Para se abordar este assunto sem demagogia, num ou noutro sentido, temos de nos despir de todos os preconceitos. Isto é normalmente muito difícil, se não impossível, para o comum dos mortais.
Porém, os conceitos relativos ao anarquismo ou ao socialismo libertário são fundamentais e ajudam a esclarecer o fundo da questão. E este, resume-se à resposta simultânea às duas questões: «será o anarquismo viável?»; «será o anarquismo desejável?».
Para compreender as propostas dos que defendem um «anarco-capitalismo», temos de cavar um bocado na História e perceber como evoluiu este complexo de ideias, teorias, organizações e movimentos sociais.
Sobretudo, devemos compreender que na origem (pelo menos enquanto teoria política e social), o anarquismo é visto como uma modalidade do socialismo. E o socialismo, por sua vez, é a utopia que mobiliza os sectores despojados pelo desenvolvimento capitalista dos séculos XVIII-XIX. No início, não se distinguia, nem em termos de projeto, nem em termos de teoria, do comunismo. A palavra comunismo vem de comuna, que é o equivalente à nossa «freguesia». O comunismo foi, inicialmente, um projeto de auto-gestão e auto-apoderamento, num espaço territorial definido, que se pode considerar gerível e controlável pelo povo da comuna.
Portanto, teria mais a ver com a gestão horizontal dos recursos, nos espaços geográficos duma área que podia ser atravessada de lés a lés, numa única jornada, a cavalo.
Porém, a luta de classes, na primeira metade do século XIX, nos países europeus, esteve imiscuída na luta pela libertação nacional contra o domínio das diversas monarquias e impérios.
Estes impérios, para usar uma expressão conhecida, eram «a prisão dos povos». A eclosão de um movimento insurrecional em 1848, foi a primeira «prova de fogo»: não apenas dos que ainda estavam imbuídos do ideário liberal, na sua versão genuína e original de liberdade de opinião, de associação e não somente liberdade de comércio, mas também dos proletários, que entravam, pela primeira vez com a sua agenda própria, contra as monarquias instaladas. Havia a ilusão de que a república, o sufrágio universal, a liberdade, o direito de organização de sindicatos e a consagração do direito à greve, seriam a etapa necessária para a «república social», no confronto geral com a burguesia e restantes classes opressoras. Infelizmente, tal esperança não se concretizou, pois os regimes constitucionais monárquicos ou republicanos - instalados entre a 2ª metade do século XIX e inícios do século XX - logo se viraram contra a classe operária, que os pusera no poder, com repressão e com restrições de toda a ordem, para «desarmar» o perigo de revolução. Quando se falava de revolução, era - naturalmente - a revolução que apregoavam os socialistas, comunistas e anarquistas e suas respectivas organizações e órgãos de propaganda.
Estes impérios, para usar uma expressão conhecida, eram «a prisão dos povos». A eclosão de um movimento insurrecional em 1848, foi a primeira «prova de fogo»: não apenas dos que ainda estavam imbuídos do ideário liberal, na sua versão genuína e original de liberdade de opinião, de associação e não somente liberdade de comércio, mas também dos proletários, que entravam, pela primeira vez com a sua agenda própria, contra as monarquias instaladas. Havia a ilusão de que a república, o sufrágio universal, a liberdade, o direito de organização de sindicatos e a consagração do direito à greve, seriam a etapa necessária para a «república social», no confronto geral com a burguesia e restantes classes opressoras. Infelizmente, tal esperança não se concretizou, pois os regimes constitucionais monárquicos ou republicanos - instalados entre a 2ª metade do século XIX e inícios do século XX - logo se viraram contra a classe operária, que os pusera no poder, com repressão e com restrições de toda a ordem, para «desarmar» o perigo de revolução. Quando se falava de revolução, era - naturalmente - a revolução que apregoavam os socialistas, comunistas e anarquistas e suas respectivas organizações e órgãos de propaganda.
Porém, a vertente não insurrecional do movimento operário e socialista (no sentido lato do termo) esteve sempre presente, desde os grandes movimentos Cartistas para conseguir uma lei (Charter) consagrando a existência legal de sindicatos, «trade-unions» nas ilhas britânicas.
Outra vertente não insurrecional, era formada pelo nascente movimento de cooperativas operárias, implicados em produzir mercadorias e serviços de maneira autónoma, gerindo suas empresas cooperativas de modo democrático e horizontal.
