças de agreste beleza. É o caso do Esconjuro * interpretado pelo Coro de Câmara de Lisboa:

                                            https://www.youtube.com/watch?v=CNpu87dau94

As harmonias recorrem a métodos arcaicos de polifonia, como o fabordão, a sucessão de quintas paralelas, ou duas vozes que evoluem em intervalos de terças ou de quartas. As melodias apresentam frequentemente formas melismáticas, originárias da tradição árabe ou judaica, por via dos marranos.

O folclore de raiz, em Portugal, sofreu muito com a difusão da rádio nos meios rurais: muitas melodias supostamente «populares», resultavam afinal da cópia ou transposição de canções de «revistas»: Os espetáculos do Parque Mayer, onde se apresentavam comédias musicais. A estas, os camponeses certamente não tinham oportunidade de assistir. Mas, eram transmitidos excertos pela rádio, com as passagens de maior sucesso.

Também a tradição do canto religioso diminuiu de qualidade com a incultura dos membros do clero, que deixaram de ter, em muitos casos, formação em canto litúrgico digna desse nome.

Desde o 25 de Abril de 74, alguns grupos, formados por jovens urbanos, mas com interesse em revisitar as raízes rurais, têm feito reviver este rico património. Oxalá que exista um renovo de interesse pela música folclórica genuína. 
Lembro igualmente os cantores/autores impulsionadores da redescoberta desse riquíssimo património: José Afonso, Vitorino, Adriano Correia de Oliveira e outros. São exemplos notáveis de apropriação construtiva dos tesouros da música tradicional portuguesa.

No fim de contas, a herança deixada pelo Mestre Fernando Lopes Graça perdura e estende-se muito para além da música erudita: Boa parte da música popular portuguesa inspirou-se no seu trabalho etnográfico e de divulgação do folclore autêntico de Portugal.
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* Letras dos três esconjuros, postos em música por Lopes Graça. 

3 esconjuros

contra os maus encontros

vamos embora à alvinha do dia
a deus me encomendo e à virgem maria
e à santa bela cruz
que me guarde de cão danado
e por danar

de homem vivo, inimigo
de homem morto, mau encontro
de águas correntes, fogos ardentes

nosso senhor nos livre das bocas de má gente



contra os maridos transviados

deus te guarde sol divino
que corres o mundo inteiro
viste lá o meu marido?
se tu viste não mo negues!
não mo negues! não negues não!

que esses raios que vais deitando
ao seu nascimento
sejam dores e facadas
que atravessem o seu coração

que ele por mim endoideça
não possa comer
nem beber
nem andar
nem com outra mulher falar
nem em casa particular
que todas as mulheres
que ele veja
lhe pareçam cabras velhas
e bichas feias!

só eu lhe pareça bem no meio delas



contra as trovoadas

santa bárbara de alevantou
se vestiu e se calçou
suas santas mãos lavou
e o caminho do céu andou

lá no meio do caminho
a jesus cristo encontrou
-para onde vais? bárbara vais?
eu não vou nem quero ir,
mas ao céu quero subir
- vou arramar aquela trovoada
que lá anda, lá anda armada

arrama-a bem arramada
lá prós lados do marão
no alto cerro maninho
onde não há vinho nem pão
nem bafo de menino
nem berrar de cordeirinho

só há uma serpente
com 25 filhas
que lhes dá água de trovão
e leite de maldição