Um grande apologista desta abordagem evolucionista, em direcção a um socialismo futuro, foi Pierre-Joseph Proudhon, ele próprio um operário. A sua crítica radical do capitalismo inspirou o jovem Marx e outros socialistas e comunistas. Devido a uma polémica azeda entre Marx e Proudhon, eles divergiram e detestaram-se.
Porém, é um facto que, na Iª Internacional, a corrente proudhoniana era nitidamente mais importante que o marxismo ou que outras, como a corrente de Bakunin.
A corrente prouhoniana, apesar de derrotada e expulsa da IIª Internacional, juntamente com os que seguiam Bakunin, acabou por ser o esteio sobre o qual se reconstruiu o movimento sindical no final do século XIX, princípio do século XX. Com o acordo entre socialistas marxistas e sindicalistas libertários, estabeleceu-se como regra, nas «organizações de classe» (os sindicatos), terem estas autonomia em relação a todos os partidos e correntes políticas, sendo então os sindicatos capazes de unir os trabalhadores com base nas suas reivindicações e não com base nas suas ideologias.
No seu desenvolvimento histórico, o anarquismo é tudo menos uma teoria monolítica, pelo que excluir de antemão e sem análise o «anarco-capitalismo», ou todas as ideias análogas que se apresentam, é contraditório com o espírito aberto e tolerante, que também faz parte da herança multissecular das correntes libertárias. Ser intolerante, ser sectário, é a negação dos princípios anarquistas; as pessoas que assim se comportam, em vez de revolucionárias, estão (sem o saberem?) a preparar a «cama» para uma aventura autoritária.
Vou, por isso, tentar esclarecer o que compreendi da leitura de autores anarco-acapitalistas contemporâneos.
O que noto - desde logo - é que o movimento dito «libertariano» ou «anarco-capitalista», está ancorado na sociedade norte-americana e é parte de uma franja descontente com os partidos do establishment.
Mas, na abordagem prática da ação política, têm decidido, ou formar uma ala no seio do partido republicano, ou intervir com candidatos próprios (apoiados pelo partido libertariano) nas eleições ao nível estadual (ou a níveis inferiores) para conquistar uma parte do eleitorado do partido republicano (a origem de muitos deles). Compreende-se que isto tudo tenha pouco ou nada que ver com o verdadeiro anarquismo, como organização horizontal, com a rejeição de eleições, vistas como um logro que permite perpetuar a opressão do Estado e da classe dominante, sob o pretexto (falso) de uma igualdade política, etc.
Mas, na abordagem prática da ação política, têm decidido, ou formar uma ala no seio do partido republicano, ou intervir com candidatos próprios (apoiados pelo partido libertariano) nas eleições ao nível estadual (ou a níveis inferiores) para conquistar uma parte do eleitorado do partido republicano (a origem de muitos deles). Compreende-se que isto tudo tenha pouco ou nada que ver com o verdadeiro anarquismo, como organização horizontal, com a rejeição de eleições, vistas como um logro que permite perpetuar a opressão do Estado e da classe dominante, sob o pretexto (falso) de uma igualdade política, etc.
A generalidade dos anarco-capitalistas aceita como ideal a constituição dos EUA, redigida e aprovada pelos revolucionários americanos: revolucionários... em relação à sede da colónia (a Grã-Bretanha), mas - eles próprios - grandes proprietários, muitos dos quais (incluindo Washington e Jackson) proprietários de escravos negros. Os «libertarianos» pensam que o Estado deveria retornar à «pureza» da constituição aprovada pelos «pais fundadores» nos finais do século XVIII. Neste ponto fundamental, divergem dos anarquistas, pois não preconizam (mesmo a longo prazo) a abolição do Estado, mas somente a sua reforma profunda.
No plano económico, defendem a desregulamentação total, o que se traduziria por uma extrema força de coação económica dos detentores dos meios de produção e do capital, sobre os que não possuem outra escolha senão vender sua força de trabalho, para seu sustento e da sua família.
A favor desta tese extremada, argumentam que o Estado é essencialmente parasitário e que o mercado «libertado de entraves» será originador de tal multiplicação de riqueza, de oportunidades, que todos poderão construir o seu negócio, que todos beneficiarão. Esta projecção, no futuro, do «paraíso capitalista" faz-nos sorrir, porque ouvimos - no passado - o mesmo estribilho, mas aplicado ao «paraíso comunista».
O anarco-capitalismo é a ideologia à qual se agarram algumas pessoas da pequena e média burguesia, ao verem suas vidas devastadas pelas sucessivas crises do capitalismo, mas sem terem (ainda?) equacionado que pudesse existir algo melhor do que este sistema.
Convenceram-se que o capitalismo presente é um capitalismo degenerado (crony capitalism), que a restauração da «pureza» do mercado - divinizado, como um «Deus ex machina» - iria repor a sociedade e as instituições do Estado no caminho do progresso, com um bem-estar generalizado e em plena liberdade.
Eu caracterizaria as várias vertentes do movimento libertariano ou anarco-capitalista, como um agregado de nostálgicos do capitalismo passado, porventura de um capitalismo que nunca existiu, realmente. Só diferem concretamente uns dos outros, na forma como analisam alguns fenómenos e na ênfase que colocam nas suas críticas (parciais) ao Estado.
No entanto, pode-se encontrar argumentos muito pertinentes nos autores desta corrente, sobre o processo pelo qual o Estado passou a controlar cada vez mais as vidas das pessoas, a suprimir as liberdades fundamentais e a arregimentá-las para a guerra.
Pode-se encontrar neles uma crítica do «crony-capitalism», ou seja, da forma como o capitalismo de hoje está dominado por monopólios, por grupos tão poderosos, que a concorrência real não existe. Não havendo mais mercado digno desse nome, em múltiplos sectores da economia, caminha-se para um totalitarismo corporativo.
Também verberam contra o capitalismo financeiro e contra a gestão dos movimentos financeiros e monetários, pelos bancos centrais para benefício da finança e desastrosa para os pequenos, sejam eles trabalhadores ou pequenos patrões.
Porém, nem as metas globais que apontam, nem as formas concretas adoptadas (partidos, eleições), para se organizarem e fazer valer as suas ideias... nos permitem reconhecer os princípios fundamentais dos libertários ou anarquistas. Estão longe de quaisquer das formas em que estas tradições se afirmaram, desde o século XIX e séculos seguintes, até hoje.
Penso que estão relacionados antes com uma vertente extremada do liberalismo. Na origem, o liberalismo lutou também pelas liberdades individuais e não apenas pela liberdade de comerciar, confrontando-se com os poderes estatais. O liberalismo foi a ideologia adoptada pela burguesia ascendente.
Quem conhece a história do movimento operário nos EUA, sabe que houve uma intervenção vigorosa dos sindicalistas de ideologia anarquista, ou de inspiração libertária. Destacam-se os sindicatos da confederação Industrial Workers of the World (IWW ou wooblies), que permanecem activos hoje, em certos sectores da sociedade dos EUA, apesar da repressão feroz, tanto do Estado, como do patronato.
Existem muitas organizações e pensadores, ao longo da História dos EUA, que se filiam na corrente libertária. Muitas pessoas conhecem os nomes de Emma Goldman, ou de Noam Chomsky, mas existem muitos mais com contribuições práticas e teóricas notáveis.
Existem muitas organizações e pensadores, ao longo da História dos EUA, que se filiam na corrente libertária. Muitas pessoas conhecem os nomes de Emma Goldman, ou de Noam Chomsky, mas existem muitos mais com contribuições práticas e teóricas notáveis.
Existe, no presente, um grande movimento de simpatia pelo socialismo, onde predominam correntes de socialismo anti-autoritário, não-hierárquico. Este, embora não sendo sempre explicitamente anarquista no seu enunciado, fez suas várias teses e adoptou métodos de organização do movimento anarquista.
Nesta situação de agudização da crise, há um fosso crescente entre classes sócio-económicas, com o divórcio da classe trabalhadora em relação à ideologia dominante, apesar das catadupas de mentiras e deturpações que os media - vendidos aos poderes do dinheiro - despejam diariamente, sobre o socialismo.
Creio que muitas pessoas vão compreender pela prática social, que o movimento dito «libertariano» ou «anarco-capitalista» não oferece resposta para ultrapassar o sistema concreto em que nos encontramos.
Destas pessoas, algumas poderão vir a reforçar os movimentos anti-autoritários e anti-capitalistas, que se têm multiplicado nos últimos decénios.
Destas pessoas, algumas poderão vir a reforçar os movimentos anti-autoritários e anti-capitalistas, que se têm multiplicado nos últimos decénios.